É comum se aproximar a poesia de Augusto dos Anjos da filosofia de Friedrich Nietzsche, certamente em fun...

Augusto dos Anjos e o “horror fati”

augusto anjos nietzsche amor fati eterno retorno melancolia

É comum se aproximar a poesia de Augusto dos Anjos da filosofia de Friedrich Nietzsche, certamente em função da influência que há nos dois de Arthur Schopenhauer. A ideia do mundo como “vontade e representação” e a consciência da inevitabilidade do sofrimento marcam a produção dos dois e determinam as suas visões de mundo. Algo, no entanto, afasta fundamentalmente o paraibano do autor de “Para além do Bem e do Mal” – a forma como veem o destino.

augusto anjos nietzsche amor fati eterno retorno melancolia
GD'Art
Quanto a esse aspecto eles são exemplos, respectivamente, da oposição entre uma visão trágica e uma visão pecaminosa do ser humano. Na visão trágica, o homem se submete ao destino sem que nada tenha feito para isso; nada o incrimina, nada o condena ao sofrimento em função de um pecado de origem. A chamada “hamartia”, que leva o herói trágico à loucura ou à morte, decorre de um “erro de cálculo” e não de um propósito consciente. Já na visão pecaminosa, o indivíduo sofre e se condena à morte por uma transgressão voluntária; seu destino é influenciado pela desobediência a uma interdição fundamental.

A "fatalidade", para Nietzsche, não é uma condenação a partir de uma Falta, mas uma consequência do inevitável. Ele introduziu o conceito de “amor fati” (expressão latina que significa amor ao destino) como uma total afirmação da vida, incluindo nisso tanto as experiências bem-sucedidas quanto as malogradas e dolorosas. O homem não tem poder sobre o que acontece, muito menos o provoca, mas tem a liberdade de decidir como reage ao que vem a lhe ocorrer. Esse ponto de vista revela influência dos estoicos, segundo os quais, se não podemos controlar os eventos externos, podemos controlar nossa reação a eles. E influenciará o existencialismo, para o qual (sobretudo na perspectiva sartriana) o importante não é o que fazem de nós, mas o que fazemos do que fazem de nós.

augusto anjos nietzsche amor fati eterno retorno melancolia
GD'Art
O “amor fati” está ligado a duas outras noções fundamentais em Nietzsche – a Vontade de Potência e o Eterno Retorno. A Vontade de Potência pode ser entendida como um impulso fundamental de crescimento e autossuperação. Ao amar o seu destino, o indivíduo não se submete a ele, mas o afirma a ponto de se tornar um criador de si mesmo. “Torna-te quem és”, máxima grega atribuída a Píndaro, foi adotada e popularizada pelo autor de “O nascimento da tragédia”.

O Eterno Retorno pode se resumir na capacidade de aceitar cada momento, mesmo os terríveis, não se opondo a que eles se repitam eternamente; é a essência do "amor fati" e uma marca de grandeza humana. Trata-se de um imperativo determinado, não por uma exigência externa ao indivíduo, mas por um valor existente em seu interior.

augusto anjos nietzsche amor fati eterno retorno melancolia
GD'Art
Reconhecer o “amor fati” é aceitar que tudo o que aconteceu e o que acontecerá, incluindo nossos erros e frustrações, contribui para que sejamos quem somos. Também implica superar o ressentimento, a mágoa, e a tendência a culpar os outros ou uma Providência Superior pelo que passamos e sofremos. Para Nietzsche o sofrimento, ao invés de algo a ser evitado, é parte da vida e um meio de aprofundar a experiência existencial.

Contrariamente à visão nietzscheana, em Augusto dos Anjos o destino é visto como um estigma que nos condena ao sofrimento e à morte. Seria antes um “horror fati” – designação que bem pode servir como contraponto ao conceito vulgarizado pelo filósofo alemão. Enquanto o “amor fati” propõe uma aceitação e até um apego ao que vem a nos acontecer, inclusive
augusto anjos nietzsche amor fati eterno retorno melancolia
GD'Art
a morte, o "horror fati" descreveria a aversão, o medo ou a repulsa pelo destino. Seria a recusa a aceitar as circunstâncias da vida, sejam elas boas ou más, o que redundaria em mais sofrimento e por vezes em desespero.

