No Nono Bolsão do Oitavo Círculo do Inferno, da Commedia de Dante, estão os semeadores de discórdia, num desdobramento do Bolsão anterior, onde se encontram os maus conselheiros, estabelecendo não só uma ligação entre os dois sítios, como uma completude do assunto, tendo em vista que os maus conselhos visam, na sua origem, a semeadura da cizânia.
Ao saírem do Oitavo Bolsão (Canto XXVII) e chegarem ao Nono (Canto XXVIII), Dante e Virgílio testemunham uma cena que bem pode justificar a existência posterior do adjetivo dantesco... O número dos condenados,
Gustave Doré, S.XIX
Há, neste Canto XXVIII, uma introdução, constituída pelos 21 primeiros versos, que funciona como um misto de proposição e invocação, mas sutilmente tecida, de modo que o leitor, se quiser absorver o seu conteúdo, deverá se demorar na sua leitura. E, a depender de seu horizonte de expectativa, ele vai descobrir o tecido original, de onde partiu a composição dos versos iniciais.
Para a surpresa de muitos leitores, afirmo que Dante inicia o Canto XXVIII fazendo uma alusão a Homero, tomando como base o Canto II da Ilíada, no qual se encontra a segunda Invocação do poema (484-493), com o intuito de dar início ao famoso Catálogo dos Heróis e das Naus (494-779/85). Embora não exista, nesse momento, no texto de Dante, nenhum chamamento às Musas, como há em Homero, o sentido é semelhante: é impossível para uma boca ou um peito humano narrar o acontecido. Para Homero, a grande quantidade de heróis Argivos (nome dados aos gregos), em exaltação;
G. Doré, S.XIX
Vê-se, portanto, que são processos semelhantes de construção, com intenções, contudo, diferentes, apontando para a impossibilidade de se dizer algo cuja natureza é impossível de ser reproduzida pela palavra oral ou escrita. Algo que só poderá transmitir a sua grandiosidade heroica ou a vileza do seu horror, com o testemunho dos olhos. O paralelismo é inquestionável.
No caso do Canto XXVIII, tendo o horror como contraponto ao louvor homérico, Dante reúne várias guerras históricas, com seus muitos mortos, cujo intuito é comparar a carnificina acontecida com a visão horrífica que ele tem dos condenados nesse bolsão do inferno. Parece-nos ser com esse propósito que ele invoca implicitamente Homero, tendo em vista que o poeta grego nos dará, ao longo da Ilíada, uma visão cruenta da guerra, com os muitos detalhes das feridas mortais provocadas pelo embate entre gregos e troianos, cujas batalhas se estendem do Canto IV ao XXII. É só verificar.
Batalha de CanasJohn Trumbull, 1773
Batalha de TagliacozzoFriedrich Kaiser, S.XIX
Todas essas guerras seriam ainda insuficientes para dar uma ideia do que ele, Dante, testemunha, no bolsão de aspecto repugnante.
G. Doré, S.XIX
São importantes para essa compreensão, as metáforas do fogo e da cisão, que unem, mais uma vez, os condenados do Oitavo e do Nono Bolsão, os consumidos eternamente pelo fogo, por seus maus conselhos, e os cindidos pela espada afiada do demônio (al taglio de la spada, verso 38), por semearem a discórdia, respectivamente. O fogo, como elemento purificador, envolverá ad aeternum os que, com seus maus conselhos, lançaram no fogo os que os seguiram.
Já a metáfora da espada, como meio de provocar a cisão no condenado, é um recurso mais explicitamente bíblico. Quando Jesus é preso no Horto das Oliveiras, um dos apóstolos corta a orelha de um dos guardas com uma espada. Jesus coloca a orelha do soldado no lugar e adverte-o de que quem ferir pela espada, pela espada será ferido (Mateus, 26, 51-52). Desse modo, os condenados serão cindidos pela espada do demônio, que os atinge sempre, por estarem numa fila sempre retornando ao início do martírio, assim que as feridas são cicatrizadas.
G. Doré, S.XIX
G. Doré, S.XIX
G. Doré, S.XIX
Não se pode desprezar esse veio moral na Divina Comédia, confirmação de que o cerne do Inferno é o Mito de Er. Assim como o personagem platônico da República, Dante desce ao inferno para ganhar experiência plena, não para ser atormentado com penas pelo que fez, quando vivo. Esta é a resposta de Virgílio a Maomé, a respeito do porquê de Dante estar ali (versos 46-51, tradução operacional nossa):
“Nem a morte ainda o atingiu, nem a culpa o leva”,
respondeu o meu mestre, “a atormentá-lo;
mas para lhe dar experiência plena,
a mim, que estou morto, convém levá-lo
inferno abaixo, de círculo em círculo.”























