Se não chegou a ser como Mário de Andrade, que se dizia trezentos e cinquenta, Celso Furtado reuniu em sua unidade biográfica uma adm...

Vários Furtados e um Celso

celso furtado
Se não chegou a ser como Mário de Andrade, que se dizia trezentos e cinquenta, Celso Furtado reuniu em sua unidade biográfica uma admirável multiplicidade de versões, de acordo com as diversas etapas de sua rica trajetória pessoal e profissional. Desde moço, ele quis realizar algo grande na vida, conforme se vê em seu diário. Primeiro quis ser romancista (para quem não sabe, e eu não sabia, seu primeiro livro foi uma coletânea de contos intitulada De
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Nápoles a Paris: contos da vida expedicionária, de 1946); depois foi descobrindo outras direções para onde encaminhar os seus talentos, até chegar à economia, onde inscreveu seu nome como um dos maiores de todos os tempos. Na caminhada, que não foi fácil, abriu mão de alguns projetos e abraçou outros, mudando e evoluindo, mudando para evoluir, sempre inquieto, sempre curioso, sempre aprendiz, como costumam ser os grandes intelectos, aqui e em todo lugar. Vê-se que não foi um economista que nasceu pronto como tal, mas alguém que foi se “convertendo” em economista, num processo de autoconstrução intelectual. E também que, para ele, a economia constituiu menos um fim em si mesma que um meio para compreender a realidade e a História. Ou seja, ele procurou ir além da economia e suas teorias, daí ter alcançado a dimensão de um verdadeiro pensador.

Para quem deseja conhecer melhor esse paraibano de Pombal e cidadão do mundo, acabou de chegar às livrarias a obra dos professores Alexandre de Freitas Barbosa e Alexandre Macchione Saes, ambos da USP, Celso Furtado – Trajetória, pensamento e método, Editora Autêntica, Belo Horizonte, 2025. O livro oferece uma visão panorâmica da vida e da obra do economista, uma espécie de biografia intelectual, acessível tanto aos cultores do economês
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quanto ao leitor comum. É, portanto, uma prova concreta do quanto a presença de Furtado permanece forte entre nós, anunciando uma longa posteridade para ele.

Não é o caso aqui de narrar a evolução do pensamento econômico de Furtado, mesmo que de forma resumida. Para isso, o leitor dispõe do livro acima citado. Fiquemos, pois, nas generalidades, mais condizentes com este espaço que ora ocupo e com as minhas capacidades.

Começando em Pombal, no sertão da Paraíba, onde veio ao mundo, filho de um pai magistrado e de uma mãe culta e dada a leituras, ou seja, um lar diferenciado e propício a uma educação esmerada, depois passando por João Pessoa e Recife, onde estudou como menino e adolescente, ele seguiu para o Rio de Janeiro, onde se formou em Direito e começou a trabalhar. E daí, podemos dizer, ganhou o mundo, mundo que começou a desvendar, maravilhado, na condição de membro da Força Expedicionária Brasileira, na Segunda Grande Guerra. O posterior doutoramento na Sorbonne, em Paris, habilitou-o a um lugar na então recém-criada CEPAL, no Chile, onde seria discípulo do grande
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Raul Prebisch USP
argentino Raúl Prebisch, o que, na época, não era pouco. Seguiram-se uma fértil temporada acadêmica em Cambridge, na Inglaterra, durante a qual escreveu o seu clássico Formação econômica do Brasil, por muitos considerado uma obra-prima, o ingresso no BNDE, a participação na criação da Sudene e sua direção inaugural, o exílio e tantas coisas mais, que só mesmo a extensão de um livro para cabê-las. De tudo, impossível não concluir, com orgulho paraibano e brasileiro, a grandeza desse homem que pelo visto nasceu a ela destinado, mas que muito fez por merecê-la.

A formação e a direção da SUDENE é considerada “a luta mais árdua” que ele enfrentou como homem público. Isso devido às resistências da atrasada e pouco patriótica elite nordestina, uma gente acostumada a usufruir, de forma egoísta, política e economicamente da pobreza da região e de seu povo sofrido. Não interessava então – como agora – aos usineiros e aos latifundiários rurais, remanescentes dos coronéis da República Velha, o desenvolvimento do Nordeste e a promoção de seus habitantes, já que isso lhes suprimiria os recursos materiais e humanos sobre os quais tradicionalmente basearam seu domínio. Furtado enfrentou esses poderosos adversários altivamente, principalmente compreendendo os interesses que os moviam, perdendo umas batalhas e ganhando outras, mas sempre avançando, dentro do possível. A Furtado e à SUDENE se deve, afinal, a razoável industrialização de que passou a desfrutar o Nordeste, hoje menos rural que urbano e menos à mercê daquela elite predatória e nefasta.

