O crítico literário, professor e poeta Hildeberto Barbosa Filho descobriu as redes sociais. Descobriu, mas a aproximação se fez com a desconfiança própria do homem dos ambientes áridos e pedregosos, acostumado à rispidez no trato com as coisas brutas. Aproximou-se hesitante, meio incomodado com o que não configura a estabilidade da página impressa, duvidando que a efemeridade do meio virtual lhe desse o retorno que os outros meios lhe deram.
Achegou-se mais, pegou o boi pelo rabo e, do tatear inicial, querendo conhecer os segredos do Facebook, equilibrou-se e ganhou firmeza na sela de seus “Pensamentos Provisórios”. Isto feito, deitou-se à vontade na rede, sem se alterar
Hildeberto Barbosa Filho
O resultado é que o experimento titubeante da série publicada no Facebook, iniciada com toda a reserva possível, transformou-se no livro Da volúpia do erro – pensamentos provisórios (Ideia, 2023), integrando mais um volume da sua já extensa bibliografia. E ele fez bem ao operar essa metamorfose, porque quem o lê e o acompanha, no dia a dia da fugacidade própria dos meios virtuais, poderá até se encontrar, discordar, concordar, ignorar, mas dificilmente verá um nexo nos escritos que ali se postam. Uma vez transformados em livros, eis que o nexo surge e ganha relevância com novos sentidos para o leitor, epifania peculiar do livro impresso, que nenhuma tecnologia virtual, por mais sedutora que possa parecer, irá desbancar.
Trago da leitura de seu livro um entendimento particular do que sejam os “pensamentos provisórios”, título que vira subtítulo, na busca incessante e obstinada de Hildeberto Barbosa Filho
“Se estou aqui, no Facebook, onde nada existe, e tudo se pulveriza, quero crer que a poesia anda por perto.”
p. 103
O tradicional livro impresso vem mostrar que se o meio sucumbe à efemeridade, o pensamento se fortalece e rompe as frágeis barreiras do transitório, para se estabelecer e poder ser acessado com mais facilidade, a partir de um veículo, que alguns querem, senão morto, no mínimo obsoleto, mas que, contrariamente, se mostra com uma saúde de ferro...
M. Gionfriddo
Por que este entendimento? É a própria natureza dos escritos que nos revela isto. Hildeberto ensina, discorre, provoca, cutuca, expõe e se expõe, mas avança, sobretudo, numa forma que deixa mais evidente aquilo que ele crê ser o seu lado essencial: o da criação,
B. Anne
Se o erro provoca a volúpia, também se aprende com ele, o que não exclui a possibilidade de novas errâncias. A prova disso é o fato de que Hildeberto marca um deslocamento e apartação, com relação à fossilizada crítica dos cediços escritos acadêmicos, encontrada nas monografias, dissertações e teses, nas quais o tecnicismo prevalece sobre a criatividade. Ver antes e refletir sobre os fatos e, dentre eles, repensar constantemente o fenômeno literário, mesmo que seja em trechos sintético, é também escolher fazer a melhor das críticas, por causa da substância que existe em cada publicação, conforme podemos ver abaixo:
“Sempre tive a preocupação em ampliar a escala cognitiva de nossos objetos formais de estudo e me atirar, sem temer qualquer risco, nem mesmo o ridículo, nos abismos indevassáveis dos conhecimentos heterodoxos. Dos saberes que não passam pelo interesse nem pelos cuidados da academia. Se não ousarmos na volúpia da incerteza, na blasfêmia da curiosidade, nos sortilégios da loucura, nunca sairemos da mesmice.”
p. 19
Ora, de ridículo o livro nada tem. À parte alguns equívocos de ordem pessoal, o que é um direito pessoal e intransferível de Hildeberto, na crença de que este ou aquele candidato irá mudar a sociedade, sem que exista um projeto exequível de educação integral e obrigatória, o que há no seu livro são ensinamentos de várias ordens, ainda que ele jamais assuma um tom professoral e se diga infenso às certezas dos que se acham dono do saber.
DG'Art
Os seus escritos são multifacetados. Voltam-se para a terra de origem, mostrando o seu lado árido, agônico, na identificação da vida, não menos árida e agônica (“Sou louco, meu mundo se faz na agonia das estrelas”, p. 84), mas trazendo ainda outro componente de maior complicação, que são as incertezas e seus abismos. Quando trata da crítica, Hildeberto, como já dissemos, refuta o seu engessamento, os politicamente corretos, a exaltação de uma arte valorizada pelos modismos identitários, valorização por qualquer coisa, menos por ser arte produzida pelo alumbramento e para a estesia:
“Escrever literariamente, no entanto, é outra coisa. Na ficção ou na poesia, os temas, as ideias, os conceitos, as motivações, os assuntos, enfim, todo o magma da realidade existencial se põe a serviço da linguagem, na sua possibilidade de experiência criativa e estética.”
p. 117-8)
Indo em sentido contrário ao que ainda se faz, Hildeberto vai mergulhando, cada vez mais, na crítica vivificada pelo poético. Surgem, assim, concepções inovadoras sobre a poesia (“A poesia sou eu, de carne e osso. Pura e bastarda metafísica.”, p. 123), o poema (“O lugar ideal para o que ainda não existe e o que não acontece.”, p. 17; “Talvez seja o poema esse lugar distante. Distante. Inalcançável. Indefinível.”, p. 105), a crônica, o romance, a linguagem (“Poesia ... são as palavras virando fantasia.”, p. 63; “Escrever parece com um açude estourando.”, p. 73; “Sem linguagem literária, nenhuma narrativa existe.”, p. 122) e, claro, sobre o poeta
C. Deluvio
“Quando algo se enuncia, mesmo pela fecunda humildade ou pelo alcance transversal de seus múltiplos sentidos, consubstanciais à forma secreta da linguagem artística, algo se oculta, algo se esquece, algo ainda não pode existir.”
p. 17
É no silêncio da criação e na ausência do que não há como se dizer completamente, que se instaura a criação (“O poema ainda é pouco para ditar as aventuras inomináveis da poesia.”, p. 98), verdade ignorada por tantos que se entregam a um ofício que não conhecem (“Quantos deveriam vender louças em vez de escrever!”, p. 25). Na crítica, às vezes ferina, Hildeberto expressa a clareza de quem vive a poesia e não sabe traduzir-se que não seja com a força de sua criação:
“Nada tem sentido, se nós não o criarmos. Sou dos que pensam que a palavra poética pode isso.”
p. 55
Ou
“O verdadeiro crítico é sempre um criador, e o verdadeiro criador é sempre um crítico.”
p. 71
Na luta com a palavra, à procura de uma simbiose perdida, Hildeberto vai nos legando sentidos múltiplos e inseparáveis para a poesia, para a criação, numa definição que sempre se altera, mas sempre se completa e nunca é definição definitiva, porque poética, porque viver a poesia é bem melhor que teorizá-la – “Detesto teorias sobre aquilo que pode ser poesia” (p. 65). Isto não significa que, como crítico que exerceu a labuta por anos a fio e ainda a exerce, Hildeberto despreza a teoria, o estado da poíesis. Significa que ele conseguiu vencer o crítico que conhece o objeto de seu trabalho apenas por fora, prevalecendo o que realiza com a poesia um habitar mútuo:
“Uma coisa que me possui e, ao mesmo tempo, de mim se afasta, ainda que o poema esteja consumado.”
p. 81
Hildeberto Barbosa Filho ▪ Imagem: TV UFPB