Acabo de ver a propaganda de uma nova tradução da tragédia Hécuba, de Eurípides, da qual se apresenta um dos versos, como exemplo de tradução decolonizada, seja lá o que isto significa. O fato é que a tradução do verso específico me deu arrepios. Trata-se do verso 714 – Ἄρρητ᾿ ἀνωνόμαστα, θαυμάτων πέρα –, literalmente, “coisas inexprimíveis, inomináveis, além das coisas espantosas”, expressão de Hécuba para mostrar a sua indignação e seu horror com a morte do filho, Polidoro, morto pelo seu anfitrião, o rei trácio Polimestor, a quem fora confiado pelo seu pai, o rei Príamo.
A tradução arrepiante, porque a contrapelo, embora eu afirme aqui o meu respeito pelos tradutores, os quais não conheço e, portanto, não é nada pessoal, tornou o último trecho do verso 714 – θαυμάτων πέρα (além das coisas espantosas) – em “para além da Taprobana”. Sim, isto mesmo. Camões é chamado ao texto, o que seria bem-vindo se a tradução não distorcesse, ao mesmo tempo, Camões e Eurípides.
As situações nos dois autores envolvidos, com certeza, a contragosto nessa tradução, são diversas, assim como são diversos os contextos e estruturas do poema épico Os Lusíadas e do poema trágico Hécuba. O homem grego terá notícia da ilha Taprobana e da sua localização, através do registro de Estrabão (Livro II, 5, 14), no século I a.C., Ταπροβάνη. Não sei se o nome da ilha era conhecido, à época de Eurípides (490-406 a.C.). Ainda que fosse conhecido, não seria um lugar perto ou visitado, o suficiente, para poder ser utilizado numa tradução dos tempos atuais, referindo-se a um texto do século V a.C.
Relevante é pensarmos como se distorce o sentido do épico camoniano, da grandeza da conquista, que revela a vitória do herói, no enfrentamento das adversidades, em uma empresa maior “do que prometia a força humana” (Canto I, Estrofe I, verso 6), quando da expansão do império português, para além da África e da Ásia mais próxima, no caso a Índia, alastrando-se para a Ásia mais longínqua, pela Indonésia e pelo Timor, já na fronteira do Novíssimo Mundo, chegando, “por mares nunca de antes navegados” (idem, verso 3), até a China, em Macau. Este herói, que suplanta os demais em viagens e em labores, é Vasco da Gama, representante maior dos Lusos,
Também como Vasco da Gama, não realizaram guerras de expansão territorial, Alexandre ou Trajano. Ou seja, na pena transfigurada da épica, seja no mito, seja na história, os portugueses, tendo em Vasco da Gama seu representante-mor, se mostraram maiores que os heróis do passado. O fazer-se herói é, necessariamente, realizar a expansão de “Novo reino, que tanto sublimaram” (Canto I, Estrofe I, verso 8), tendo deixado sua marca “Em perigos e guerras esforçados” (idem, verso 5), por isto mesmo, saudados como “barões assinalados” (idem, verso 1), numa feliz tradução do “Arma uirumque cano” (“Eu canto as armas e o herói”) e do “insignem pietate uirum” (“herói insigne pela piedade”), do herói virgiliano, Eneias (Eneida, Livro I, versos 1 e 10, respectivamente). Não faltam sequer os “labores” pertinentes ao herói virgiliano, traduzidos no esforço e no perigo das guerras, por que passa o herói camoniano.
Diversa, no entanto, é a situação em Hécuba. Estamos ali diante de uma tragédia. Se a epopeia é o herói em ascensão, divinizando-se pelos seus feitos, a tragédia é o herói em queda, situação que o humaniza. Hécuba, ao lado de
Mas as dores podem ser ainda maiores, como a de ver o cadáver do filho, morto por aquele que o deveria proteger. E morto, por quê? Pela ambição, pelo ouro que, incorruptível, como metal nobre, a tudo e a todos corrompe sem piedade — Auri sacra fames, diria Virgílio (Eneida, Livro III, verso 57), relatando a Dido, episódio semelhante ao da tragédia.