O tão conhecido primeiro verso de “Art Poétique”, de Paul Verlaine, “De la musique avant toute chose”, encaminha o leitor, aparentemente, para o entendimento da poesia como música, no sentido restrito de musicalidade. Será isto mesmo? Na discussão do que é ou do que não é literatura, esta formalidade que reveste a criação com a palavra, o poeta francês busca a música ou ele, sutilmente, vai além e a entende à maneira dos gregos, à maneira de Platão, μουσική, definida como as artes de todas as Musas? Fico com a segunda possibilidade.
Paul Verlaine ▪ 1844—1896
Que ton vers soit la bonne aventure
Éparse au vent crispé du matin
Qui va fleurant la menthe et le thym…
Et tout le reste est littérature.
(Que teu verso seja a boa aventura
Esparsa ao vento da manhã crispado
Tendo a menta e o tomilho farejado...
E todo o resto é literatura.)
Contrapõe Hélder Moura, no poema “Mágico ofício da palavra”, indagação final do livro:
Mas, de que adianta buscar
O escritor em sua lavra,
No mágico ofício da palavra,
Quando trama a tessitura,
Se esculpe sua escritura
Com os cinzéis íntimos do ser,
De que importa ele saber,
O que é literatura?
Se para Verlaine a música, no sentido de criação artística, se sobrepõe ao conceito formal chamado literatura, conceito que cabe aos críticos definir, intento nem sempre conseguido, por mais que tentem, para Hélder Moura tem mais sentido assumir, tangenciando o conselho de Verlaine, que saber o que é literatura não fará o poeta mais poeta. Às vezes, até o fará menos.
Retomando Verlaine, e parafraseando-o, mas ficando na substância do seu poema, eu diria: “De l’ αἴθησις avant toute chose” – Estesia antes de tudo. E é assim que Hélder Moura faz, colocando a emoção nas palavras de um eu-lírico
Hélder Moura
Arte é estesia, emoção, e as emoções, noturnas e não menos soturnas, estão aqui, explícitas: mágoa, tristeza, melancolia, angústia, ressentimentos, amargura, dor, ódio, desespero, desencontro, ansiedade... Não são as melhores, mas são emoções, e a arte não suscita apenas as boas emoções, senão emoções. O mendigo que o eu-poético percebe, não é senão o espectro de si mesmo (poema “O espectro”), como o espelho diante do qual ele vê que sua “face era uma máscara” (“Toda a poesia do mundo”):
“Vi que arrastava pesado
Pacotes de ódios cristalizados,
Embrulhos amassados de ressentimento,
Mágoas em pequenas pílulas negras,
Bulas de tristeza e melancolia
Em quantidade que jamais vira.
Sacolas de uma amargura pestilenta,
Também vi sob seus braços.
A que vem esse diálogo em dupla dose, a não ser, como diz Hélder Moura, em “Ali onde estão os demônios” (p. 29):
“Para prospectar essa dolorosa arqueologia,
Que vá, mas seja capaz de sobreviver.”
O subtítulo, quasipoēma, deveria ser quasipoēsia. Incontestavelmente, o que Hélder Moura traz em seu livro são poemas, aqui e acolá é que reconhecemos alguma cintilação poética, numa dor aflitiva, que procura um diálogo quase impossível e dilacerado com uma noite angustiante, que um dia poderá fazer manhã, afinal de contas, “Sem o sonho, meus caros,/a vida e apenas miséria” (“Aventura temerária”).
J. Fowler
Definir e concluir a parte final de seu texto-poema como o “Mágico ofício da palavra” é um dos momentos cintilantes de Hélder Moura. Em versos ritmados e dialogando diretamente com o leitor, o eu-lírico deixa de lado o diálogo consigo mesmo e repõe na mesa a discussão sobre a criação.
A. Abdulwahab
É de se perceber a beleza simples da capa criada por Magno Nicolau, o editor do livro, a partir de uma inspiração na obra de Helmo – O infinito pi da noite –, criando uma homologia com o que lemos no poema de Hélder Moura: os dólmens de Stonehenge, de conteúdo místico e religioso, encimados por três pontos brilhantes na noite/escuridão, que se alonga na moldura. Três pontos que bem podem ser as “Três Marias”, o conglomerado no interior da Constelação de Órion, também conhecido como o cinturão de Órion, na percepção do brilho que essa constelação traz, quando no verão aparece no oriente, cedo da noite, a anunciar que a estação da maturidade começou.
Há esperança, portanto, paradoxalmente anunciada pela falta de esperança e pelo reconhecimento da importância da estesia, “penas de morte/penas de vida” (“Mistério da literatura”). Eis o primeiro passo para a mudança. E como diz o poeta em “Outra matéria”:
“E se lhe agrada saber
Tenho ainda a marca da fronteira
Entre a escuridão e a estrela.
Talvez por isso meus olhos
Andem tão sombrios nesta estação,
Mas, alcançando tantos e tantos universos,
Quantos universos existem.
Então eu trago a memória
Do início e do fim.”