“O que explica isso, seu descomungado? Por que terminar julho desse jeito?”, perguntaria, em estado de embriaguez, Nezinho do Jegue. Qu...

Uma grande Sucupira

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“O que explica isso, seu descomungado? Por que terminar julho desse jeito?”, perguntaria, em estado de embriaguez, Nezinho do Jegue. Quando sóbrio, ele assim não se comportaria. Lúcido, era dado à bajulação. E Odorico Paraguaçu responderia: “Os finalmentes justificam os obstantes”. É claro que estou a falar das criações do talentoso Dias Gomes.

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Dias Gomes (1922—1999), romancista, dramaturgo e autor de telenovelas, nascido em Salvador, Bahia ▪ Fonte: Arq. Nacional
O velho Odorico – nascido com outro nome em peça para o teatro – teve inspiração na figura do jornalista e político Carlos Lacerda. O dramaturgo conhecido em todos os quadrantes do País, em virtude de “O Bem-Amado”, a novela global, pintava, desse modo, a caricatura do coronelismo atribuindo-a àquele por quem foi importunado por conta de viagem que, em princípios de 1950, fez a Moscou. Perseguido, ainda, em 1965, quando teve a peça “O Berço do Herói”, censurada por Lacerda, então governador da Guanabara.

“O Bem-Amado” chegaria à televisão, em 1973, com dribles na censura militar. Foi quando Odorico virou prefeito da fictícia Sucupira. Na vida como ela é, político nenhum aceitava ser comparado àquela figura verborrágica, mentirosa, demagógica, sem escrúpulos. Nos meus dias do batente em redação de jornal, vi algumas confusões resultantes de notas que davam a determinadas personagens da cena política paraibana e brasileira o caráter e os modos de Odorico.


Acreditem, superada a fase do estrondoso sucesso da novela, os Odoricos sobrevivem e multiplicam-se, atualmente, aqui e lá fora. Até porque a mentira, os traços de autoritarismo, os desvios éticos e morais não são e nunca foram privilégios de prefeitinhos de interior. Também podem ser coisas dos donos do mundo, gente com poder suficiente para despachar exércitos e foguetes.

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As irmãs Cajazeiras: Judiceia (Dirce Migliaccio), Dulcineia (Dorinha Duval) e Doroteia (Ida Gomes), personagens da telenovela O Bem Amado (1973).
Sei de um com pele de laranja e destrambelhado ao ponto de afirmar algo pela manhã para desdizê-lo à noite. Esse camarada é uma ameaça global. Briga com amigos e inimigos, ou seja, com “desaforistas”, no modo de falar do Odorico genuíno, aquele com sotaque baiano. O nosso fascinava os eleitores, as mulheres e tinha predileção pelas mais adentradas nos anos. Perguntem às Irmãs Cajazeiras.

Do outro suspeita-se de que seria mais dado a jovenzinhas, ao que se pode depreender do trâmite de processos judiciais. Perguntem, desta vez a Rupert Murdoch arriscado a pagar ao homem indenização de US$ 10 bilhões por difamação e calúnia, caso perca essa briga na justiça. Briga feia, pois o assunto toma conta do mundo. O acusado, evidentemente, tem o direito de se defender e tem a presunção da inocência. Mas, enquanto isso, o escândalo já rompe sua base de apoio e ele perde amigos e eleitores importantes.

Li o texto a que Luís Nassif, um dos mais experientes e respeitados jornalistas brasileiros, deu o título “Contagem regressiva para o fim”. É nota na qual assinala a reação negativa (e cumulativa) nos EUA e no resto do mundo
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Luís Nassif, jornalista, compositor e bandolinista mineiro. ▪ Fonte: Aepet
aos abusos cometidos pelo homem com cor de laranja.

De onde vem o furacão? Nassif com a palavra: 1) Das universidades e dos centros de pensamento jurídico; 2) Da imprensa, desde o liberal The New York Times até os antigos apoiadores do Grupo Murdoch, incluindo Fox News e The Wall Street Journal; 3) De todas as empresas importadoras alarmadas com a promessa de novas taxas e com a maluquice de tarifas comerciais que vão de 50% a 100%, ao bel prazer do moço; 4) Das comunidades latinas e negras.

“Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, avaliava Nassif para o caso de recuo (quando o sujeito passaria por fraco) ou para o agravamento das sanções (quando geraria mais desequilíbrios e, consequentemente, mais resistências). Quem muito apostou na primeira alternativa embolsou boa grana.

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Legacy, modelo de aeronaves executivas de pequeno a médio porte e alcance intercontinental, desenvolvida pela Embraer e fabricada nos Estados Unidos.
O fato é que, por aqui, uma lista com arredondadas 700 isenções fez do tarifaço quase um “tarifinho”. O homem deixou de fora do pacote de sobretaxas setores econômicos estratégicos. A Embraer, livre da taxação de 50%, solta fogos. Nota da Câmara Americana de Comércio para o Brasil estima que os produtos excluídos da Ordem Executiva assinada pelo moço no penúltimo dia do mês representam US$ 18,4 bilhões em exportações brasileiras. É valor correspondente a 43,4% do total de US$ 42,3 bilhões daqui saídos para lá. Carne, café e frutas (à exceção da laranja) ainda não compõem a relação de produtos isentos. Mas o adiamento para 6 de agosto da vigência do tal decreto eleva o ânimo dos nossos exportadores. Taxada mesmo foi a cabeça sem pelos do mais comentado dos nossos juízes. Este, todavia, não parece muito preocupado com isso.

