“Para viver, temos que nos narrar; somos um produto da nossa imaginação. Nossa memória é um invento, uma história que reescrevemos a ...

Flashes de minha vida em Paris (parte 2)

paris 1970s tempo morada em paris
“Para viver, temos que nos narrar; somos um produto da nossa imaginação. Nossa memória é um invento, uma história que reescrevemos a cada dia.”
A ridícula ideia de nunca mais te ver, Rosa Montero.

Naqueles anos em Paris, sempre havia companhia para zanzar por livrarias, mercados das pulgas, um mundo maravilhoso de quinquilharias de outras épocas, demorar-se em um bistrô, visitar uma exposição, ir a um concerto na Notre-Dame, ou na Ópera Garnier,
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ou mesmo para pequenas viagens. A entrada do Louvre e da Notre-Dame eram gratuitas, salvo exceções, e não havia, nem de longe, as intermináveis filas de hoje.

Era na “Cantina Santa Lucia” na Rue des Canettes, próxima da praça Saint-Sulpice que íamos com mais frequência. A praça era o nosso ponto de encontro costumeiro. Ali perto, na rue Servandoni, moravam as irmãs Anick e Yveline, que também vinham se juntar ao grupo. Sentávamos na beira da fonte para fumar, planejar visitas às exposições do momento, ou um fim de semana em Meaux. Se era a primeira a chegar, eu ia visitar os afrescos de Delacroix na igreja Saint-Sulpice ao fundo da praça, ou sentava no Café de la Mairie, de frente para a fonte. Algumas vezes via Roland Barthes no café, ele morava nos arredores.

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Roland Barthes (1915—1980) escritor, sociólogo e filósofo francês. ▪ Imagens: Wikimedia
Sherry fazia aulas de cerâmica num ateliê de um artesão na rue de Varenne e às vezes eu a acompanhava. A aura do ateliê de um fazer antigo me lembrava de uma tela de Rembrandt. Como o Museu Rodin ficava na mesma rua, não raro íamos passear no seu jardim e fotografar suas estátuas.

Museu Rodin, Paris. ▪ Imagem: E. McGray, Jr, via Flickr
Nesse primeiro tempo, morávamos na cidade universitária, Bd. Jourdan do 14º distrito. Lá cada país tem a sua casa circundada por árvores e grande extensão de gramados, distante do burburinho de Paris. Ali, a vida funcionava num tipo de isolamento, com restaurantes universitários, piscinas, bibliotecas. Alguns pessoenses foram nossos contemporâneos nessa temporada, os amigos Humberto Espínola e Rubens Pinto Lira. Também moraram na Cité, na mesma época, Cristóvam Buarque e Gladys e Sebastião Salgado e Lélia.

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Lélia Wanick e Sebastião Salgado, 1970s.
A música popular brasileira era muito presente em nossas vidas. Ao mesmo tempo, nos encantamos com Barbara, Jacques Brel, Yves Montand, Moustaki, Brassens, Léo Ferré, Dalida. E tivemos a sorte de assistirmos um grande show de Joan Baez.


Quando nos separamos, me mudei para a margem direita de o Sena. Fui morar na Rue St. Georges, em um pequeno estúdio que aluguei de Odile, irmã de Bernard. No século XIX os irmãos Goncourt haviam morado nessa rua em um prédio exatamente ao lado do meu. Descobri isso já no Brasil, lendo seus diários. Eles chegaram a publicar “Viagem do nº 48 da Rua St. Georges ao nº 1 da Rua Laffite”, no qual falavam de caminhadas pelo bairro em busca de documentos, pinturas sobre o século XVIII
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que eles vinham reconstituindo e depois publicariam “A arte do século XVIII”.

Ali, a vida fervilhava. Era a voz da rua. O som da atividade comercial mais próxima, fazia tudo mais vivo. A Rue des Martyrs ao lado pulsa com seu comercio movimentado e diversificado. De súbito, passei às relações diárias com os pequenos comerciantes, mercadinhos, donos de bistrôs, padarias, papelarias, livrarias. Eles acabavam por gravar nossos nomes, nossos hábitos, reservavam nossas encomendas. Um dia, ao chegar mais tarde para almoçar no bistrô costumeiro, ao solicitar meu prato preferido, o garçom me diz que tinha acabado. De repente, a dona do bistrô me traz o prato, ela o havia guardado especialmente para mim. Surpreendeu-me, como essas relações superficiais, me traziam o sentimento de inclusão, a sensação de semelhança. Isso se devia ao encontro diário, sempre o mesmo lugar da compra do pão, da salada, do patê.

Uma relação periférica se estabelecera e estranhamente me tornara visível, eu era parte daquele miolo do bairro. Dei-me conta que o bairro era um vilarejo. Ali me deslocava com uma energia alegre, nas cercanias os rostos me eram familiares, eu era reconhecida, sentia-me dona do meu destino. Meus dias eram cheios e vivos, havia sempre uma programação agendada. Paris finalmente era a minha cidade.
EM BREVE: a terceira parte de Flashes de minha vida em Paris.

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  1. José Mário Espínola28/9/25 00:19

    Relatos de momentos de emoções diversas, com altos e baixos, de uma época sofrida porém singela, que marcaram profundamente a autora.
    Senti-me visitando Paris, com ela. Uma Paris que já teve o seu encanto, mas não existe mais.
    Foi bom, enquanto durou.

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    1. Obrigada Zé Mário por ler. Um retorno acrescenta e me faz refletir.

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  2. Que vivências maravilhosas, Lúcia. Um privilégio. Você conheceu tanta gente talentosa, importante. Por isso, tem o que contar. Vá colecionando essas memórias. Quem sabe não darão um saboroso livro brevemente, para eternizá-las? Parabéns. Francisco Gil Messias.

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    1. Gil sempre grata por sua leitura. Um dia quem sabe, terei um pequeno livrinho e você prefaciando...rsrs sonhos são permitidos.

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  3. A sus narrativa minuciosa, romântica e até mesmo poética das recordações daquele tempo maravilhoso de "La Vie Parisienne" nos deixam saudades , parabéns !!!

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    1. Humberto, você viveu o mesmo tempo presente do qual eu falo e até há muitas fotografias nossas. Depois você casou com uma francesa, possui uma vivência bem maior que a minha, e prossegue sua rotina de afetos com esse país que tanto nos deu.

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  4. Lúcia, que privilégio viver essa Paris. Seus textos sempre me encantam, penetram na alma e me transportam para lugares incríveis.
    Obrigada
    Fania S Benchimol.

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    1. Obrigada querida amiga. Importante suas impressões, vindo de você uma escritora experiente que me encanta.

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