A autora, Claudine Monteil, conta a história de Marie Curie e de suas duas filhas, Irene e Eve, adotando um viés mais singular, desvendando o lado individual dessas mulheres-mitos, com base em fatos verídicos. Consegue desenvolver uma trama repleta de fatos curiosos do ponto de vista histórico e humano, descrevendo a sociedade da época, suas limitações e preconceitos e como era ser mulher nesse ambiente social. Com isso, a narrativa me parece ganhar um lado mais verossímil, pois surge, sob sua lente, o ser humano com suas qualidades e fraquezas e não apenas os feitos extraordinários dessas três mulheres excepcionais. O retrato da Paris daqueles anos, os políticos de então, os costumes, os avanços científicos, as duas grandes guerras, o surgimento do nazismo compõem um amplo painel e oferecem ao leitor uma visão da vida que se levava naqueles anos. Com isso, é possível avaliar a coragem dessas mulheres, a tenacidade em perseguir seus projetos, a firmeza no enfrentamento e na defesa de suas causas. Compreende-se que estas mulheres estavam à frente de seu tempo.
Paris, início do século XX: Boulevard Saint-Michel. ▪ Fonte: lartnoveau
A hora é das ciências. O positivismo de Augusto Comte, os trabalhos de Pasteur e de Darwin têm considerável repercussão. Quem não conhece Marie Curie única mulher a receber o Nobel duas vezes e em campos diferentes? Primeiro de física em 1903 junto com o marido Pierre Curie, e depois já viúva outro Nobel dessa vez de Química em 1911. Sua descoberta mudou o século XX, seu nome está ligado à história da ciência, e é símbolo da liberdade feminina. Ela trouxe para a física nuclear contribuições essenciais. Morreu em 1934 de leucemia decorrente da radiação. O presidente Mitterrand a homenageará levando para o Panteão os restos mortais do casal Pierre e Marie Curie.
Pierre Curie ▪ 1859—1906
Marie Curie ▪ 1867—1934
A biografia focaliza a luta de Marie Curie e da filha, Irene Joliot-Curie — que seguiu a profissão dos pais — para se afirmarem como cientistas num mundo majoritariamente masculino. Irene cas-a-se com o assistente de sua mãe, Frédéric Joliot, e eles também ganharão o Nobel de química em 1935 pela descoberta da radioatividade artificial. Sua tese de doctorat d’Etat é sobre os raios alfas do polônio. Ela e o marido continuarão o projeto dos pais levando à frente as pesquisas e o Instituto Pierre e Marie Curie.
Estocolmo,1935: Irene (1897—1956) e Frédéric Joliot-Curie (1900—1958), na cerimônia do Prêmio Nobel de Química. ▪ Fonte: Bentham Sc.
Mari-Curie e a filha, Irene, trabalhavam com paixão e garra e obtiveram resultados honrosos. Mas não lhes bastava a excelência profissional enquanto cientistas. Era necessário lutar pelos mesmos direitos concedidos apenas ao cientista homem. Já a história da segunda filha, Eve, se diferencia, pois ela não envereda pela ciência. Ela também terá destaque na sociedade, no meio social e político.
Em geral, só se conhecia de Marie-Curie seus feitos científicos e seus dois prêmios Nobel. A biografia nos mostra o lado humano do gênio. O início de sua vida profissional, seus direitos de cientista relegados a segundo plano, porque mulher. Após a morte do marido, teve que lutar para assumir uma cátedra na Sorbonne, mesmo já sendo detentora do Nobel.
Paris, 1921: Marie Curie trabalha em seu laboratório de química, no Instituto do Rádio da França
O texto aborda o papel pioneiro do desempenho profissional e suas lutas pelo reconhecimento e posição na sociedade patriarcal de então. O fio condutor é a paixão pela ciência, as relações amorosas de Marie, e depois o foco em Irene, a filha mais velha, que seguiu seus passos e também ganhou o Nobel de Química.
Eve, a filha mais nova, não se interessou pela ciência. Ainda bem jovem, ela ensaia uma carreira de pianista, mas se revelará como correspondente de guerra, escritora e diplomata. Gostava de escrever e transitava
Eve Curie (1904—2007) ▪ Wikimedia
por várias camadas da sociedade. Quando sua mãe morre, uma editora americana de prestígio lhe propõe escrever uma biografia. O editor quer ser o primeiro a publicar a história da cientista na América. Eve escreve recorrendo a sua irmã para os temas relacionados à pesquisa científica e às descobertas de Marie. O livro teve grande repercussão e serviu de base para o roteiro de um filme. Eleanor Roosevelt a convida para palestras sobre Marie-Curie. A partir desse livro, Eve ganha projeção na América e na França. Ela cobrirá a II Guerra Mundial em vários países. Quando a OTAN é criada, ela será indicada para integrar o Comissariado. Eve casa-se com um americano e viverá o resto de sua vida em Nova York, chegando à idade de mais de 100 anos.
Monteil se fixa no papel dessas mulheres, durante as duas grandes guerras. Marie-Curie não viveu a II Guerra, são as filhas que desempenham papéis importantes no período. Elas fizeram história em um tempo em que a mulher era totalmente invisível ou reduzida a cuidar dos filhos e da casa.
O período da Frente Popular na França fez surgir, com a libertação, a permissão para mulheres assumirem alto escalão na ciência. Suas relações com outros cientistas, com políticos e atores da sociedade,
Paris, 1927: Irène e Marie Curie trabalham juntas no laboratório do Instituto do Rádio da França. ▪ Fonte: Staford Univ.
junto aos quais elas reclamam maiores orçamentos para as pesquisas e tentam fazer valer os direitos da mulher profissional e socialmente. A autora fala do quanto Marie e a filha Irene se empenharam também no ensino superior de qualidade para as mulheres, lecionando e criando Institutos de pesquisa só para mulheres, como a Escola em Sèvres, instalada na antiga fábrica de porcelana desativada, antecipando de um século uma posição feminista.