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PxB
O País tropical onde abundam palmeiras e encrencas tem um Conselho dos Exportadores de Café. E é do seu presidente a observação: “Cada dólar de café que exportamos gera 43 dólares na indústria deles”. São coisas assim que animam os produtores convictos da vitória na batalha que, aliados aos importadores, travam contra o inimigo em comum. O clamor dos consumidores da nossa carne e do nosso café fará soar as trombetas que hão de impulsionar as tropas nessa guerra contra a economia popular, assim que os novos preços lhes batam no lombo.

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François Bayrou, atual primeiro-ministro da França (desde 13.11.2024) ▪ Fonte: YT
A Europa, enquanto isso, tem uma história triste para contar. Mal a semana começou, François Bayrou, o primeiro-ministro da França, botou a boca no trombone: “É um dia sombrio quando uma aliança de povos livres, reunidos para afirmar seus valores e defender seus interesses comuns, se resigna à submissão”. Bayrou assim criticava o acordo com o qual a União Europeia aceitava a taxação de 15% dos seus produtos, ao mesmo tempo em que poupava de qualquer retaliação as importações do bloco. Submetia-se, além do mais, à exigência de gastos com armamentos correspondentes a 5% de um Produto Interno Bruto cambaleante. O húngaro Victor Orbán disse algo assim, na última segunda-feira: “O homem engoliu Ursula no café da manhã”. Referia-se, naturalmente, a Dona Ursula von der Leyen, a signatária do tratado comercial menos criticado numa Espanha “sem entusiasmo” e numa Alemanha interessada na redução das tensões comerciais transatlânticas.

Lembremos de que ocorrem novas ameaças tarifárias a uma Rússia já para lá de tarifada. Pois bem, Moscou informa que Putim responderá a isso “quando e se achar necessário”. A China, dona da maior economia planetária
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L. Jameson
em poder de paridade de compra, mantém o propósito do dente por dente, olho por olho, enquanto se desfaz, gradativamente, de títulos do Tesouro Americano que ainda detém para chamar de seus.

Acho que José Tranquilino da Conceição, o Zeca Diabo, pistoleiro desejoso do diploma de cirurgião-dentista, no folhetim da Globo, lembraria aos sucupirenses que tudo e todo mundo tem prazo de validade. Ou seja, o que é sucesso eleitoral hoje pode ser um fracasso retumbante amanhã. Na terra do homem, os protestos eclodem. A BBC tratou as manifestações populares do sábado passado, de Nova York a Los Angeles, como “as maiores já feitas contra o presidente republicano desde que foi reeleito”.

Não é de hoje que o sujeito tem preocupado os seus. Os frequentadores da Escola Dominical da Igreja Batista de Plains, na Geórgia, já ouviam, em 2022, do então pregador Jimmy Carter a história de um telefonema no qual o Alaranjado
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Pequim, China ▪ Foto: H. Zhang
se mostrava preocupado com o crescimento da China. Resposta do finado Jimmy: “Você teme que os chineses nos superem e eu concordo com você. Mas sabe por que nos superarão? Eu normalizei as relações diplomáticas com Pequim, em 1979. Desde essa data, você sabe quantas vezes a China entrou em conflito armado com alguém? Nem uma vez, enquanto nós estamos constantemente em guerra”.

Depois de citar a pátria amada como “a nação mais guerreira da história do mundo”, por tentar impor suas vontades e querer controlar empresas que em outros países dispõem de recursos energéticos, o ex-presidente Jimmy Carter falava a seu interlocutor do progresso chinês: “Eles estão investindo seus recursos em projetos de infraestrutura, ferrovias intercontinentais e transoceânicas de alta velocidade, tecnologia 6G, inteligência robótica, universidades, hospitais, portos e edifícios, ao invés de usá-los em despesas militares”.

E perguntava: “Quantos quilômetros de ferrovia de alta velocidade nós temos? Nós desperdiçamos US$ 300 bilhões para submeter países que procuram sair da nossa hegemonia. A China não desperdiça um centavo em guerra. É por isso que nos ultrapassa em quase todas as áreas”. Bem que eu gostaria de ver a reação da plateia de Jimmy, diante do seu púlpito cristão.


Na telenovela, Odorico tinha como seu grande projeto a inauguração do cemitério de uma Sucupira sem defuntos, apesar dos pesares. A má sorte quis que ele preenchesse, ali, o primeiro túmulo. Que destino o Império em queda reserva ao homem-laranja? O sepultamento político?

Peço que Nezinho do Jegue, de onde estiver, abrande a indignação. Como se sabe, o homem diz e desdiz, quando trombam com ele. Os do Norte, aliás, já apostam em taxa zero, mais dia menos dia, para nossas frutas, nossa carne e nosso café. Que assim seja.
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  1. Anônimo1/8/25 06:58

    Texto exemplar, Frutuoso. Atualidade comentada com inteligência e humor. Tudo passa e o homem da cor de laranja também passará, e sua posteridade, se houver, será só de más lembranças. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Anônimo1/8/25 19:00

    Tudo exatamente assim como o texto relata. Parabéns!

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  3. JOSE MARIO ESPINOLA1/8/25 23:10

    Com muita inteligência e muito humor (justamente o que falta a muitos, hoje), Frutuoso nos brinda com deliciosa crônica, onde expõe o maior gerador de ódio do mundo.
    Quanto aos políticos de hoje, eles não estão incomodados ao serem comparados ao velho Odorico, pois hoje todos são figuras verborrágicas, mentirosas, demagógicas e sem escrúpulos.
    Bravo, Frutuoso!

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