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Celso Furtado Sudene
Em conversa com sua viúva, a notável escritora e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, ela contou-me que não raro ele vinha anonimamente a João Pessoa, onde ficava na casa de parentes, para rever os lugares de sua infância e juventude. Gostei muito de saber disso, pois contestou a falsa imagem de um Celso Furtado distanciado e pouco simpático relativamente à terra natal. Não quis ele pertencer à nossa Academia de Letras, sob o argumento de que, residindo no Rio de Janeiro, não poderia participar ativamente da mesma. Compreende-se. Mas não sabia ele que o só ingresso seu na agremiação já bastava ao justificado orgulho aldeão da entidade. Falar em Rosa, é preciso sempre reconhecer o quanto ela tem feito pela posteridade do marido, organizando e providenciando inúmeras publicações, como os diários, a correspondência e outros valiosos inéditos, contribuindo assim – e muito – para os estudos furtadianos e a cultura brasileira.

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Rosa Freire d’Aguiar Companhia das Letras
Duas curiosidades: ele, doutorado pela Sorbonne, chamava Ulysses Guimarães de “doutor Ulysses”, enquanto este o chamava de “amigo”. E quando, de volta ao Brasil, filiou-se ao PMDB, utilizou-se do diretório paraibano do partido, não sei se por razões sentimentais ou pragmáticas.

Acompanhando-se o longo percurso profissional e intelectual de Celso Furtado, verifica-se que de fato ele foi, antes e acima de tudo, um servidor público, no sentido mais elevado da expressão. Sua inteligência e seus esforços estiveram sempre a serviço do Brasil e da humanidade, nunca a serviço de si mesmo nem de empresas e outros interesses privados. Foi pesquisador, professor, técnico e dirigente em órgãos governamentais, universidades e entidades internacionais, permanentemente voltado para a compreensão e a solução de questões de interesse público.

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Quem procurar informações sobre sua vida pessoal em sua Obra autobiográfica certamente irá se decepcionar. Discretíssimo, ele parece evitar quaisquer confissões. Onde o encontraremos menos contido será nos seus Diários, como seria de esperar, mas ainda assim de forma muito parcimoniosa. Quem pode nos revelar um pouco de sua intimidade é Rosa Freire d’Aguiar, sua companheira de muitos anos, mas ela ainda não se dispôs a tanto e é possível que nunca venha a fazê-lo, por fidelidade à discrição do marido. Conhece-se bastante do pensamento econômico de Furtado, mas, para os estudiosos e os leitores em geral, seria interessante conhecer também um pouco de sua personalidade, sua maneira de ser, seus gostos pessoais, suas idiossincrasias, seus relacionamentos com figuras públicas e assim por diante. O conhecimento do Celso, acessível apenas aos muito próximos.

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Celso Furtado Sindsep-PE
O leitor poderá constatar no livro referido as diversas facetas acadêmicas e profissionais que Furtado teve de assumir ao longo de sua extraordinária existência, sem nunca perder sua identidade pessoal. Pelos vários cargos públicos que exerceu, foi chamado de “intelectual estadista”, o que de fato foi mesmo, uma vez que, ao contrário do que costuma acontecer com a intelectualidade, ele teve algumas oportunidades de, dentro do Estado, implementar – ou buscar implementar – as teses que propunha em seus livros. O Ministério da Cultura e a Academia Brasileira de Letras, onde sucedeu a Darcy Ribeiro, coroaram no Brasil, em seus anos finais, sua vitoriosa trajetória. Pelo mundo afora, após vinte anos de seu falecimento, em 2004, seu nome continua a brilhar como um dos mais importantes economistas do século XX. Tudo isso confirma o destino grandioso que estava, desde o início, reservado ao genial menino da improvável Pombal paraibana, um menino certamente marcado pelas dificuldades do seu chão natal e que dedicou seus singulares talentos a compreendê-las, explicá-las, diminuí-las e, na medida do possível, dar-lhes fim.

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