Em Augusto, o destino aparece como um agente persecutório, temível, que ele traduz em imagens de doença e deterioração. Uma das referências a essa entidade se encontra no poema justamente intitulado “As cismas do Destino”, que se inicia com estes versos:

Recife. Ponte Buarque de Macedo. Eu, indo em direção à casa do Agra, Assombrado com a minha sombra magra, Pensava no Destino, e tinha medo!

Percebe-se neles que o destino é motivo de assombro e temor. Mais ainda, é um indício de morte, pois a pernambucana casa do Agra é na verdade uma casa mortuária. Concorre para acentuar a ideia de morte a referência à “sombra magra”, uma espécie de prefiguração que o eu lírico tem do fim que o espera – um fim que não se confunde com um além misterioso, mas que é sentido, e mesmo antecipado, no próprio corpo destinado à extinção.

augusto anjos nietzsche amor fati eterno retorno melancolia
GD'Art
Associada ao espectro da morte está a perspectiva do castigo, traduzida na sensação de que “por toda parte, como um réu confesso, havia um juiz que lia o (seu) processo/ e uma forca especial que (o) esperava”. O motivo dessa culpa transcende a esfera individual; está ligado à identificação com a espécie transgressora das leis naturais, conforme se percebe nesta outra passagem:

E o cuspo que essa hereditária tosse Golfava, à guisa de ácido resíduo, Não era o cuspo só de um indivíduo Minado pela tísica precoce. Não! Não era o meu cuspo, com certeza Era a expectoração pútrida e crassa Dos brônquios pulmonares de uma raça Que violou as leis da Natureza!
augusto anjos nietzsche amor fati eterno retorno melancolia
GD'Art
Tal violação é também produzida pela própria Natureza, já que o homem faz parte dela e está subordinado a suas leis; ele é "filho do carbono e do amoníaco", e está sujeito a forças que o arrastam para o fim inevitável. Diante disso sua ambição, como observa Clément Rosset, é “restituir à natureza seu natural perdido, segundo uma perspectiva que participa tanto do platonismo quanto do cristianismo”. A sensação de pertencimento e dependência gera um desejo de vingança contra essa mãe que é também madrasta, ou seja, que dá vida e alimento mas promove a decomposição, a dor e a morte. Daí as palavras de repúdio e desprezo com que o eu lírico a ela se dirige, por exemplo, no “Poema Negro”:

Semeadora terrível de defuntos, Contra a agressão dos teus contrastes juntos A besta, que em mim dorme, acorda em berros; Acorda, e após gritar a última injúria, Chocalha os dentes com medonha fúria Como se fosse o atrito de dois ferros! Pois bem! Chegou minha hora de vingança. Tu mataste meu tempo de criança E de segunda-feira até domingo, Amarrado no horror de tua rede, Deste-me fogo quando eu tinha sede. Deixa te estar, canalha, que eu me vingo!
augusto anjos nietzsche amor fati eterno retorno melancolia
GD'Art
Em outra estrofe do mesmo poema, após examinar corpos em decomposição, o eu lírico reconhece assombrado “na podridão daquele embrulho hediondo” o seu destino. Vê-se então que, para o poeta, a fatalidade não é algo a ser aceito e amado, mas sim uma inescapável condenação à dor e à morte – juízo bem distinto da celebração vital que se encontra no “amor fati” nietzscheano. Considerando-se que o destino é uma das representações do superego, instância censora da consciência (as outras são a família e a sociedade), não causa estranheza que, num melancólico como Augusto dos Anjos, destino e culpa cheguem a se confundir.

augusto anjos nietzsche amor fati eterno retorno melancolia
GD'Art
Isso não significa que não haja em sua poesia uma alternativa de redenção para a espécie humana. Em poemas como “Os Doentes”, por exemplo, ele fantasia o surgimento de “outra humanidade”, livre da culpa e do exílio ao qual a Falta a condenou. Tal anseio é em boa parte sugerido pelas teorias evolucionistas da sua época, que para ele transcendiam a esfera material e tocavam a dimensão do espírito. O homem evoluído estaria sintonizado com todas as espécies sofredoras e panteisticamente em harmonia com a Natureza. Só assim a fatalidade, livre da incriminadora força de um destino, recobraria sua inocência e se tornaria objeto de amor.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também