Pensei que conhecia bem esse romance, até ler “Aspectos da Técnica Narrativa em Fogo Morto”, que faz parte de Os Labirintos do Discurso, de Hildeberto Barbosa Filho (Unipê Editora, 2005). Afinal, fiz o papel do “demoníaco” Tenente Maurício na adaptação da obra-prima do romancista paraibano para ofilme homônimo de Marcus Farias, em 1976, e escrevi uma versão do livro para o palco,
brilhantemente montada por Fernando Teixeira, com o título de “Papa-Rabo” e selecionada pelo projeto Mambembão, do Ministério da Cultura, que o levou às cinco maiores capitais do país, em 82.
Muito bem.
Mas o que foi que eu não vi em “Fogo Morto”, que Hildeberto viu? Simplesmente o que há de mais sólido em sua composição: o maravilhoso jogo de espelhos entre os antagonistas José Amaro, conhecido como Mestre — por ser renomado, na região, como seleiro —, e o senhor de engenho — Coronel Lula de Holanda - , para uma conclusão do que é a vida vista em conjunto, ou — mais sofisticadamente — sub specie æternitatis.
Vejam:
“O mundo do Mestre corresponde à perspectiva do trabalhador, sobretudo do artesão cujo ofício, devido à nova ordem econômica que vai se estabelecendo, começa a ser substituída pela manufatura industrial”.
“O Coronel Lula de Holanda, apesar de pertencer à classe dominante, não se revela preparado, nem para tocar o engenho, que herdara de seu sogro, nem para acompanhar as inevitáveis mudanças no plano social e econômico, com a chegada do capitalismo no campo”.
Se o Mestre adoece a ponto de o povo confundi-lo com um lobisomem, a epilepsia fragiliza, aos poucos, a figura soberba do Coronel.
Se o Mestre tem uma filha louca e solteirona, o Coronel tem cunhada solteirona e louca.
Se o Mestre, expulso do engenho pelo Coronel, isolado em sua casa de beira de estrada, recorre à justiça feita pelo cangaceiro Antonio Silvino, o Coronel, encerrado em seu engenho decadente, entrega-se, a seu turno (bem no espírito de “Cangaceiros e Fanáticos” de Rui Facó) às orações, “de uma maneira compulsiva e patológica”.
Aí o Mestre é preso e surrado pela volante do Tenente Maurício, e o Coronel tem o engenho invadido pelo grupo de Capitão Antonio Silvino e por ele é degradado.
Entre esses dois seres opostos “que falam para dentro, desenvolvendo verdadeiros monólogos interiores” surge um terceiro maluco, o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha – o Papa-Rabo, que “fala para fora, expondo diretamente aos interlocutores seus pensamentos, desejos e emoções, ali, 'na focinheira', sem arrodeios nem subterfúgios”.
Hildeberto anota, com lápis de ponta extremamente fina: que esse Capitão Vitorino, vulgo Papa-Rabo, é um ser “híbrido, algo de Quixote e Sancho Pança”, “que sai em defesa do Mestre contra o mandonismo do Coronel, e em defesa do Coronel contra a violência sobre ele perpetrada pelo Capitão Antonio Silvino”.
Perfeito.
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Claro que o romance de decadência não era novidade em 43, quando Zé Lins lançou seu livro. Desde o início do século o mundo lia, deslumbrado, a obra de Thomas Mann nessa linha, “Os Buddenbroks”. O jogo especular entre os personagens era um macete ainda mais antigo: Shakespeare se servira dele à vontade no “Hamlet”, em que a falsa loucura do príncipe gera a verdadeira, de Ofélia, e o seu desejo de vingança pelo assassinato do pai, cria a ânsia de vingança do irmão dela, cujo pai ele mata. O pulo do gato, o non plus ultra de Zé Lins está nisto, que Hildeberto saca com incrível acuidade:
“Por mais que a posição social revele a diferença entre o Mestre José Amaro e o Coronel Lula de Holanda, a verdade é que, no plano da condição humana, os dois personagens como que se identificam como seres humanos tragados pela tragédia da dor, da solidão e da morte”.
Aí o gênio de Zé Lins. E o de Hildeberto, ao percebê-lo.