Mostrando postagens com marcador Irenaldo Quintans. Mostrar todas as postagens

De passagem certa feita pelo Louvre, avistei, por detrás de mil vidraças, um dos célebres Ovos Fabergé, que lá estava em exposição, em...

gonzaga rodrigues retrato memoria literatura paraibana
De passagem certa feita pelo Louvre, avistei, por detrás de mil vidraças, um dos célebres Ovos Fabergé, que lá estava em exposição, emprestado do Krelim. No ensejo, sussurraram-me ao ouvido as nove musas em uníssono: tiveste muita sorte, mísero mortal. Pois o maioral da joalheria de todos os tempos, que produzira quase uma centena destes, nos mais nobres materiais que possa supor a vã filosofia, destinados aos presentes que Alexandre III, mandatário absoluto na Rússia czarista, costumava dar à sua amada esposa, Maria Feodorovna, legara pouquíssimos ao alcance de quem não se alinha

Sobre o ângulo reto que fazia a junção desnivelada das duas paredes, a mulher, como veio ao mundo, aos gritos, balouçava-se lentamente ...

realidade existencialismo dureza drama humano
Sobre o ângulo reto que fazia a junção desnivelada das duas paredes, a mulher, como veio ao mundo, aos gritos, balouçava-se lentamente para a frente e para trás, desafiando a gravidade. Pupilas intensas sobressaindo de escleras raiadas de sangue, mirando fixamente o vazio, ela se mantinha sobre as panturrilhas, quase de cócoras, escapando das ripas e caibros do telhado que lhe roçavam a espinha dorsal retorcida, apoiando precariamente os pés gretados nos tijolos crus, sem reboco, das faces superiores das divisórias.

Os dias amanheciam tristes, naquele tempo, sem que se soubesse exatamente o porquê. A coisa foi acontecendo paulatinamente. Ao fim e ao ca...

conto solidao samambaia
Os dias amanheciam tristes, naquele tempo, sem que se soubesse exatamente o porquê. A coisa foi acontecendo paulatinamente. Ao fim e ao cabo, havia uma espécie de véu, uma trama de cor escura, recobrindo as alegrias, à moda das imagens nas catedrais, envelopadas pelo sentimento quaresmal.

O andar arrastado, de pés sem cavas, levantava uma poeira fina que ia tornando fantasmagórica a imagem do velho homem, ante a reverberação...

conto alimentacao vegetariana ensinamento
O andar arrastado, de pés sem cavas, levantava uma poeira fina que ia tornando fantasmagórica a imagem do velho homem, ante a reverberação ótica do pino do meio-dia. No verão, a estrada por sobre a parede da barragem, repisada por bichos e gentes, costumava soltar aquele pó amarelado, quase místico, que recobria a todos, com a sem-cerimônia de um manto real.

As cabaças, abastecidas no porão da represa com algumas dezenas de preciosos litros d’água, penduradas no pau de aroeira roliço, atravessado no trapézio nu, retesado e caloso, balouçavam obedientes à cadência marcial das passadas,
ressumando gotículas prateadas de uma chuva inútil, que evaporava ao rés do chão.

Na cintura, um retraço de cordame segurando os calções de um madapolão mole, furta-cor de tão gasto, fazia barreira ao suor que lavava, abundante, o torso habituado aos grandes esforços. Ainda que sem um grama sequer nas costas, ninguém alcançaria a marcha forçada daquele conjunto de pesos e contrapesos, equilibrado como uma equação newtoniana, flutuando em meio à quentura que emanava de toda parte, a quentura sólida do semiárido. O embornal de couro de boi, presente de Padrinho, com a cinta larga atravessando, desde o ombro esquerdo, todo o tórax, até à cintura, completava os paramentos.

Um pouco mais atrás, num trote ritmado, o cachorro vira-lata pedrês, miúdo e arrepiado, arquejante, acompanhava os passos do dono com desinteressada atenção. Conhecia cada seixo, cada lagartixa, cada pardal daquele caminho de roça. As nuances aromáticas das suas urinadas frenéticas voluteavam em ondas familiares, demarcando o território e imprimindo ao trajeto toda a segurança de que o grupo necessitava. Não havia o menor sinal de perigo.

Meio sentado numa pedra, desafiando a gravidade no trecho em que a parede do balde mais se inclinava em direção à linha d’água, o menino alourado de pele tostada e cabelos espessos assistia àquele cortejo, com os olhos brilhantes, mastigando um talo do capim-santo que, cintilante, atapetava a encosta íngreme.

