Os gramáticos definem a hipálage como um expediente retórico segundo o qual uma palavra ocupa numa frase o lugar que convém logicamen...

Sintaxe ilógica: a Hipálage

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Os gramáticos definem a hipálage como um expediente retórico segundo o qual uma palavra ocupa numa frase o lugar que convém logicamente a outra que com ela mantém um vínculo semântico-gramatical. Quando Guimarães Rosa fala em “presentes mágicos dos reis”, num dos seus poemas, ele desloca o adjetivo “mágicos” de “reis” para “presentes”: os reis é que são mágicos (magos), não os presentes. Quando fala no “apetite necrófago da mosca”, Augusto dos Anjos pretende dizer, retoricamente, que a mosca é que é necrófaga, não o apetite. Ao falar, em Os Lus. X, 2, em “abundantes mesas de altos manjares”, Camões quer dizer, retoricamente, “abundantes manjares de altas mesas”. O dicionário do Aurélio apresenta vários exemplos interessantes de hipálage em Miguel Torga, Dalton Trevisan e Eça de Queirós.

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Festa do FeijãoJacob Jordaens, 1638
É por hipálage – que, na verdade, é um processo psíquico, como a sinestesia – que dizemos que o sapato não entra no pé, quando é o pé que não entra no sapato, ou quando dizemos que a roupa não cabe na pessoa, quando é a pessoa que não cabe na roupa. As significações de “entrar” e “caber”, nos exemplos acima, estão subvertidas, e nenhum dicionário de língua as abona.

No Hino Nacional, há um verso que diz: “ao som do mar e à luz do céu profundo”. Osório Duque Estrada, autor da letra do Hino, quis dizer, por hipálage, “ao som do mar profundo e à luz do céu”.

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Baía de GuanabaraDesc., 1914
Mas não constitui exemplo de hipálage (porque não é subversão semântico-gramatical) o uso de verbos com aspecto diverso do que lhes é inerente, em frases como “Calorias não engordam” ou “O cigarro emagrece”. É verdade que as pessoas que ingerem calorias é que não engordam, e os fumantes é que emagrecem. Os verbos estão aí num sentido causativo que os dicionários de língua devem registrar: “Calorias não fazem engordar”, “O cigarro faz emagrecer”.

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G. BickerVan der Helst, c.1642
Frases assim não significam tampouco personificação de coisas, embora a primeira impressão que se tem é a de que o falante afirma que as calorias ficam mais gordas ou que o cigarro fica mais magro. A personificação (ou animismo, ou prosopopeia) é de fato a figura de retórica que confere a objetos inanimados ou a abstrações qualidades próprias do ser humano, como voz, inteligência, compreensão, poder de decisão, etc. Na letra do Hino Nacional, o autor “conversa” com o Brasil (por exemplo: “Verás que um filho teu não foge à luta...”). A prosopopeia não é sintático-semântica. Nos exemplos dados acima, os verbos “engordar” e “emagrecer” assumem um aspecto causativo perfeitamente previsto nos dicionários de língua. No caso do Hino Nacional, o “poeta” está efetivamente “conversando” com o país.

Por isso, também não são casos de hipálage nem de prosopopeia exemplos como “Meu carro dorme na rua” (“dorme” está por “passa a noite”), ou “Está querendo chover (“querendo” está por “ameaçando”), significados que devem fazer parte dos semas específicos desses verbos, isto é, significados que devem estar devidamente registrados nos dicionários de língua, como extensões de seu emprego legítimo (não conotativo, pelo menos não de segundo grau), e não como subversões estilísticas.

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Paris na ChuvaGustave Caillebotte, 1877
Não é apenas o deslocamento de um nome ou de um verbo que produz a hipálage; a permuta de casos e de funções sintáticas também pode caracterizá-la. Assim, uma expressão aparentemente errada, como “dar a luz a uma criança” pode ser adequadamente justificada como uma hipálage popular, interpretável como “dar uma criança à luz”. A própria expressão “dar à luz” é de origem metafórica: o bebê está num ambiente escuro (o útero materno); o nascimento equivale, portanto, à passagem da escuridão à luz. Não é à toa que se diz que um livro “vem a lume” quando é publicado: “lume” aí está no sentido de luz.

Por isso, o professor deve estar atento, na correção de redações, a esses pretensos desvios de norma: dar a luz a uma criança é expressão tão legítima quanto dar à luz uma criança; aquela, por hipálage; esta, por metáfora.
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José Augusto Carvalho, Mestre em Linguística pela Unicamp e Doutor em Letras pela USP, é autor de vários livros sobre língua portuguesa, como: Pequeno Manual de Pontuação em Português (Brasília, Thesaurus, 2013) e Estudos sobre o Pronome (Brasília: Thesaurus, 2016).

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