E um grito sem voz foi se infiltrando pela cidade, lento e implacável. Os indivíduos se esvaziavam do que lhes definia — celulares mortos nas mãos, automóveis inúteis, trabalho suspenso no vácuo, cartões sem valor, uma pressa que já não levava a lugar algum. E, numa prece sufocada, percebeu-se sem conexão, sem condução, sem dinheiro... sem vida.
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Nas esquinas, os veículos se estranhavam em colisões surdas; as vias se entupiam com uma rapidez opressora, bloqueando qualquer fuga.O dia foi escurecendo por dentro, frio e assustador.
Nas casas sem janelas, as portas se trancaram como túmulos. Cessaram os mercados, os bancos, as escolas, as igrejas, o socorro, os vizinhos... e a fé. Mas antes que a ficha caísse por completo, os escolhidos rasgaram suas vaidades e esvaziaram as prateleiras com as mãos certeiras — não podia faltar alimento se acaso lhes faltassem os dias. Os outros? Eram apenas outros. A salvação estava garantida, se durar mesmo que três ou quatro dias, ou quarenta anos.
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A escuridão interna, mutiladora, surpreendeu sem aviso. Para quem sobreviveu ao Covid e às suas sequelas, foi como assistir a um filme rebobinado ao avesso, prendendo o fôlego para que o ar não virasse uma luta brutal.
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O kit de sobrevivência vinha sendo sussurrado nas entrelinhas há tempos. Talvez esta amostra grotesca agora nos force a crer que não se trata mais de reflexão, mas de um lembrete cruel da vulnerabilidade humana diante de doenças que resistem no coração do próprio homem.
A fantasia melíflua de que desconectados, nos conectamos, e de que o radinho de pilha bastaria para nos manter informados diante das adversidades, mal encobre a força sombria que se move por trás dos muros. Um refrigério enlouquecedor — pois a realidade, crua e inegável, escancara o que sempre soubemos, mas nos recusamos a admitir: isto não só é possível, isto já começou.
E seguimos, enquanto a conta deste apagão ainda não chegou.
Lisboa, 28 de abril de 2025.