Logo que os olhares se cruzaram, os dentes do homem, de uma brancura polar, emergiram num largo e genuíno sorriso, como se um copo de água fresca se lhe apresentasse alguns metros adiante. O cão, farejando o ar e agitando a cauda descarnada, apressou o passo, dando pequenos rodeios, levantando mais corpúsculos da terra cor de ouro. A procissão chegara ao auge nesse encontro e o menino, ágil que nem filhote de jaguatirica, levantou-se de um pulo e correu para a tropa, mirando o embornal.

— Trouxeste para a gente o quê?

O homem parou lentamente, deu um longo suspiro e, dobrando os joelhos com o corpo ereto, descarregou no chão os recipientes, pousando sobre estes, cuidadosamente, a trave de madeira:
o carregamento era por demais valioso.

— Eu já disse que essa encosta escorrega e quando vosmecê cuidar... tchibum! Está nadando com as piabas! – disse, rindo ainda mais e entregando o embornal ao menino, enquanto o cachorro, excitado, soltava breves latidos esganiçados.

O menino desenlaçou, ávido, a presilha e vasculhou o conteúdo do bisaco com o rosto quase enfiado na abertura, sorvendo o cheiro de couro curtido. Retirou de lá um embrulho quadrado, coberto com folha de bananeira atada com sisal, e outro maior, irregular, cujo conteúdo achava-se enrolado num pano fino, manchado. Um odre de pelica, fechado por uma rolha, continha a água de beber.

— Rolinha assada ou nambu? Será uma costela ou um pernil? Fala logo! — perguntou o menino, sem abrir os invólucros, mas com a saliva escorrendo das comissuras dos lábios.

— Vamos comer, seu cabrito guloso, é melhor do que adivinhar! — Respondeu o homem com ternura, recolocando a trave de madeira nos ombros e amarrando as cabaças nos cipós.

Seguido pelo cão, descendo a parede no ângulo oposto à lâmina do açude, com juvenil habilidade a despeito dos compridos anos de vida rural, o homem tomou o sentido de um umbuzeiro centenário,
sob cuja copa, tão desgrenhada quanto frondosa, dormitava um bando de patos de penugem preta e branca, com os bicos chatos enfiados nas asas.

Na sombra fresca e acolhedora, a matilha acomodada se preparou para a refeição: o homem passou as mãos, à guisa de limpeza, pelo solo do espaço preferido, bem sombreado, e sentou-se com os membros inferiores recolhidos de um só lado do corpo, parecendo absolutamente relaxado. O menino, impaciente, abancou-se também, cruzando as pernas sob si. E o animal, depois de enxotar os patos com canina autoridade, deitou-se ao redor, como que fechando o círculo, cônscio da importância da sua presença naquele convescote.

Depois de breve ablução das mãos e rostos com a água retirada do odre, o primeiro pacote foi ritualisticamente aberto sobre o relvado, mostrando uma rapadura média, cor de argila, cujo cheiro marcante, agridoce, do melaço que lhe originara acendeu as narinas dos comensais, fazendo o menino arregalar os olhos e o cachorro esticar as orelhas. Como se não bastasse, torresmos de castanha de caju assada sobressaiam aqui e ali da superfície suculenta do petisco de cana-de-açúcar.

Sem tocar na rapadura, o homem desenrolou cautelosamente o segundo embrulho, como quem manuseia uma preciosidade. Para decepção do menino, revelou-se uma pasta disforme esverdeada, da qual minava um líquido amarelo. A repulsa fê-lo recuar, arrastando-se para trás sobre os joelhos dobrados.

— Que é isso?

— É uma coisa que eu preparei para vosmecê comer hoje, antes da rapadura — respondeu o homem com os olhos bem fixos nos do menino.

— Como lá essa coisa de jeito nenhum! — zangou-se o menino, já fazendo menção de levantar-se.

— Ouça-me — retrucou gentilmente o homem - Está na hora de vosmecê aprender que os animais de Deus são nossos irmãos e que existem outras maneiras de matar a fome sem precisar deitar rês nem criação. Matute aí vosmecê o que os bichinhos sentem quando a marreta avoa no toutiço deles, derribando-os sem dó nem piedade. Ou quando a pedra de funda abre a cabecinha da codorniz, quebra a asa da arribaçã... E ainda o peixinho endoidecendo pelo ar, com o anzol espetado no céu da boca?

Fez-se silêncio e um bem-te-vi voejou por sobre o trio, pousando alguns metros adiante, numa galha abaixada da árvore. Pouco mais, seu par fez o mesmo percurso, e ambos, em plateia, quedaram-se a assistir a conversa. Os patos retornaram em fila indiana, acomodando-se perto do tronco e longe do cachorro. Uma vaca mugiu alto no horizonte, decerto exortando sua cria. O sol atingira o zênite e o dossel do generoso vegetal ofertava abrigo a todas as criaturas, livrando-as da inclemência do astro-rei no seu clímax. O homem prosseguiu.

