Há duas forças na língua que, segundo Saussure, se opõem simultaneamente: o espírito de campanário (esprit de clocher) e o espírito...

Estrangeirismos e empréstimos

estrangeirismo linguistica
Há duas forças na língua que, segundo Saussure, se opõem simultaneamente: o espírito de campanário (esprit de clocher) e o espírito de intercurso. O primeiro visa a assegurar a estabilidade da língua diante de influências estrangeiras; o segundo opera de forma a permitir a entrada na língua de empréstimos e estrangeirismos.

O empréstimo é uma forma ou expressão linguística que uma língua aceita e adota de outra. O que distingue o empréstimo do estrangeirismo é que este ainda não se integrou à língua, enquanto aquele já é do domínio de seus usuários. Assim, palavras como “hábitat” (latim), “déjà vu” (francês), “flashback” (inglês), “Blitz” (alemão) são estrangeirismos. Mas palavras como “balé” (fr. “ballet”), “chofer” (fr. “chauffeur”), “futebol” (ing. “foot-ball”),
“chutar” (ing. “shoot”) são empréstimos, porque já estão incorporados à língua, com roupagem vernácula integral. O empréstimo pode ser externo, quando proveniente de outra língua (como “mantilha”, de origem castelhana) ou interno, quando proveniente de um dialeto, de um registro ou de um falar típico dentro da mesma língua (como “mixar” ou “mixaria”, da gíria dos ladrões; ou “boia”, que designa comida, na gíria militar).

Nem sempre o estrangeirismo adotado numa língua tem o mesmo sentido na língua de origem. Assim, a expressão “outdoor”, usada por falantes do português para designar o quadro em que se fazem anúncios em via pública, não tem esse sentido em inglês, em que “outdoor” significa “ao ar livre”. O que nós denominamos “outdoor” chama-se em inglês “billboard”. O francês “rendez-vous” significa “encontro”, sem a conotação pejorativa de seu uso em português. A expressão “bi Gott” (que significa “por Deus”) do médio alto alemão, usada como invocação empregada para reforçar uma afirmativa, no séc. XV, entrou na língua francesa como “bigot”, com o sentido de “carola”, pessoa muito devota. O termo alemão “Blitz”, que usamos para designar uma batida policial de surpresa, se origina da expressão “Blitzkrieg” (guerra relâmpago), que designava os ataques rápidos e inesperados dos alemães na II Guerra, mas, na língua de origem, “Blitz” significa relâmpago, e não batida policial.

O empréstimo, muitas vezes, faz “turismo”: passa de uma língua A para uma língua B, e volta à língua A com modificações. O português “feitiço” deu origem ao francês “fétiche” que voltou ao português com outro sentido. O substantivo “boeuf”, que, em francês, significa “boi”, foi emprestado ao inglês que o adotou como “beef” na palavra “beefsteak” (fatia de boi), que voltou ao francês como “bifteck” (em português, “bife”).

Um tipo especial de empréstimo é o decalque, termo com que se designa a tradução literal, na língua A, de uma palavra ou expressão de uma língua B, às vezes com a subversão do significado tradicional na língua A dos elementos que constituem a tradução. Por exemplo, “cachorro quente” é decalque do inglês “hot dog”; “salvar”,
com o sentido de “guardar num arquivo do computador”, é decalque do inglês “save”; “realizar”, com o sentido de “entender, perceber”, é decalque do inglês “realize”. A utilização de “gênero” como sinônimo de “sexo” é decalque do inglês “gender”, numa confusão condenável, porque gênero nunca existiu em português como sinônimo de sexo (sexo é distinção semântica, e gênero é distinção gramatical, isto é, uma palavra sempre do gênero feminino, como “criança”, por exemplo, pode designar pessoa do sexo masculino; e vice-versa: uma palavra do gênero masculino, como “mulherão”, designa pessoa do sexo feminino). A expressão “luta de classes”, que designa, no marxismo, o conflito entre classes sociais ou entre o proletariado e a burguesia, é um decalque do alemão “Klassenkampf”. Outros decalques: “quebra-luz” (do fr. “abat-jour”), “arranha-céu” (do ing. “sky-scraper”), “balípodo” ou “ludopédio” (neologismos de Castro Lopes para substituir o ing. “foot-ball”), “auto-estrada” (do fr. “auto-route”), “caminho de ferro” (do fr. “chemin de fer”), etc.

