No dia 23 de dezembro de 1635, o holandês Elias Herckmans desembarcava no porto do Recife vindo de Amsterdã, conforme anotação que consta em documento (nótula diária) do Supremo Conselho batavo em Pernambuco:
“Logo após o final da tarde chegou aqui o navio De Holandsche Tuijn (O Jardim Holandês), de Amsterdam, do capitão Cornelis Dirckse, trazendo o nobre senhor Elias Herckmans, nomeado pelo Conselho dos XIX como representante político da Câmara de Amsterdã e nesta qualidade se juntou à nós”.
A data da chegada de Elias Herckmans ao Brasil, em 1635, devidamente registrada nos arquivos holandeses, comprova a incorreção feita por um historiador paraibano que ao escrever sobre uma das obras de Herckmans afirmou que ele “integrou o grupo de artistas e sábios trazido por Maurício de Nassau”. O que não corresponde à verdade, dos fatos porque Nassau somente chegou a Pernambuco no início de 1637.Quando do desembarque de Elias Herckmans no Recife, os neerlandeses já estavam estabelecidos em Pernambuco fazia quase cinco anos, já tinham se apossado de Itamaracá e do Rio Grande do Norte e, exatamente um ano antes, no dia 23 de dezembro de 1634, após tomarem as fortificações existentes na barra do rio Paraíba, os batavos haviam adentrado na Cidade Filipeia de Nossa Senhora das Neves para concluir a conquista da Capitania da Paraíba.
Embora sejam escassas as informações biográficas sobre Elias Herckmans antes da sua vinda para o Brasil, sabe-se que ele nasceu em Amsterdã e, durante certo tempo, atuara no comércio marítimo dos Países Baixos com a Rússia. Conforme escreveu o escritor neerlandês Gaspar Barléu, que foi seu contemporâneo, “além de calejado nos lances da navegação, marítimo experimentado” Herckmans era “dado ao cultivo da poesia holandesa” tendo publicado várias obras, a mais destacada delas homenageando os feitos dos grandes navegadores da história, contendo várias ilustrações, dentre elas uma feita pelo renomado pintor holandês Rembrandt.
Em outubro de 1636, o então governador holandês da Paraíba Ippo Eysens foi atacado por guerrilheiros comandados pelo capitão Francisco Rebelo, mais conhecido como Rebelinho, no engenho Espírito Santo que se situava à margem direita do rio Paraíba, “e ali foi morto, com um capitão e 40 soldados”, conforme a narrativa do Donatário de Pernambuco Duarte de Albuquerque Coelho. Elias Herckmans, que então governava a Capitania de Itamaracá foi designado pelo Supremo Conselho da Companhia das Índias Ocidentais, empresa encarregada dos negócios batavos no Brasil, como governador da Paraíba, cargo que ele passou a acumular com a administração da Capitania do Rio Grande.
Elias Herckmans ficou como governador da Paraíba até meados de 1639. Ao encerrar o seu período no governo, elaborou uma “Descrição Geral da Capitania da Paraíba”, datada do Recife no último dia de julho de 1639, que é um dos documentos mais importantes sobre as terras paraibanas naquela época. A obra de Herckmans descreve uma faixa litorânea “medindo quinze ou dezeseis leguas de comprimento” e que não ultrapassava 40 quilômetros para o interior, porque, segundo ele, “taes são os extremos limites da região que até o presente tem sido habitada pelos Portuguezes ou por qualquer outro povo transoceanico” Apesar da limitação territorial na descrição da Capitania da Paraíba, o relatório escrito por Elias Heckmans tem informações valiosas sobre a cidade Filipeia de Nossa Senhora das Neves, engenhos, rios, vegetação, frutos e costumes dos nativos da região.
Em setembro de 1641, cerca de dois anos depois que deixara o governo da Paraíba, Elias Herckmans resolveu empreender “uma entrada através de regiões ínvias e temerosas [...] para provar à Companhia a sua fidelidade com uma façanha digna de memória [...] enquanto outros franqueavam, com as armas e a guerra, estrada para o poderio de Holanda, esforçou-se ele, por diligente exploração das terras e estudos dos povos”, conforme a narrativa do seu conterrâneo Gaspar Barléu.
