Sobre o ângulo reto que fazia a junção desnivelada das duas paredes, a mulher, como veio ao mundo, aos gritos, balouçava-se lentamente para a frente e para trás, desafiando a gravidade. Pupilas intensas sobressaindo de escleras raiadas de sangue, mirando fixamente o vazio, ela se mantinha sobre as panturrilhas, quase de cócoras, escapando das ripas e caibros do telhado que lhe roçavam a espinha dorsal retorcida, apoiando precariamente os pés gretados nos tijolos crus, sem reboco, das faces superiores das divisórias.
Fragmentos de barro e poeira precipitavam-se com estrépito no cômodo a cada movimento pendular que seu corpo franzino, de famélico magrém, fazia. Os cabelos acastanhados, vastos e oleosos
H. Bosch, Séc. XV
Pela fresta da porta entreaberta, o homem, sentado na cabeceira da mesa maciça, cujo retângulo, marchetado das sobras de banquetes imemoriais, atulhava a sala comprida, observava aquele cenário com serenidade outonal, iluminado pelo único bico de luz baixo, do que fora um opulento lustre. As cãs grisalhas e a barba por fazer conferiam-lhe um semblante ancião, em contraste com os olhos jovens, a despeito de semiencobertos por hirsutas sobrancelhas. Acima do peso, envergava uma maltratada calça de montaria e uma camisa de fantasmagórica alvura. Nos pés, o mocassim achinelado de toda a vez.
Hieronymus Bosch, Séc. XV
A mulher parara de gritar. Rouca, mexia levemente os lábios numa latumia ininteligível, como em transe. Também não vertia mais lágrimas. A fonte dos olhos secara e a lama da alvenaria que lhe impregnava as faces desenhou sobre si um inusitado mapa hidrográfico, com rios e afluentes;
H. Bosch, Séc. XV
Feito um contemporâneo Atlas, o homem levantou-se resignadamente, carregando às costas o universo. Dirigiu-se ao quarto e, hesitante, pôs a mão sobre a maçaneta. A porta chiou nos guizos como se, ela própria, postergasse aquela visão triste. Quantas vezes testificara aquilo!
Primeiro, tirou a camisa com cuidado, alisou os vincos e pousou-a sobre a cama desorganizada, imunda e sem lençóis, não obstante o espelho revelasse ricos entalhes de plântulas talvez de algodão, lembrando que alguma prosperidade medieval existira antes da decadência. Ato contínuo, desvestiu a calça e a roupa íntima de uma só vez. Estas, largou-as no chão com desmazelo, empilhadas sobre o sapato amarfanhado. Em pelo, carregando agora com grande esforço seu corpanzil de ogro, dirigiu-se ao recanto da câmara opressiva e, ofegante, iniciou a escalada.
Quando os envolveu, mais tarde, a noite, homem e mulher, miraculosamente equilibrados sobre o ângulo reto que juntava as duas divisórias, ele sentado sobre a estreiteza da parede, pernas flutuando, ela aninhada no seu regaço, ambos em absoluto silêncio, estavam unidos num abraço, cuja estética sem beleza, circense e improvável, impunha-se como alívio temporário para o caos permanente que é viver.