Ainda alcancei os bondes em João Pessoa. Mas, diga-se, já em seu finzinho, pois nasci em 1955 e eles foram extintos nos anos 1960. Tenh...

Bondes, marinetes, ônibus, lembranças aldeãs

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Ainda alcancei os bondes em João Pessoa. Mas, diga-se, já em seu finzinho, pois nasci em 1955 e eles foram extintos nos anos 1960. Tenho uma vaga lembrança de um certo bonde no Ponto de Cem Réis, uma de minhas mais remotas recordações da infância. Não lembro com quem eu estava naquele momento; certamente com papai, imagino, mas não consigo vê-lo naquela cena já esmaecida na memória. Se não me engano, foi no governo de Pedro Gondim que eles desapareceram da paisagem aldeã. Pela equivocada mentalidade da época, não eram compatíveis com a modernidade urbana que começava a se instalar entre nós. Lisboa e outras cidades europeias provam o engano dos nossos dirigentes, tão influenciados, lamentavelmente, pela cultura norte-americana de irrestrito culto aos automóveis. Tivessem sido preservados, hoje seriam uma charmosa atração turística.

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Lisboa, Bairro da Bica - Portugal (2023) Henry Ren
O Ponto de Cem Réis de então ainda era, creio, o do prefeito Oswaldo Pessoa. Só alguns anos depois viria a ousadia arquitetônica do Viaduto Damásio Franca, com suas fontes, jardins e bancos, ainda convidativos ao convívio cotidiano dos pessoenses. O coração urbano da aldeia ainda pulsava forte ali e a vida citadina espalhava-se pelos cafés, padarias, farmácias e outros estabelecimentos comerciais que marcaram tempos idos. Via-se e sentia-se que a cidade começava a crescer, mas ainda sem pressa, permitindo que o passado conservasse uma certa presença no futuro que se anunciava com as mudanças.

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Ponto de Cem Réis (1945) - João Pessoa-PB Gilberto Lyra Stuckert Filho
Fui também contemporâneo das chamadas marinetes, um tipo de ônibus de tamanho menor e estrutura de madeira, ao que me parece. Dessas tenho uma lembrança mais nítida, pois nelas andei na transição para a adolescência. Um de seus pontos era na parte superior da Praça 1817, antes da reforma feita pelo mesmo Damásio, modernizador do centro da capital. Era mais ou menos defronte da casa do advogado e depois desembargador João Santa Cruz, cuja esposa costumava ficar à janela do sobrado vendo o movimento. Essa bela casa foi posteriormente derrubada para dar lugar ao prédio da Assembleia Legislativa, na Praça
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Antigo prédio de A União (demolido)
EPC
João Pessoa, outro imenso equívoco governamental, pois implicou na derrubada do belíssimo prédio do jornal A União, que tão bem combinava com as demais edificações antigas do entorno. Ali, na 1817, os ambulantes de todo tipo comercializavam os seus produtos ao redor das marinetes estacionadas: pipoqueiros, vendedores de rolete de cana, de doces de tabuleiro, de algodão doce e de frutas, numa agitação típica de feira. Lembro-me de que havia também nas redondezas um posto de gasolina, na parte inferior da praça.

Quando as marinetes saíram de cena, os ônibus tomaram o seu lugar. Mas ainda não eram os veículos longos da atualidade e sim veículos de tamanho médio, sem roletas e com cobrador que levava na mão, dobradas entre os dedos, as cédulas de dinheiro que recebiam dos passageiros. Recordo-me bem do ponto que havia na Lagoa, à esquerda de quem descia da Padre Meira. Era dali que partiam os ônibus com destino às praias, parando ao longo da Epitácio para deixar os moradores da Torre, dos Expedicionários, de Tambaúzinho e do Miramar. Outro ponto era o dos ônibus da Viação Roger, em frente ao Cinema Plaza, cujos serviços usei várias vezes para ir ao Colégio Estadual daquele bairro, onde fiz todo o curso ginasial.

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Gilberto Lyra Stuckert Filho
Vivi, portanto, num período aproximado de vinte anos, a passagem dos bondes para as marinetes e destas para os ônibus, com todas as mudanças urbanísticas correlatas, para o bem e para o mal. Minha geração foi testemunha de muita coisa, algumas das quais é melhor esquecer. Compreendo que as certas mudanças urbanas são inevitáveis com o passar do tempo. Mas quando vejo as velhas cidades europeias praticamente intactas – e funcionais - após séculos e séculos, verifico que é perfeitamente possível evoluir sem abrir mão do passado, que é viável adaptar-se aos novos tempos sem destruir a história. Por que será que os nossos dirigentes não viram e não veem isso? Por que acreditam que o progresso não se harmoniza com a herança urbanística que recebemos e da qual dizemos nos orgulhar?

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Paraíba fotos e fatos antigos
Paris, Londres e Lisboa, por exemplo, têm sabido conciliar passado, presente e futuro com sabedoria. Não que não tenham destruído muito. O Barão de Haussmann, por exemplo, para erguer a Paris atual, derrubou meio mundo. Mas faz décadas que lá não se derruba nada e tudo se preserva na parte mais antiga da urbe. As modernidades habitam as periferias, como La Défense. E assim o contemporâneo convive tranquilamente com o antigo. Essa saudável lição as cidades brasileiras, de modo geral, não aprenderam, infelizmente, e continuamos a por a baixo e a deixar cair muitos tesouros.

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La Défense (Paris, 2022) Jannes Van den Wouwer
Um dia, certamente teremos o metrô. Mas a que custo, pergunto. De qualquer modo, não estarei aqui para vê-lo.

Talvez ainda pudéssemos ter os bondes de outrora. Não sei. As marinetes talvez tivessem mesmo que ser substituídas. Não sei. O que imagino saber, como aldeão, é que temos sido – e continuamos a ser – ávidos em destruir, sem madura reflexão, condenando-nos a, depois de quatrocentos anos, ter muito pouco do nosso passado

Não se veja, entretanto, saudosismo nestas palavras. Alguma saudade, sim, mas saudosismo, não. Que se veja indignação diante da insensatez dos que permitiram – e permitem – a degradação de nosso patrimônio histórico e arquitetônico. E também um certo cansaço de ouvir e repetir essas coisas.


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  1. Obrigado, Lúcia.

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  2. Obrigado, Frutuoso.

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  3. Preservação e desperdício de dinheiro público (superfaturamento, caixa 2 etc) não combinam...

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