A casa em discreto rebuliço. Os adultos mais se divertem com a expectativa, parecendo tomados por uma ansiedade de brinquedo. É que a menina vai dar o seu primeiro passeio. Empacotada em lençóis alvinitentes, ela é posta no carrinho e logo agita as mãos. Pode ser entusiasmo, pode ser um surdo apelo de socorro. Afinal, ninguém sabe o que se passa no íntimo da menina.
Evidências exteriores indicam que está tudo bem; ela não tem fome, não tem sede e trescala um perfume confuso, misto de alfazema e dos humores próprios do recesso onde esteve por nove meses. O pai guiando o carrinho, lá vai a menina explorar o mundo...
Celyn Kang
Agora vão pela calçada e passam diante de um jardim. Há plantas, flores e também um cachorro ciumento do espaço que lhe cabe guardar. Late furiosamente para eles. Ocorre ao pai que o quadro bem se presta à alegoria, e antes que a menina chore trata de a compor. As plantas, belas e frágeis, alegram e encantam a vida. Mas nada que seja belo e bom vem de graça; mesmo o que tão na aparência se oferece, como flores num jardim, tem junto ou por trás o seu vigia. Portanto jamais se iluda com o que lhe seja acenado sem preço. Haverá momentos extremos em que o preço vai ser você mesma, a sua alma.
Celyn Kang
Antes que cheguem ao outro lado, passa um automóvel e quase os atropela. No susto o pai empurra o carrinho e bate de frente no meio-fio. A menina protesta chorando, se pudesse dizia um palavrão. O pai pede desculpas e de novo explica: foi mau jeito, e isto vai lhe acontecer muito na vida. Não por maldade nem por ódio, mas unicamente por afobação, você vai infligir sofrimento aos que ama. De nada vai adiantar que se explique; ninguém vai querer saber do carro lhe espremendo. Julgarão tão só a mão imprudente, o gesto inábil que você não soube deter.
