Às vezes o decalque nasce de uma tradução inadequada. Na expressão “Rutschbahn” ou “Rutschberg”, que significa montanha (Berg) de escorregamento (Rutsch), designando uma atração de origem alemã em parque de diversões, o nome “Rutsch” foi indevidamente traduzido para o francês como se fosse o adjetivo “russe”, e a atração ficou conhecida como “montagne russe”, isto é, “montanha russa”.

Um estrangeirismo de uso no Brasil, apenas parcialmente adaptado ao vernáculo, é a palavra “gol”. Alguns gramáticos e o dicionário Houaiss, equivocadamente, postularam a existência de um plural “gois”, apenas virtual e hipotético. Na verdade, “gol” é apenas a adaptação gráfica do inglês “goal”, já que todas as palavras oxítonas terminadas em –ol, em português, têm a vogal tônica aberta, como lençol, terçol, futebol, rol, etc; se “gol” mantém a vogal fechada é porque não é palavra portuguesa, e o plural “gols” é legitimado.

Neologismo é uma palavra inventada (ou com sentido novo). Para reforçar o espírito de campanário, os campeões de neologismos no Brasil são Castro Lopes e Oduvaldo Cozzi. Oduvaldo Cozzi foi muito feliz com seus neologismos relacionados com futebol: escanteio (corner), zagueiro (back), impedimento (off side), falta (foul), penalidade máxima (penalty)... Pena que “tento” (goal) e “arqueiro” (goal keeper) tenham tido pouca aceitação.

Volante é galicismo, como guidon. A diferença é que guidon é usado para bicicleta ou motocicleta. Curiosamente, o francês chauffeur (chofer) designa a pessoa que tem por profissão dirigir um automóvel (como motorista de táxi, por exemplo); o que dirige um caminhão é um routier (derivado de route, estrada); o que dirige um carro de corridas é um pilote (piloto). O que chamamos normalmente de chofer (nome genérico), em francês, é conducteur (condutor). Bijuteria, cabotagem, calambur, abajur, carnê, claque, condessa, engrenagem, engomar, feérico, golpe de estado, marquesa, massagem, matinê, nuance, menu, piquenique, posar (posição artística), reclame, bulevar, chalé, comitê,  confeccionar, creche, crochê, croquis, debutar, detalhe, elite, envelope, etiqueta, festival, fissura, golpe de vista, greve, marrom, penhoar (peignoir), filatelia, chofer etc. são empréstimos de origem francesa.

Castro Lopes propôs neologismos para substituir esses galicismos. Alguns permaneceram, como protofonia (ouverture), convescote (piquenique), ramalhete (buquê), cardápio (menu); outros, nem tanto: castelete ou castelejo (chalé), croquezinho (diminutivo de croque; a palavra francesa crochet é diminutivo de croc), minudência (detalhe),  sobrecarta (envelope), preconício (reclame), ancenúbio (nuance), coribel (carnê), entrosagem (engrenagem), fádico (feérico), hauricanulação (drenagem), postrídio (lendemain), premagem (massagem), telizar (engomar), comitissa (condessa), marquionissa (marquesa), legicídio social (golpe de estado), adunguificar (dar a última demão), festimana ou antemerídio (matinê), demostasia ou  operinsurreição (greve), sigilogia (filatelia), ludâmbulo (turista), lucivelo (abajur), sinesíforo (chofer), runimol (avalanche), neologismo formado por acrografia: Ru (do latim ruere, ruir), ni (do latim nix, neve) e mol (de moles, massa), isto é massa de neve que cai.etc. etc. Parafraseando Drummond, “lutar com vocábulos é a luta mais vã”. A língua é dos seus usuários ou, como diria Houaiss, dos seus utentes...
estrangeirismo linguistica
José Augusto Carvalho é autor de vários livros sobre língua portuguesa, entre os quais Pequeno Manual de Pontuação em Português (Brasília: Thesaurus, 2013, 136 páginas) e Estudos sobre o Pronome (Brasília: Thesaurus, 2016. 134p).

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