— Esperei com paciência vosmecê sair do mimo e ficar mais taludo para lhe dizer isto: não se come carne de bicho vivo nenhum. Os ovinhos e o leite, desde que não careça do sacrifício ao ente e à ninhada, pode ser; tem a hora de recolhê-los sem prejuízo. Mas matar para comer? Não se pode... Não nos é permitido... — e meneou a cabeça, com uma manifestação pia nos olhos cansados.

— Agora, queria que vosmecê sossegasse e provasse o que eu preparei, receita velha da minha terra, para depois assuntar por vosmecê mesmo — continuou. — Se vosmecê não gostar do preparado, não lhe aporrinho mais. Fui eu mesmo que fiz, com esse instrumento aqui — a abriu as mãos em leque para o menino.

Contrariando os sentidos e mercê do afeto e da confiança que nutria pelo homem, o menino juntou os dedos indicador e médio, raspou a pasta, levando-a imediatamente à boca.

E, na medida em que mastigava, a careta de asco ainda renitente foi se transmudando numa expressão deslumbrada de quem prova o maná numa manhã orvalhada. Acabara de descobrir o segredo do velho homem: o respeito ancestral pela vida!

Conheceram-se na universidade. Além da mesma idade, gostavam das teorias da Física e compartiam incurável urticária pela Química, exceto p...

literatura paraibana amizade reencontro estudantes irenaldo quintans
Conheceram-se na universidade. Além da mesma idade, gostavam das teorias da Física e compartiam incurável urticária pela Química, exceto pelas monitoras que auxiliavam nas aulas práticas, com seus impecáveis jalecos brancos, luminescentes, flutuando por entre os tubos de ensaios como os gases da tabela periódica de Mendeleiev.

Nenhum som, senão o sibilar da chaleira sobre o pequeno fogareiro, perturbava o silêncio. No cômodo parcamente iluminado, abarrotado de pa...

ambiente de leitura carlos romero irenaldo quintans mini pequeno curto conto violacao correspondencia sigilo quebrado matematica calculo
Nenhum som, senão o sibilar da chaleira sobre o pequeno fogareiro, perturbava o silêncio. No cômodo parcamente iluminado, abarrotado de pacotes atados com cordões de sisal, o homem forçava a vista para decifrar o destinatário de um envelope.

O dourado majestático que ornava a madrugada prometia um chuvisco. Sacolejando no cubículo lá da rabeira, embalado pelo ronco contínu...

ambiente de leitura carlos romero cronica irenaldo quintans migração retirantes exodo rural estrada despedida saudade futuro desconhecido

O dourado majestático que ornava a madrugada prometia um chuvisco. Sacolejando no cubículo lá da rabeira, embalado pelo ronco contínuo do motor, o menino acompanhava pelo vidro traseiro as duas esteiras simétricas, entrecortadas pela fumaça do escapamento, que os pneus da velha Rural abriam na estrada. E fundia a cabeça imaginando que espantosa força motriz era capaz de impulsionar, a tamanha velocidade, aquela fubica torta sem desmontá-la, desafiando todas as leis da Física.

Dou-me ao vinho e à carne aos sábados. Em compensação, gasto os domingos a alimentar o espírito com missa e música, muita música. Coisas de ...

ambiente de leitura carlos romero cronica poesia literatura paraibana irenaldo quintans travessia de rio smetana rio do meio rio do espinho rio paraiba moldava
Dou-me ao vinho e à carne aos sábados. Em compensação, gasto os domingos a alimentar o espírito com missa e música, muita música. Coisas de cristão indisciplinado. Num destes recentes, depois de uma homilia sublime em que o sacerdote reproduziu o libelo do apóstolo Paulo ao amor, calhou de cair na vitrola “O Moldava”, parte do comovente poema sinfônico “Minha Pátria”, de Smetana.

Gratidão Vim de um agreste triste. Seco de palavras, Árido de afetos, Encarquilhado de carinhos.

ambiente de leitura carlos romero irenaldo quintans poema gratidao joao pessoa raizes familia sucesso pessoal


Gratidão


Vim de um agreste triste.
Seco de palavras,
Árido de afetos,
Encarquilhado de carinhos.