A expedição de Elias Herckmans tinha, também, outro objetivo, além daqueles descritos por Barléu, mas cujos indícios podem ser extraídos das Memórias do militar polonês Krzysztof Arciszewski, recentemente (fevereiro de 2023) publicadas pela Cepe Editora com tradução e estudo introdutório dos historiadores Bruno Miranda e Lúcia Xavier. Arciszewski fora contratado pela Companhia das Índias Ocidentais para atuar no Brasil como comandante de tropas, tendo ficado no Nordeste brasileiro de 1630 a 1639 (intercalado com dois pequenos períodos nos quais voltou para a Holanda). Krzysztof Arciszewski participou no cargo de capitão dos principais combates travados pelos batavos com as forças de resistência, dentre eles aquele que resultou na conquista da Paraíba pelos neerlandeses.
Nas suas Memórias, Arciszewski relatou a existência de uma mina de prata na Serra da Copaoba:
“Eu conheço quatro minas nas quais nossa gente pode chegar. A primeira mina é próxima ao Engenho Cunhaú [...] Também não está situada muito longe do engenho de Duarte Gomes [...] A montanha na qual se encontra é denominada Copaoba. Esse lugar fica situado entre as capitanias do Rio Grande e da Paraíba. Foi descoberta a primeira vez pelos exploradores Jerônimo de Albuquerque, que era o pai de Antônio de Albuquerque, governador da Paraíba, que nós expulsamos. Uma amostra dela foi enviada ao Rei da Espanha, considerada de boa qualidade e com boa concentração, não só de prata, mas também de ouro [...] Meus senhores, é preciso fazer mais investigações”.
As notícias que chegavam das minas de prata de Potosi e os relatos sobre a existência de uma mina na Capitania da Paraíba, que eram do conhecimento dos holandeses, conforme a narrativa de Arciszewski, poderiam ter influenciado Elias Herckman na organização de uma expedição para explorar as terras da Serra da Copaoba. É importante, aqui, ressaltar que embora a Serra da Copaoba seja frequentemente relacionada com o atual município paraibano de Serra da Raiz, não era essa a visão dos primeiros cronistas que descreveram a região, conforme escreveu o historiador Elpídio de Almeida:
“O que os primeiros habitadores da Capitania da Paraíba chamavam Copaoba ou Cupaoba, denominação que os cronistas e historiadores da época aceitaram, não foi a diminuta porção da Borborema hoje compreendida no município de Serra da Raiz, como ainda insistentemente se repete. Copaoba era todo o planalto, visível a poucas léguas do litoral quando se marchava para o interior, quer ao longo do rio Paraíba, quer do Mamanguape, os dois caminhos naturais para o devassamento dos sertões paraibanos. O acidente geográfico dividia o território da Capitania em duas partes: a Oriental, já parcialmente explorada, a ocidental, totalmente desconhecida."
Pelo período em que se deu a jornada de Elias Herckmans rumo à Serra da Copaoba constata-se que é absolutamente incorreto o comentário feito pelo historiador pernambucano Armando Souto Maior de que a obra de Herckmans “Descrição Geral da Capitania da Paraíba” “resultou, em grande parte, das observações pessoais de seu autor que se adentrará, por dois sofridos meses, em uma expedição, pelo interior da Paraíba”. A “Descrição Geral da Capitania da Paraíba” foi concluída por Herckmans em julho de 1639 e a expedição para a Serra da Copaoba somente teve início mais de dois anos depois.
Elias Herckmans deixou o Recife no dia 3 de setembro de 1641. Conforme a narrativa de Gaspar Barléu, que aqui será adotada para o relato dos fatos da expedição, no dia seguinte ao da sua partida de Pernambuco, Herckmans “parou às margens do Gramame e do Mumbaba, porque, com as cheias, as águas transbordadas interceptavam o caminho. Marchando dali para a vila Frederica na Paraíba”. Após tomar informações sobre os caminhos a seguir, providenciar mantimentos e as demais necessidades para a viagem, além de recrutar os componentes da jornada, Herckmans deixou a cidade Filipeia. Segundo Barléu, depois de alcançar a povoação de Tibiri (hoje no município de Santa Rita) a expedição chegou à região de Pacatuba (atualmente no município de Sapé):
“Contando-se então o pessoal da comitiva, achavam-se quarenta soldados e trinta e seis índios. Tinham ficado para trás, ou por cansaço da caminhada, ou por fraqueza do corpo, treze militares e vinte e quatro índios. Haviam se agregado ao bando três ou quatro voluntários, que iam desligados de qualquer obediência atraídos só pelo desejo de viajar e pela novidade das terras. Seguiam algumas índias para cuidarem dos maridos e para servirem de vivandeiras e criadas dos soldados”.