“Já o Collège de France, mesmo após a guerra, continua fechado ao sexo feminino. Será preciso esperar 1988, ou seja, 459 anos após a sua criação, em 1529 — mais de 4 séculos — para que uma mulher, a helenista Jacqueline de Romilly, seja eleita professora e titular de uma cátedra nesse estabelecimento”, escreve Claudine Monteil.
Marie chega em Paris em 1891. Seu objetivo é estudar matemática e física. Logo é aceita na Sorbonne. Seus diários daqueles anos testemunham um cotidiano de luta pela subsistência, enfrentando acomodações inóspitas, solidão e má alimentação, sem perder o foco dos seus estudos. Com o tempo, ganha posição de destaque com suas pesquisas. Acaba casando com um colega francês, Pierre Curie, e juntos desenvolvem pesquisas no campo da física. Trabalho, foco e sorte?
Paris, 1905: Pierre e Marie Curie ▪ Wikimedia
O fato é que juntos ganham o Nobel de Física. Mais tarde, quando foi lançada a bomba atômica em Hiroshima (1945), foi lembrado o discurso de Pierre Curie ao receber o prêmio. Ele alertara para o perigo dessas novas descobertas científicas caírem em mãos erradas. Pierre-Curie faleceu cedo, de forma tola, atropelado por cavalos, na Rue Dauphine. Na época, diligências e pedestres disputavam a rua. Sua morte prematura foi um baque para Marie, que fica sozinha com duas filhas ainda crianças, tendo que responder pelo seu projeto científico. Não bastando a luta pela sobrevivência, há ainda um enfrentamento moral. Quando viúva, ela se envolve afetivamente com um colega casado. O caso vai para os jornais e acende o antissemitismo e o preconceito francês contra estrangeiros, chegando às raias do aviltamento moral e pedidos da expulsão de Marie do país. Enquanto isso, ela enfrenta uma luta no seu Departamento para assumir uma cátedra na Sorbonne. Dessa vez, ela sai vencedora: é uma das primeiras mulheres a ensinar na Sorbonne. Continua suas pesquisas, cria o Instituto Pierre e Marie-Curie e volta a ganhar, dessa vez sozinha, o Nobel de Química.
Conferência de Solvay, Bélgica, 1927: Marie Curie (terceira da esquerda para a direita, sentada na primeira fila) com outros ilustres cientistas do século XX, entre eles Albert Einstein (no centro, sentado) ▪ Wikimedia
Sim, Marie Curie foi uma grande mulher.
Mas gostaria de ressaltar também o papel de um homem: o pai de Marie Curie, Wladyslau Sklodowski. Ele era professor de matemática e de física. A mulher morrera cedo de tuberculose. Ele ficara só, para orientar as filhas ainda adolescentes.
Naquele momento, a Polônia estava sob o jugo da Rússia czarista. A situação política e econômica do país era difícil. Esse homem soube enfrentar o desafio da melhor forma possível, na educação das filhas.
Polônia, 1886: Wladyslau Sklodowski com suas filhas Maria, Bronia (Bronisława) e Helena. ▪ Fonte: Wikimedia
Primeiro, elas foram orientadas para estudar línguas e depois conseguir empregos ensinando para crianças ainda em seu país. Com os estudos superiores sendo proibidos às mulheres na Polônia de então, o pai procurou saber em que país a universidade admitia mulheres. Em Londres, a universidade ainda não adotava mulheres em seus bancos escolares. Ele descobre que a Sorbonne não tinha mulheres no corpo docente, mas já aceitava mulheres como alunas. Envia primeiro Bronia, a mais velha, para estudar Medicina em Paris. Depois será a vez da caçula, Marie, que quer estudar matemática e física seguindo o pai. Em Paris, Bronia casa-se com um polonês e volta para seu país, quando seus estudos são concluídos. O destino de Marie acabaria por se revelar mais grandioso.
Wladyslau Sklodowski acreditou e lutou por um futuro promissor para suas filhas, Bronia e Marie. Ele sabia que somente os estudos de qualidade podiam transformar uma vida. Além disso, queria salvá-las do regime autoritário russo, do ambiente opressivo naquele momento na Polônia. A despeito das suas dificuldades, ele dá mostras de grande visão. Consegue tirar suas filhas do ambiente opressivo enviando-as para a França para poderem ter uma formação de qualidade. Ele apostou nisso e investiu nelas. As filhas corresponderam. O brilho de Marie foi muito além do país natal.
Varsóvia, 1912: Marie Curie com suas irmãs, Helene e Bronisława, e seu irmão, Jozef. ▪ Fonte: WyborczaPL
A biografia é bastante documentada, apontando para o valor dessas figuras femininas combativas que assumiam sempre um papel social e político. Marie Curie, a filha mais nova de Wladyslau Sklodowski, e as netas Irene e Eve, foram modelos tanto no plano profissional quanto humano.
Pena que essa bela história não tenha, pela L&PM, uma publicação mais bem-acabada do ponto de vista gráfico, com fotografias da época. Recomendo a leitura, pois há muito mais do que contei nessa resenha.
Rio de Janeiro, 1926: Marie Curie (quinta da esquerda para a direita) e Irene Joliot-Curie (sétima), em visita ao Brasil. ▪ Arq. Nacional