A casa em discreto rebuliço. Os adultos mais se divertem com a expectativa, parecendo tomados por uma ansiedade de brinquedo. É que a m...

Primeiro passeio

carrinho bebe primeiro passeio pai filha
A casa em discreto rebuliço. Os adultos mais se divertem com a expectativa, parecendo tomados por uma ansiedade de brinquedo. É que a menina vai dar o seu primeiro passeio. Empacotada em lençóis alvinitentes, ela é posta no carrinho e logo agita as mãos. Pode ser entusiasmo, pode ser um surdo apelo de socorro. Afinal, ninguém sabe o que se passa no íntimo da menina.

Evidências exteriores indicam que está tudo bem; ela não tem fome, não tem sede e trescala um perfume confuso, misto de alfazema e dos humores próprios do recesso onde esteve por nove meses. O pai guiando o carrinho, lá vai a menina explorar o mundo...

carrinho bebe primeiro passeio pai filha
Celyn Kang
O primeiro com que se defronta é o sol, mar de luz despejado de uma vez nos seus olhos. Ao ver que ela aperta doloridamente as pálpebras, dá na telha do pai bancar o guia turístico e ir explicando. Que ela tenha calma, pois, se está sofrendo agora, um dia vai abençoar que exista algo como o sol. Graças a ele ocorre um paraíso chamado verão, onde tudo se injeta de saúde, beleza e vida. E quantas vezes no futuro você, encafuada em porões de inverno, vai ter saudades do sol e desejar que ele retome para revigorar tudo ̶̶ com a transfiguração de sua luz e a energia de seu calor.

Agora vão pela calçada e passam diante de um jardim. Há plantas, flores e também um cachorro ciumento do espaço que lhe cabe guardar. Late furiosamente para eles. Ocorre ao pai que o quadro bem se presta à alegoria, e antes que a menina chore trata de a compor. As plantas, belas e frágeis, alegram e encantam a vida. Mas nada que seja belo e bom vem de graça; mesmo o que tão na aparência se oferece, como flores num jardim, tem junto ou por trás o seu vigia. Portanto jamais se iluda com o que lhe seja acenado sem preço. Haverá momentos extremos em que o preço vai ser você mesma, a sua alma.

carrinho bebe primeiro passeio pai filha
Celyn Kang
Agora atravessam a rua. No caminho uma pedra, uma pedra no caminho. A alusão é óbvia demais, e o pai sorri, calado. Nada de símbolos ou metáforas. Nada quando a situação tão claramente os sugira. Eis uma lição que ele não pode dar à menina agora, talvez nem interesse a ela. Mas a partir desse passeio, dessa rua e talvez desta crônica, fica um encontro marcado.

Antes que cheguem ao outro lado, passa um automóvel e quase os atropela. No susto o pai empurra o carrinho e bate de frente no meio-fio. A menina protesta chorando, se pudesse dizia um palavrão. O pai pede desculpas e de novo explica: foi mau jeito, e isto vai lhe acontecer muito na vida. Não por maldade nem por ódio, mas unicamente por afobação, você vai infligir sofrimento aos que ama. De nada vai adiantar que se explique; ninguém vai querer saber do carro lhe espremendo. Julgarão tão só a mão imprudente, o gesto inábil que você não soube deter.

carrinho bebe primeiro passeio pai filha
Crônica dedicada a Juliana, a menina com quem dei o primeiro passeio e que, já mulher e mãe, aniversariou ontem.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Parabéns para você, Chico, e para Juliana. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir

leia também