O crítico literário, professor e poeta Hildeberto Barbosa Filho descobriu as redes sociais. Descobriu, mas a aproximação se fez com a...

''Poesia, as palavras virando fantasia''

hildeberto barbosa pensamentos provisorios
O crítico literário, professor e poeta Hildeberto Barbosa Filho descobriu as redes sociais. Descobriu, mas a aproximação se fez com a desconfiança própria do homem dos ambientes áridos e pedregosos, acostumado à rispidez no trato com as coisas brutas. Aproximou-se hesitante, meio incomodado com o que não configura a estabilidade da página impressa, duvidando que a efemeridade do meio virtual lhe desse o retorno que os outros meios lhe deram.

Achegou-se mais, pegou o boi pelo rabo e, do tatear inicial, querendo conhecer os segredos do Facebook, equilibrou-se e ganhou firmeza na sela de seus “Pensamentos Provisórios”. Isto feito, deitou-se à vontade na rede, sem se alterar
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Hildeberto Barbosa Filho
com os seus balanços, ora amenos, ora desenfreados, e, sem meios termos, Hildeberto levou para a crítica e para a poesia o agon contumaz da vida, expressando a inquietação de quem habita o conflito de viver – “Sou, a todo minuto, um desconhecido” (p. 124).

O resultado é que o experimento titubeante da série publicada no Facebook, iniciada com toda a reserva possível, transformou-se no livro Da volúpia do erro – pensamentos provisórios (Ideia, 2023), integrando mais um volume da sua já extensa bibliografia. E ele fez bem ao operar essa metamorfose, porque quem o lê e o acompanha, no dia a dia da fugacidade própria dos meios virtuais, poderá até se encontrar, discordar, concordar, ignorar, mas dificilmente verá um nexo nos escritos que ali se postam. Uma vez transformados em livros, eis que o nexo surge e ganha relevância com novos sentidos para o leitor, epifania peculiar do livro impresso, que nenhuma tecnologia virtual, por mais sedutora que possa parecer, irá desbancar.

Trago da leitura de seu livro um entendimento particular do que sejam os “pensamentos provisórios”, título que vira subtítulo, na busca incessante e obstinada de Hildeberto Barbosa Filho
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pelo título mais adequado – “Não é o título o primeiro chamariz que nos seduz e nos convoca para a feliz e venturosa viagem da leitura?” (p. 93). Provisório, se assim se pode dizer, é o meio que encerra estes escritos de Hildeberto, característico do momento tecnológico virtual tão peculiar que estamos vivendo. Tudo deve ser rápido, para ser consumido, num átimo e no mesmo instante de sua produção, sem criar vínculo entre as postagens de ontem e de hoje, menos ainda com as de amanhã. Daí a dificuldade de estabelecimento de um nexo, que o livro recupera e expõe de modo claro ao leitor atento. Ao poeta não escapa essa concepção, ao farejar, ainda que na virtualidade, a presença da poesia:

“Se estou aqui, no Facebook, onde nada existe, e tudo se pulveriza, quero crer que a poesia anda por perto.”
p. 103

O tradicional livro impresso vem mostrar que se o meio sucumbe à efemeridade, o pensamento se fortalece e rompe as frágeis barreiras do transitório, para se estabelecer e poder ser acessado com mais facilidade, a partir de um veículo, que alguns querem, senão morto, no mínimo obsoleto, mas que, contrariamente, se mostra com uma saúde de ferro...

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M. Gionfriddo
Prefiro, ao continuar o raciocínio, ter outro significado para o termo provisório. Vejo, após a leitura continuada do livro de Hildeberto, que o termo não pode ser entendido como algo temporário, mas com o sentido de prover, tanto abastecendo o pensamento, quanto, naquilo que me diz a sua etimologia, de adiantamento da visão, através de uma reflexão momentânea, mas que avança para ver antes, como nos lembra o verbo provĭdĕo, provĭdēre, de que é proveniente.

Por que este entendimento? É a própria natureza dos escritos que nos revela isto. Hildeberto ensina, discorre, provoca, cutuca, expõe e se expõe, mas avança, sobretudo, numa forma que deixa mais evidente aquilo que ele crê ser o seu lado essencial: o da criação,
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B. Anne
mãe do fenômeno estético. Hildeberto avança em direção ao poético, destemido e de peito aberto, porque sabe que é com a poesia e na poesia, que o provisório se faz permanente – “Vivo por ela, a poesia. Vivo para ela, a poesia. Vivo com ela, a poesia” (p. 29).

Se o erro provoca a volúpia, também se aprende com ele, o que não exclui a possibilidade de novas errâncias. A prova disso é o fato de que Hildeberto marca um deslocamento e apartação, com relação à fossilizada crítica dos cediços escritos acadêmicos, encontrada nas monografias, dissertações e teses, nas quais o tecnicismo prevalece sobre a criatividade. Ver antes e refletir sobre os fatos e, dentre eles, repensar constantemente o fenômeno literário, mesmo que seja em trechos sintético, é também escolher fazer a melhor das críticas, por causa da substância que existe em cada publicação, conforme podemos ver abaixo:

“Sempre tive a preocupação em ampliar a escala cognitiva de nossos objetos formais de estudo e me atirar, sem temer qualquer risco, nem mesmo o ridículo, nos abismos indevassáveis dos conhecimentos heterodoxos. Dos saberes que não passam pelo interesse nem pelos cuidados da academia. Se não ousarmos na volúpia da incerteza, na blasfêmia da curiosidade, nos sortilégios da loucura, nunca sairemos da mesmice.”
p. 19

Ora, de ridículo o livro nada tem. À parte alguns equívocos de ordem pessoal, o que é um direito pessoal e intransferível de Hildeberto, na crença de que este ou aquele candidato irá mudar a sociedade, sem que exista um projeto exequível de educação integral e obrigatória, o que há no seu livro são ensinamentos de várias ordens, ainda que ele jamais assuma um tom professoral e se diga infenso às certezas dos que se acham dono do saber.
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DG'Art
Muito do que Hildeberto afirma, na provisoriedade do meio eletrônico, adquire no livro uma convicção profunda, nunca dogmática, sempre profundamente poética – “A poesia pulsa, jubilosa e aguerrida, na formulação de sua fala universal e na ambiguidade de seu idioma intraduzível” (p. 88).