Dos picos pedregosos desceu o avô para a vila, a fim de arrumar matrimônio. Egresso dos Pintados, os quais, sabe Deus sob que tecnologia an...

ambiente de leitura carlos romero irenaldo quintans conto avo e neto nostalgia amor familiar

Dos picos pedregosos desceu o avô para a vila, a fim de arrumar matrimônio. Egresso dos Pintados, os quais, sabe Deus sob que tecnologia ancestral, plantavam um bom grão de café pelas encostas íngremes da montanha, compunha um tipo exótico em meio àquela brejeirice, com seus olhos e cabelos claros.

Chegou ao mundo num cômodo de paredes desbotadas da casa da cancela, de cuja janela frontal o pai, guarda fiscal, pastorava as idas e vinda...


Chegou ao mundo num cômodo de paredes desbotadas da casa da cancela, de cuja janela frontal o pai, guarda fiscal, pastorava as idas e vindas dos carros meio vazios, meio carregados de quartos de bodes e feixes de caroá, a fim de, pelo seu temperamento, mais indultar do que cobrar a derrama da época. O pai trazia em si uma generosidade inata, que tangenciava a vaidade. Nunca se soube definir direito aquele sentimento: bondade ou orgulho? Mas, orgulho do quê, haveria de ter o pai? De uma suposta ancestralidade nobre perdida nas brumas da fantasia? Da honestidade decantada pelo meio milhar de compadres que lhe tomavam a mão para tutelar e exemplar seus primogênitos? Dos cabelos negros, inteiros da fronte até à nuca, algo castiços, sempre cuidadosamente engomados? Do nariz adunco projetando-se sobre os lábios finos, herança mourisca de priscas eras? Das necessidades poucas, estoicas, desde o de comer até as festanças? Não sei... Vá ver que era daquela doçura mesma, que, com olhos marejados, ele expressava na fácies quando contemplava algum desses pequenos. Coisa de pai-avô. Casou maduro, passado do ponto. Tanto que pôs todos a perder com essa delicadeza inapropriada em tantos momentos em que a palmatória teria sido a solução, o ponto final em causos nos quais não se via o bom termo.

O fato é que eram tempos difíceis, como difícil era arrancar daquele torrão árido alguma réstia de umidade fora da breve e errônea estação das águas: precisava-se cavoucar léguas, intestino da terra adentro, ainda que às margens do que fora um caudaloso rio na última enxurrada. Como um bêbado - arquétipo abundante por lá, aliás -, cujo balouçante tropeçar não se sabe se e quando o conduzirá para casa, assim o era o inverno naquilo que se convencionou chamar Quadrilátero das Secas, mercê de algum arranjo da politicalha sempre atenta na cabala dos minguados votinhos do vilarejo. Nome bonito, pomposo, mas de serventia nenhuma, exceto confundir ainda mais a já insignificante representação da região nos mapas escolares.

Não havia produção regular de nada; só o acinzentado do horizonte, marchetado pelo azul incandescente do céu sem nuvens e pelo esverdeado de uma longínqua cúpula de umbuzeiro, soldado valente de um exército exaurido de sede. Uma cabra aqui, outra acolá, mascando a gosma tóxica e cáustica produzida pelo avelós, era o que se via de criação. O alimento de uma rês bovina, o farelo ensacado, tornava-se rapidamente mais caro do que sua própria cabeça. E até a palma forrageira, essa heroína, só suportava até certo ponto as temperaturas vulcânicas do estio implacável da caatinga. Depois, perdia a seiva e descangotava o pescoço, qual mamulengo triste que chorasse a falta d’água. O gado, coitado, abandonava as forças e se deitava no pó, com as costelas furando a pele macilenta e o olhar melancólico num barreiro esturricado qualquer. Aí só a tipoia para o manter de pé mais alguns dias, antes do fim. Um lugar pobre, afinal; pobre de Jó. Só a desnutrida prefeitura mantinha algo de vida naquela paisagem surreal, pagando mês sim, mês não, derréis disputados apaixonadamente pelos aliados da facção ora entronada.

Voltando ao moleque, ficou mouro mesmo, que nem o pai, exceto pelo nariz adunco, que não herdou, e acrescido de umas sardas salientes pelas frontes, enquanto os outros saíram aos galegos sararás do brejo sumarento das bandas do Sul. Sobrolhos espessos emoldurando olhos perscrutadores do fundo das coisas. Com a sorte entregue às moiras, por um milagre não teve o fio da vida cortado já no primeiro segundo em que, aos engasgos, chegou aos seus.