A jornada prosseguiu “ora por campinas e planícies, ora através de brenhas e bosques, transpondo torrentes e regatos secos, os quais prometiam claramente que adiante faltaria aos viajantes água para beber”. Chegaram a um “curral de Duarte Gomes da Silveira, às margens do Mamanguape”. Para o historiador norte-rio-grandense Olavo de Medeiros Filho, o curral de Duarte Gomes da Silveira, com base no mapa do cartógrafo alemão Georg Markgraf, estava localizado um pouco abaixo da confluência do rio Mamanguape “com o seu afluente Tatuimambuco, no atual município de Araçagi [...] também existiam outros currais pertencentes a Duarte Gomes [...] no mesmo município de Araçagi”. Em seguida, a expedição chegou “as planícies de onde podia se avistar a serra de Copaoba”.
Na narrativa de Barléu, a marcha seguiu por uma “brenha, onde os índios descobriram abundante mel no oco das árvores. Percorrendo esse trilho, alcançaram o rio Cibambi, envolvidos numa rara e gratíssima fragrância de arbustos, que fazia parar os caminheiros”. Para Olavo de Medeiros, “depois de Cibambi, os viajores depararam com o Araçaí, ou Araçají, que cruzaram cerca de uma légua ao sul de Guarabira”. Em seguida, os expedicionários encontraram no trajeto uma montanha à qual galgaram “deixando à raiz dela os inválidos e os incapazes de seguir, a quem se mandou que voltassem para junto dos seus na Paraíba”. No relato de Barléu:
“No cimo da serra, o brasão da Companhia, gravado numa coluna, trouxe aos bárbaros do Novo Mundo a memória dela [...] O nome daquela serra era polissílabo e tremendo Irupari-bakai, isto é: ‘Aqui o diabo olhou para trás’. Entre os índios surgiu em verdade a lenda de que, havendo o Diabo subido àqueles cumes, como que atônito com a novidade da grande altura, olhara para trás”.
Ao chegar naquele local, conforme escreveu Barléu, “animou-se Herckmans a ir mais longe. Dissuadiram-no, todavia, as matas que a cada passo se encontravam pelo caminho e a grande fadiga de vencer em toda parte os montes. Quanto mais se elevavam, tanto mais bravios e ínvios eram os sítios que os recebiam. Diante disso, resolveu-se perlustrar o norte e as campinas por onde costumam os tapuias seguir do sertão para a província do Rio Grande. Assim, evitados os pendores das montanhas, marcharam através de lugares mais chãos [...]
Indo ter à aldeia onde habitaram os índios potiguaras, fugitivos da baía da Traição por temerem a tirania dos portugueses [...] Os indígenas, companheiros desta expedição, diziam ser ali o seu torrão natal,
donde haviam sido atraídos e levados para o litoral pelos portugueses. Chegaram depois à aldeia Guirarembuca, antiga habitação de índios (segundo Olavo de Medeiros, a aldeia se localizava nas proximidades da atual cidade de Pilões)”.Outra serra se apresentou no caminho da expedição, “a mais alta de quantas superaram” e de onde divisavam uma antiga aldeia indígena, que teria sido “forte e populosa”, chamada Ararembé e que fora tomada pelos portugueses comandados por Duarte Gomes da Silveira, “invejando o comércio com os franceses” que era praticado pelos potiguaras. Ainda na narrativa de Barléu, na tomada da aldeia “morreram diversos índios na guerra, e foram muitos levados para beira-mar. O próprio chefe do lugar foi remetido ao rei da Espanha, onde morreu exilado [...] naquele mesmo bando conduzido por Herckmans, havia dois filhos do dito chefe”. Segundo Olavo de Medeiros, “pelo mapa de Marcgrave, Ararembé corresponderia à região hoje ocupada por Solânea e Bananeiras, na Paraíba”.