Os seus escritos são multifacetados. Voltam-se para a terra de origem, mostrando o seu lado árido, agônico, na identificação da vida, não menos árida e agônica (“Sou louco, meu mundo se faz na agonia das estrelas”, p. 84), mas trazendo ainda outro componente de maior complicação, que são as incertezas e seus abismos. Quando trata da crítica, Hildeberto, como já dissemos, refuta o seu engessamento, os politicamente corretos, a exaltação de uma arte valorizada pelos modismos identitários, valorização por qualquer coisa, menos por ser arte produzida pelo alumbramento e para a estesia:

“Escrever literariamente, no entanto, é outra coisa. Na ficção ou na poesia, os temas, as ideias, os conceitos, as motivações, os assuntos, enfim, todo o magma da realidade existencial se põe a serviço da linguagem, na sua possibilidade de experiência criativa e estética.”
p. 117-8)

Indo em sentido contrário ao que ainda se faz, Hildeberto vai mergulhando, cada vez mais, na crítica vivificada pelo poético. Surgem, assim, concepções inovadoras sobre a poesia (“A poesia sou eu, de carne e osso. Pura e bastarda metafísica.”, p. 123), o poema (“O lugar ideal para o que ainda não existe e o que não acontece.”, p. 17; “Talvez seja o poema esse lugar distante. Distante. Inalcançável. Indefinível.”, p. 105), a crônica, o romance, a linguagem (“Poesia ... são as palavras virando fantasia.”, p. 63; “Escrever parece com um açude estourando.”, p. 73; “Sem linguagem literária, nenhuma narrativa existe.”, p. 122) e, claro, sobre o poeta
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C. Deluvio
(“O poeta que é poeta sabe do espanto que sua palavra deve preservar nas fibras nervosas do poema.”, p. 36; “Poeta não se publica, faz haraquiri com as adagas da linguagem.”, p. 108). Tudo perpassado pela criação, cerne e substância do viver e do existir. Veja-se, por exemplo, que maneira encontra Hildeberto para falar da tão surrada diferença entre paradigma e sintagma, compreendendo que a poesia é mais possibilidade do que realização:

“Quando algo se enuncia, mesmo pela fecunda humildade ou pelo alcance transversal de seus múltiplos sentidos, consubstanciais à forma secreta da linguagem artística, algo se oculta, algo se esquece, algo ainda não pode existir.”
p. 17

É no silêncio da criação e na ausência do que não há como se dizer completamente, que se instaura a criação (“O poema ainda é pouco para ditar as aventuras inomináveis da poesia.”, p. 98), verdade ignorada por tantos que se entregam a um ofício que não conhecem (“Quantos deveriam vender louças em vez de escrever!”, p. 25). Na crítica, às vezes ferina, Hildeberto expressa a clareza de quem vive a poesia e não sabe traduzir-se que não seja com a força de sua criação:

“Nada tem sentido, se nós não o criarmos. Sou dos que pensam que a palavra poética pode isso.”
p. 55

Ou

“O verdadeiro crítico é sempre um criador, e o verdadeiro criador é sempre um crítico.”
p. 71

Na luta com a palavra, à procura de uma simbiose perdida, Hildeberto vai nos legando sentidos múltiplos e inseparáveis para a poesia, para a criação, numa definição que sempre se altera, mas sempre se completa e nunca é definição definitiva, porque poética, porque viver a poesia é bem melhor que teorizá-la – “Detesto teorias sobre aquilo que pode ser poesia” (p. 65). Isto não significa que, como crítico que exerceu a labuta por anos a fio e ainda a exerce, Hildeberto despreza a teoria, o estado da poíesis. Significa que ele conseguiu vencer o crítico que conhece o objeto de seu trabalho apenas por fora, prevalecendo o que realiza com a poesia um habitar mútuo:

“Uma coisa que me possui e, ao mesmo tempo, de mim se afasta, ainda que o poema esteja consumado.”
p. 81
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Hildeberto Barbosa Filho ▪ Imagem: TV UFPB
Na leitura de Hildeberto, sente-se que viver é aporia e uma das maneiras de buscar uma possível saída é mergulhar na recriação da vida, a partir do trabalho criativo da linguagem, que permite ao poeta viver nos intervalos da existência, pois só serão escritores os que “fizerem de sua escrita uma travessia estética” (p. 62). Sem o prazer estético a vida é apenas uma passagem sem brilho na imensidão do Cosmos. Longe das certezas e encarando a própria imagem no abismo, Hildeberto procura na reflexão e na criatividade, fugir do que ele chama “era de narciso” (p. 113), o que só é possível tendo a compreensão de que a vida não comporta a exatidão; exatidão que só se vislumbra através da poesia, essa “matemática do delírio” (p. 103).

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