Gilberto Freyre é realmente um assunto inesgotável, volto a dizer. Ele sempre está nos surpreendendo com novas facetas, novos ângulos,...

Gilberto Freyre comunista, quem diria

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Gilberto Freyre é realmente um assunto inesgotável, volto a dizer. Ele sempre está nos surpreendendo com novas facetas, novos ângulos, pelos quais estamos continuamente a colocar mais uma pedrinha no imenso painel de sua múltipla figura, sempre incompleto, do jeito que ele queria que fossem os seus livros, as suas teses, a sua “persona”, enfim.

Incompletude. Esta palavra diz muito sobre o gênio de Apipucos e sua obra. Pois ele nunca pretendeu concluir definitivamente nada em sua rica vida intelectual. Sempre deixou, ao final de seus livros e de suas palestras, algo pairando no ar, uma sutil ou explícita sugestão de que o tema era para ser retomado, por ele ou por outrem, já que fecundo, sempre fértil para outras abordagens, outros olhares.

Reginaldo Valadares
Esta observação não é minha, esclareço logo. Quem a fez foi Edson Nery da Fonseca, o grande amigo de Freyre e talvez o maior “gilbertólogo” do Brasil. Registro-a, por exemplo, na entrevista que ele concedeu à escritora e crítica Walnice Nogueira Galvão, incluída no livro Artes e Letras – Entrevistas, Edusp, 2016. Diz Nery da Fonseca, ao responder pergunta exatamente sobre a característica incompletude do sociólogo: “ ... Você pegue a última página de Casa-grande & Senzala: não conclui. O mestre João Ribeiro escreveu um dos melhores artigos sobre Casa-grande & Senzala, logo após a publicação – o artigo é de 31 de janeiro de 1934, a obra saiu em dezembro de 1933. João Ribeiro acertou em cheio ao dizer: ‘Essa obra não conclui, e faz muito bem. A gente lê como as histórias de carochinha, que não acabavam nunca’. Ao prefaciar a segunda edição de Casa-grande & Senzala, Gilberto Freyre se referiu a essas críticas e disse: ‘Eu não pretendo concluir, eu pretendo oferecer aos pensadores o material que lhes permita tirar conclusões”. Ele se recusava a concluir, ele se considerava um incompleto, ele cultivava a incompletude”.

Essa incompletude de Gilberto Freyre tem a ver, naturalmente, com a sua multiplicidade. Ele não era apenas um, mas muitos, incontáveis Gilbertos, na riqueza de seu talento, de suas abordagens, de seus “insights”. Sendo tantos, incluindo seus aspectos ainda não devidamente identificados ou explorados, não poderia nunca ser completo, no sentido de estar, de uma vez por todas, concluído.

FGF
É nessa abundância de “personas” que vamos localizar o Gilberto Freyre comunista, ou tido como tal, por mais estranheza que isto cause àqueles que conhecem apenas sua face dita “reacionária”, de apoiador dos militares de 1964. Mas é isto mesmo, surpreso leitor, tempo houve, no Recife, em que Freyre, de tão avançado diante da aldeia, era chamado de comunista - e tido como tal – pela elite usineira de Pernambuco, esta, sim, de um reacionarismo tamanho que até contra a SUDENE levantou-se, pois nunca lhe interessou o desenvolvimento da região. Mais uma vez, é o autorizado Edson Nery da Fonseca que afirma, no bojo da mencionada entrevista: “Nessa época, Gilberto Freyre era rasgadamente de esquerda, chamado pelos usineiros de comunista, de soviético”.

Como se sabe, Freyre, ainda muito jovem, foi estudar nos EUA e na Europa. Quando retornou ao então provinciano Recife, era um desajustado, no sentido de que estava muito à frente de seu meio de origem. E a província, sabemos,
FGF
é sempre muito cruel e intolerante para com os “avançados”, para com os que não comungam de sua habitual tacanhice. No atraso da época, costumava-se identificar – ou confundir – todos que de alguma forma transgredissem – ou ameaçassem - os dogmas sociais vigentes como “comunista”. Certamente, se Brigitte Bardot tivesse passado o réveillon de 1965 em Boa Viagem, ao invés de ter ido para Búzios, teria sido tachada de “soviética” pelos mesmos usineiros udenistas do Recife.

Mas Gilberto nunca foi o comunista dos usineiros pernambucanos nem o reacionário dos paulistas da USP. Até porque, de tão grande, não cabia – nunca coube – em partidos, ideologias e em definições.

Ainda é Edson Nery da Fonseca, com a credibilidade que lhe é própria, quem esclarece essa questão no seu livro Gilberto Freyre de A a Z, Zé Mário Editor, 2002: “ ... apoiou pela imprensa a Revolução de 1964, da qual logo se decepcionou. Tanto que recusou o convite do presidente Castello Branco para ser ministro da Educação. Gilberto Freyre se considerava, em política, um “revolucionário-conservador”.

Em 1950, Alceu Amoroso Lima fez uma viagem à Europa e esteve na França, onde conversou com diversos teólogos e religiosos importantes. Na época, Alceu já tinha se tornado o principal líder católico brasileiro e seu guru, pode-se dizer, era o filósofo francês Jacques Maritain, considerado então no Brasil um símbolo de avanço, um homem de pensamento arejado, preocupado em conciliar liberdade e justiça. Alceu pensava que Maritain era visto da mesma forma na França. Mas não. Grande foi sua surpresa ao constatar que para os franceses Maritain era respeitado, sim, mas já considerado um “ultrapassado”, até mesmo visto por alguns como situado “à direita”.

Os grandes homens e as grandes mulheres às vezes são assim: paradoxais, contraditórios, pelos menos aos olhos dos simples mortais. Na verdade, porque imensos, são múltiplos – e inexauríveis.

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