O despertador toca, insistente, cortando o silêncio da madrugada. Um braço pesado sai debaixo do cobertor e silencia o barulho. Mais ...

Exemplar precioso

tempo ampulheta
O despertador toca, insistente, cortando o silêncio da madrugada. Um braço pesado sai debaixo do cobertor e silencia o barulho. Mais cinco minutos, pensamos. Sempre mais cinco minutos. É nosso primeiro ato de negociação com o tempo, um bem que julgamos ter em abundância, mas que escorre entre os dedos como areia fina.

tempo ampulheta
Walter Langley, S.XX
Passamos a vida contando os segundos, os minutos, as horas. Corremos para não chegar atrasados ao trabalho, contamos os dias para o final de semana, os meses para as férias. Vivemos olhando para o relógio, mas raramente olhamos para o que ele realmente mede: a própria substância de nossa existência.

O tempo é o artista mais sutil e implacável. Ele talha rugas no rosto, embranquece os cabelos, amadurece as ideias. Ele transforma o choro de um recém-nascido no sorriso de uma criança, e depois no sussurro sábio de um idoso. Ele cura feridas, mas também apaga detalhes preciosos de uma lembrança. Ele é o único capital que nos é dado ao nascer, mas não vem com etiqueta de valor nem manual de instruções.

E nós, o que fazemos com esse tesouro invisível? Muitas vezes, o desperdiçamos como se fosse infinito. Adiamos o telefonema para um velho amigo. Deixamos o abraço mais longo para depois. Prometemos a nós mesmos que "um dia" começaremos aquele projeto, aprenderemos aquela língua, viajaremos para aquele lugar, mas lamentavelmente nos perdemos pelo caminho.

tempo ampulheta
Antonio Cifrondi, S.XVIII
A expressão "um dia" é a moeda de troca mais perigosa, porque ela pode nunca chegar.

A verdade crua é que temos muito menos tempo em mãos do que gostaríamos de acreditar. Os anos se acumulam com uma velocidade assustadora. O que era futuro distante vira passado num piscar de olhos. E no meio dessa corrida, nos pegamos ocupados demais com o que é urgente, e negligentes com o que é importante.

O valor do tempo só se revela plenamente em seus extremos: na agonia de quem sente que lhe resta pouco, ou na nostalgia de quem olha para trás e vê quantas chances foram perdidas. É quando nos damos conta de que o tempo não é dinheiro. O dinheiro perdido pode ser recuperado. O tempo, não. Cada instante que passa é um quadro único pintado na tela da vida, e não há como refazê-lo.

Talvez a sabedoria esteja simplesmente em parar de contar o tempo e começar a fazê-lo contar. Em trocar minutos de preocupação ociosa por segundos de presença genuína. Em preferir a conversa olho no olho à rolagem infinita na tela do celular. Em entender que o valor de uma hora não está no que se produz, mas no que se vive.

tempo ampulheta
Johan Zoffany, 1776
O sol já está alto lá fora, e odia segue seu curso, implacável. A areia continua a escorrer na ampulheta, e não podemos pará-la, mas podemos decidir que castelo construir com ela. O verdadeiro valor do tempo não está na quantidade que temos, mas na intensidade e no amor com que o preenchemos. Afinal, é o único tesouro que, uma vez gasto, nunca mais pode ser recuperado. E justamente nessa fugacidade que o definiu tão nobre, que o torna exemplar precioso.

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