“Como posso não chorar, lamentar tamanha dor, Hussein foi morto em Karbala. Como posso não chorar pelo estandarte que caiu desamparado, sem ninguém para levantá-lo, na terra de Karbala...”Anwar Assi
O ‘Ashura é um dos eventos que mais atenção atraiu dos muçulmanos de corrente xiita (ou shi’ita, de shi’a, shi’atu ’Ali, “partido, seguidores, de Ali) ao longo da história.
Para além do seu extenso papel e profundo impacto social e histórico, tornou-se, nos dias de hoje, um evento cultural especial. É uma cerimónia que evoca a morte do imam al-Hussein Ibn ‘Ali, filho do imam ‘Ali Ibn Abi Talib (quarto califa do Islão) e neto do profeta Muhammad (Maomé), a 10 de outubro de 680 d.C., na batalha de Karbala, contra o exército do califa omíada Yazid Ibn Muawiya. A tradição refere que Hussein terá sido martirizado (com os seus familiares e companheiros), decapitado e o seu corpo mutilado.
Batalha de Karbala, pintura em acrílico, estilo teahouse, 1,62m x 2,62m Mohammad Farahani, c.1950, Irão.
Nem o facto das origens da fé religiosa serem comuns a todos os muçulmanos evitou que o Islamismo se dividisse, e o cisma entre sunitas (de sunnah; “caminho trilhado”, conjunto de tradições e condutas apostólicas baseadas nos fundamentos do Alcorão, nas ahadith, “tradições” do profeta Maomé, e nas quatro escolas da lei: a Hanafita ou Hanafi, a Hanbalita ou Hanbali, a Malikita e a Shafiita) e xiitas rasgasse o corpo do Islão. A origem dessas dissidências surge na sequência da questão da sucessão religiosa do profeta Maomé como “chefe dos crentes”.
Batalha de KarbalaAbas Boloukifar, 1937, Teerão, Irão.
Com a morte do profeta, a 12 de Rabi al-Awwal do ano 11 da Hégira (8 de Junho de 632 da era cristã), e perante a conjuntura de um hipotético cenário de inanidade religiosa, política e social, reclamava-se o asseverar de uma liderança. O Alcorão e outros textos islâmicos da época são omissos sobre medidas relativas à nomeação de um sucessor. Assim, antagonismos entre os al-ansar (“auxiliares” do profeta, naturais de Madinah) e os al-muhajirun (“emigrados” de Meca, Makkah, que seguiram Maomé para Madinah), levaram a que, pela primeira vez, no ano de 680 d.C., junto às muralhas de Basra, Najaf e em Karbala (atual Iraque), muçulmanos xiitas combatessem muçulmanos sunitas.
Tendo em conta que os principais eventos de Karbala ocorreram no nono e décimo dias do mês de Muharram, essas duas datas tornaram-se mais proeminentes, com os nomes de Tasu’a (Ta’sa em árabe significa “Nove”; Tasu’a é “nono dia”), e ’Ashura (Ashor significa “Dez”; ‘Ashura é décimo dia), a marcar o expoente da reflexão deste mês. Desde os eventos desses dias, o uso de roupa preta, sinal de luto, martírio, tristeza e pesar, tornou-se a cor do xiismo, tendo sido adotado pelos guias espirituais. O significado do véu negro (ou shador; “tenda”), das iranianas reporta-se a esse contexto.
Batalha de Karbala (detalhe), óleo sobre tela, 1,82m × 2,99m Abbas Al-Musavi, S.XX, Brooklyn Museum, NY.
Esta rememoração vivencia-se por uma forte carga emocional, num ambiente de total êxtase. Ao ouvir o nome do lugar, da palavra árabe composta em duas partes “karb” e “bala”, os crentes, jovens, adultos, idosos e até crianças, quebram o silêncio das orações, autoflagelando-se, desfilando em frente a uma multidão recitando súplicas e prantos, acompanhados por palmas e gritos de “’Ali! ‘Ali!” ou “Oh, Hussein! Oh, Hussein!”, revisitando o suplício, numa profunda gnose espiritual e interior. Em algumas regiões, o ‘Ashura pode incluir rituais mais extremos, como a autoflagelação com facas e espadas, práticas controversas que nem todos praticam. A cerimónia é ainda marcada
Batalha de KarbalaAbas Boloukifar, 1937, Teerão, Irão.
por procissões, recitação de poemas, discursos e a encenação teatral da Batalha de Karbala.
As evocações do ‘Ashura, que decorrem por todo o Iraque, em especial nas cidades de Najaf (a cerca de 190 km a sul da capital, Baghdad) e em Karbala (a aproximadamente 112 km a sudoeste de Baghdad), na região sul do país (este ano, desde a noite de sábado, 5 de julho, até domingo, 6 de julho de 2025), costumam reunir milhares de peregrinos e crentes xiitas, que se dirigem do Iraque, Irão, Paquistão, Índia, Bahrain, do Reino da Arábia Saudita, do Líbano, Azerbaijão, Iémen, Oman e da Turquia, com destino a estas cidades, completando o ritual de peregrinação ao longo do itinerário principal, de sensivelmente 79 Km (uma caminhada de cerca de 16 horas), entre Najaf e Karbala. Ao longo do caminho, as peregrinações são sempre envoltas em fortes medidas de segurança, com constrangimentos no tráfego rodoviário e inúmeras aglomerações de pessoas nos percursos.
Fonte: IBGE
Centenas de voluntários, incluindo elementos da comunidade cristã, trabalham por forma a garantir aos peregrinos as melhores condições, montando, ao longo dos itinerários, tendas de descanso e de alimentação (denominadas markab), postos de distribuição de água e alimentos e disponibilizando as suas próprias viaturas para transportar aqueles que, por quaisquer razões de força maior, não conseguem continuar a sua caminhada. Estes gestos de solidariedade ecuménica são comuns na região.
Em 2014, perante a ameaça tangível representada pelo Da’ish, o clérigo xiita Ayatollah (ou Ayat ’Allah: “sinal de Deus”) Sayyid Ali al-Sistani conclamou os xiitas a protegerem não apenas os seus locais sagrados no país, mas também os cristãos e outras minorias religiosas, reforçando a importância da unidade nacional diante do terror.
Ritual do ‘Ashura, em Karbala, Iraque ▪ Transmissão via Youtube
Ainda hoje, o ‘Ashura é um dia de luto e extremamente emocional para os xiitas. Para os sunitas, Maomé terá também jejuado nesse dia e pedido à sua comunidade (‘Ummah) para que esta fizesse o mesmo, sendo o jejum de ‘Ashura uma prática voluntária em memória do jejum realizado por Maomé em Medina após a sua migração. Outros respeitam o dia como a lembrança em que Moisés jejuou em gratidão a Deus pela libertação dos judeus do Egito. Em ambos os casos, a data é tida como um dia de muitas bênçãos.