O tão conhecido primeiro verso de “Art Poétique”, de Paul Verlaine, “De la musique avant toute chose” , encaminha o leitor, aparentemen...

Estesia antes de tudo

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O tão conhecido primeiro verso de “Art Poétique”, de Paul Verlaine, “De la musique avant toute chose”, encaminha o leitor, aparentemente, para o entendimento da poesia como música, no sentido restrito de musicalidade. Será isto mesmo? Na discussão do que é ou do que não é literatura, esta formalidade que reveste a criação com a palavra, o poeta francês busca a música ou ele, sutilmente, vai além e a entende à maneira dos gregos, à maneira de Platão, μουσική, definida como as artes de todas as Musas? Fico com a segunda possibilidade.

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Paul Verlaine ▪ 1844—1896
Hélder Moura em A discreta arqueologia da noite (João Pessoa, Ideia, 2023), que tem como subtítulo quasipoēmas, também inicia uma discussão a propósito da criação literária. O verso final do último poema do seu livro, constituído, na realidade, de um único poema, que se subdivide em temas recorrentes, retoma consciente ou inconscientemente, não importa, o último verso da última estrofe da “Art Poétique” de Verlaine (em tradução nossa):

Que ton vers soit la bonne aventure Éparse au vent crispé du matin Qui va fleurant la menthe et le thym… Et tout le reste est littérature.
(Que teu verso seja a boa aventura Esparsa ao vento da manhã crispado Tendo a menta e o tomilho farejado... E todo o resto é literatura.)

Contrapõe Hélder Moura, no poema “Mágico ofício da palavra”, indagação final do livro:

Mas, de que adianta buscar O escritor em sua lavra, No mágico ofício da palavra, Quando trama a tessitura, Se esculpe sua escritura Com os cinzéis íntimos do ser, De que importa ele saber, O que é literatura?

Se para Verlaine a música, no sentido de criação artística, se sobrepõe ao conceito formal chamado literatura, conceito que cabe aos críticos definir, intento nem sempre conseguido, por mais que tentem, para Hélder Moura tem mais sentido assumir, tangenciando o conselho de Verlaine, que saber o que é literatura não fará o poeta mais poeta. Às vezes, até o fará menos.

Retomando Verlaine, e parafraseando-o, mas ficando na substância do seu poema, eu diria: “De l’ αἴθησις avant toute chose” – Estesia antes de tudo. E é assim que Hélder Moura faz, colocando a emoção nas palavras de um eu-lírico
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Hélder Moura
que se deixa levar por um turbilhão incômodo, que se poderia chamar incompletude. O eu-lírico, equipado com todo um arsenal que pode levá-lo ao aniquilamento, exprime uma desesperança, embora não se faça absoluta, tendo em vista que há uma necessidade de se exercer um diálogo constante, um diálogo com a noite, simbólica ou não, a noite real ou aquela que vive dentro de nós, parindo todos os fantasmas e medos que nos atormentam.

Arte é estesia, emoção, e as emoções, noturnas e não menos soturnas, estão aqui, explícitas: mágoa, tristeza, melancolia, angústia, ressentimentos, amargura, dor, ódio, desespero, desencontro, ansiedade... Não são as melhores, mas são emoções, e a arte não suscita apenas as boas emoções, senão emoções. O mendigo que o eu-poético percebe, não é senão o espectro de si mesmo (poema “O espectro”), como o espelho diante do qual ele vê que sua “face era uma máscara” (“Toda a poesia do mundo”):

“Vi que arrastava pesado Pacotes de ódios cristalizados, Embrulhos amassados de ressentimento, Mágoas em pequenas pílulas negras, Bulas de tristeza e melancolia Em quantidade que jamais vira. Sacolas de uma amargura pestilenta, Também vi sob seus braços.
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Não vejo outro título para este poema de Hélder Moura que não seja A discreta arqueologia da noite. Entendamos arqueologia mais do que a ciência que busca o princípio das coisas e da vida. Entendamo-la como a necessidade de buscar na escuridão de nós mesmos, na origem de nossos temores, o lógos, que nos faz exercer a nossa condição humana. Em seu livro, Hélder Moura joga com um duplo lógos: o lógos do diálogo, que se intenta consigo próprio, em que o eu se vê também como o outro; e o lógos da tentativa de conceituação ou da discussão sobre o ato de criar, num livro cíclico, que começa e termina com a provocação poética – “Mistério da literatura” e “Mágico ofício da palavra” – mediada por mais um poema sobre o assunto – “Toda a poesia do mundo”. Um lógos, portanto, que suscita o poético; outro que instaura o metapoético, ambos advindos da póiesis (ποίησις).