A mãe, mulher pequena, pele clara, cachos acobreados caindo na testa, mais sedutora do que bonita, contou que as estocadas agudas que prenunciaram a chegada da raspa de tacho começaram à boca da noite, quando, na calçada alta, as comadres tricotavam em bilros a vida do minúsculo município. Certo momento, com as ancas alquebradas de parturiente pedindo clemência, foi lá para dentro, recolher-se na cama de jacarandá, anciã de molas barulhentas, herança de sabe-se lá qual antepassada. Decidira aguardar deitada o rompimento do invólucro que mantinha atado a si aquele que seria seu quarto filho, engendrado ali, no cariri ressequido de chuvas, todavia pródigo de presságios. Estava tranquila. Tinha fama de boa parideira: rápida em expulsar do conforto uterino o vitelo que gerara. A bem da verdade, esse moleque vingara por sua conta e risco, aproveitando-se, matreiro, de um descuido entre regras mal anotadas. Três era uma boa prole. Avara, inclusive, num tempo em que o eito pedia oito ou dez. Mas não havia eito. A mania do pai era educar todo mundo na capital. Não aceitava ver rapazes sem estudar, arando calhaus velhos de terra, valendo pouco mais ou nada. Sensato, o pai. Sempre sensato. Nunca quis outro espólio do velho atarracado de bigodes fartos que lhe educara senão um surrado relógio de algibeira, cuja tampa em metal nobre, enfeitada de arabescos, soava uma sineta ao ser aberta.

Às horas tantas, a natureza desembainhou seu cutelo. Era chegado o momento em que a mulher, sozinha na sua agonia e, ao mesmo tempo, na maravilha de dar à luz, estrebucha de dor e alegria. A mãe rogou pela parteira amblíope, de feições caucasianas, que a socorria nesses decisivos instantes. O pai saiu do quarto. Elas e ninguém mais, na atmosfera baça, higienizada pelos vapores da água fervente, haveriam de se entender.

A barra surgiu, tingindo de amarelo-ouro a encosta da serra; o sol agigantou-se no firmamento, esquentando o lombo dos lagartos e das gentes. E nada de coroar. Angústia a não mais poder. A miúda protagonista gemia entredentes os terrores de todas as mães, suplicando a São José, pai de Cristo e devoção da casa, pela sua própria e pela sorte daquela entezinho que hesitava em chegar, por mais força que ela fizesse. Lá pelas onze, exangue pela dilatação máxima, a mãe emitiu um som gutural, enquanto se mostrava pela abertura ensanguentada um pequeno crânio, redondo como uma melancia, envolvido pela placenta e enlaçado pelo rugoso cordão umbilical. Daí por diante, travou-se a luta do rochedo com o mar. Com mãos de prestidigitadora, a parteira conduziu delicadamente o pequeno ser de volta ao canal de parto para, numa manipulação às cegas, tentar desenlaçá-lo, ironicamente do tubo pelo qual sorvera os nutrientes que lhe permitiram aportar ali, do ventre penumbroso e liquefeito para o lume frio da casa da cancela, àquelas horas de Deus. Uma noite e um dia se consumiam nessa peleja.

O crepúsculo chegou com a mãe desacordada e aquele trapinho, roxo como uma estola episcopal, no colo da parteira. “Chame o padre, para seu menino não morrer pagão”, disse ela, grave, mirando o pai, enquanto enxugava a face gotejante de suor. “A mãe só precisa de água de beber e sossego”, e deu o bom combate como encerrado. Por teimosia ou confiança, o pai não se moveu da cadeira. Deixou que o manto suave do breu cobrisse o mundo, seus extenuados convivas, e entregou-se, ele próprio, a uma vigília confusa.

Lá para os lados da Serra da Engabelada, uma velha coruja arregalou ainda mais os olhos cintilantes, piou forte, um pio de arauto para se impor aos notívagos de todos os clãs, e bateu as asas poderosas contra a silhueta prateada da lua, celebrando, num voo monumental, a chegada de mais um filhote no seu território.

Pois assim que a ampulheta virou e a nova alvorada perpassou as telhas vãs, rastreando de luz o piso de gastos mosaicos, a mãe criou tento, apoiou-se nos cotovelos, içou-se da cama e, arrastando penosamente as pernas inchadas, dispôs o peito latejante de colostro à ávida sucção do rebento, que dormitava sob os panos, com a respiração curtinha de um cabrito. Mal ele pegou a auréola intumescida do mamilo com a boquinha ansiosa, o ar puro e cauterizador abriu caminho pela traqueia, chegando até os pulmõezinhos constipados de muco. E a pele arroxeada, grudenta com os restolhos da peleja, ganhou um matiz avermelhado, sanguíneo, e como que se descongestionou, acomodando mãe e filho naquele idílio de vida.


Irenaldo Quintans é economista e escritor