Naquele ponto da jornada, começaram a surgir queixas dos indígenas e demais participantes da expedição que protestavam com relação à continuação da viagem. Barléu relatou, assim, o episódio:
“Chegados ali, os índios, aterrados com as dificuldades do caminho, enchiam os companheiros com igual temor, instigavam-nos secretamente a não prosseguir e asseveravam que nunca tinham visto os caminhos para adiante. Aconselharam por isso a volta [...] Alastravam-se como um contágio as murmurações entre os soldados [...] dizendo que estavam sendo conduzidos para onde a natureza negava caminho, através da espessura das selvas, dos precipícios das montanhas, dos rodeios das vias, sem nenhuma esperança de glória nem de lucro”.
Elias Herckmans, então, reuniu os expedicionários exortando-os no prosseguimento da jornada, argumentando “que estavam no início da viagem e que vencidos tantos incômodos, esperava fruto próximo [...] Lembrassem-se que eram batavos e neerlandeses, os quais não se perturbam com facilidade” e continuou mostrando as instruções que recebera com a ordem para “explorar cuidadosamente as terras e os desertos de Copaoba e de examinar a natureza e produção do solo”. Herckmans ressaltou que “não se empreendera aquela entrada para os índios visitarem as suas antigas aldeias e reverem, para regalo do ânimo, o torrão natal” e, por fim, pediu aos caminhantes que “auxiliassem a diligência e energia do seu chefe com obediência e disciplina”. Segundo Barléu, “foram recambiados para a Paraíba dez, de cuja insolência de palavras e gênio turbulento se tinha que recear”.A marcha foi retomada seguindo “para o sudoeste, segundo a situação das serras [...] eram tão opacas as florestas, pela densidão do arvoredo e dos ramos entrelaçados, que mal se via o céu. Os jornadeantes caminhavam de dia num trilho incerto como durante marcha noturna”. Continuavam as queixas da soldadesca quando chegaram a um monte de onde “avistou-se a serra de Copaoba, mas distante nove ou dez leguas. E como estivessem todos mortos de sede e prontos para regressar”, Herckmans consentiu no retorno “único meio de atalhar os males iminentes. O monte de onde voltaram se ficou chamando o Monte do Retorno”. Para o historiador Olavo de Medeiros, “o Monte do Retorno (Steenem-Keerberg) coincide com a atual cidade paraibana de Esperança, nas cabeceiras do rio Araçaji”. O cartógrafo Levy Pereira entende que o Monte do Retorno “possivelmente é o morro situado no povoado Lagoa de Pedra, no município de Esperança”.
No relato de Gaspar Barléu, “dirigiu-se então a derrota para o norte e para o sertão do Brasil [...] determinou essa digressão de Herckmann para o norte a notícia de existirem ali minas de prata, às quais tinham ido em vão, no ano de 1637, alguns holandeses coagidos a voltarem por falta de provisões de boca. A maioria, porém, acreditava que se apregoavam fantasias e esperanças de riquezas com o intuito de enganar os nossos, induzindo-os a empreender, por insaciável cobiça, viagens longuíssimas e temerárias”. Barléu descreve, em seguida, o retorno da expedição:
“Recolhidas todas as bagagens, regressaram para o Brasil, perlustrando caminhos novos e também ínvios, onde as serras e os plainos apareciam a cada passo salpicados de lâminas vítreas faiscantes aos raios do sol. Acreditaram serem aqueles os montes de cristal, dos quais fizeram menção os escritores, apesar de os brasileiros desconhecerem o cristal [...]
Após uma caminhada de alguns dias chegaram aos currais e aos engenhos e fazendas dos portugueses, já conhecidas [...] Após uma peregrinação de dois meses, desde 3 de setembro até 4 de novembro, entraram no Recife e em Maurícia, carregados de incômodos e vazios de dinheiro”.
Após uma caminhada de alguns dias chegaram aos currais e aos engenhos e fazendas dos portugueses, já conhecidas [...] Após uma peregrinação de dois meses, desde 3 de setembro até 4 de novembro, entraram no Recife e em Maurícia, carregados de incômodos e vazios de dinheiro”.
No ano seguinte à fracassada jornada da Serra da Copaoba, Elias Herckmans foi designado para fazer parte de uma expedição batava ao Chile, onde ficaria como governador das terras a serem conquistadas. A investida chilena dos holandeses não obteve êxito, o falecimento do almirante que comandava a expedição, a insuficiência de provisões e a falta de colaboração dos indígenas araucanos inviabilizaram a jornada. Dez dias depois do seu retorno do Chile, em janeiro de 1644, Elias Herckmans faleceu no Recife.