A que vem esse diálogo em dupla dose, a não ser, como diz Hélder Moura, em “Ali onde estão os demônios” (p. 29):

“Para prospectar essa dolorosa arqueologia, Que vá, mas seja capaz de sobreviver.”

O subtítulo, quasipoēma, deveria ser quasipoēsia. Incontestavelmente, o que Hélder Moura traz em seu livro são poemas, aqui e acolá é que reconhecemos alguma cintilação poética, numa dor aflitiva, que procura um diálogo quase impossível e dilacerado com uma noite angustiante, que um dia poderá fazer manhã, afinal de contas, “Sem o sonho, meus caros,/a vida e apenas miséria” (“Aventura temerária”).

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J. Fowler
Definir, contudo, como poderia ser o subtítulo é da formalidade da literatura, é da alçada do crítico, pertence ao campo da arquitextualidade. O criador define o que ele sente que é o que ele criou. E diz bem. O poema é a coisa feita, realizada; a poesia é o ato de criar, que se quer em continuidade, sem nunca acabar. Ao definir o seu poema, como quase poema, Hélder está mais certo do que qualquer crítico poderia dizer. A criação, por mais que se mostre realizada é algo que não acaba, pela insatisfação do criador diante da sua criatura, pela completude que a criação espera de cada leitura que dela se faz.

Definir e concluir a parte final de seu texto-poema como o “Mágico ofício da palavra” é um dos momentos cintilantes de Hélder Moura. Em versos ritmados e dialogando diretamente com o leitor, o eu-lírico deixa de lado o diálogo consigo mesmo e repõe na mesa a discussão sobre a criação.
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A. Abdulwahab
Fica o leitor com o sabor sensível de que, como diz Verlaine, a poesia é o que se evola, como a vida, jamais podendo ser aprisionada nas formas e nas fôrmas que as armadilhas da crítica preparam para ela. Ao deixar a poesia liberta e buscando a expressão estética liberta do lirismo cediço, Hélder Moura comunga com Verlaine: Poesia é vida e estesia, tudo o mais é literatura.

É de se perceber a beleza simples da capa criada por Magno Nicolau, o editor do livro, a partir de uma inspiração na obra de Helmo – O infinito pi da noite –, criando uma homologia com o que lemos no poema de Hélder Moura: os dólmens de Stonehenge, de conteúdo místico e religioso, encimados por três pontos brilhantes na noite/escuridão, que se alonga na moldura. Três pontos que bem podem ser as “Três Marias”, o conglomerado no interior da Constelação de Órion, também conhecido como o cinturão de Órion, na percepção do brilho que essa constelação traz, quando no verão aparece no oriente, cedo da noite, a anunciar que a estação da maturidade começou.

Há esperança, portanto, paradoxalmente anunciada pela falta de esperança e pelo reconhecimento da importância da estesia, “penas de morte/penas de vida” (“Mistério da literatura”). Eis o primeiro passo para a mudança. E como diz o poeta em “Outra matéria”:

“E se lhe agrada saber Tenho ainda a marca da fronteira Entre a escuridão e a estrela. Talvez por isso meus olhos Andem tão sombrios nesta estação, Mas, alcançando tantos e tantos universos, Quantos universos existem. Então eu trago a memória Do início e do fim.”

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  1. Hélder Moura16/9/23 10:50

    Mestre Milton, o que você fez comigo? Sua análise, de incomensurável percuciencia, retalha magistralmente as vísceras do livro. O verbo precede e procede a vida. E você faz essas revelações de fundo arqueológico, de uma forma que eu jamais poderia fazer. Sua genialidade ao esgarçar de forma quase impiedosa os versos do livro, só enobrece esse quasipoema. Seu texto é um encantamento singular. Minhas mais indiscretas reverências.

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