A reconstituição de uma época riquíssima, num romance ágil, denso e original. A ficção é a melhor forma de se assistir aos aconteci...

O silêncio do delator

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A reconstituição de uma época riquíssima,
num romance ágil, denso e original.

A ficção é a melhor forma de se assistir aos acontecimentos de uma parte do passado como se fosse ao vivo. Tornam-se incrivelmente presentes, nos grandes romances, aquela gente que resistiu à invasão napoleônica em Moscou, aqueles americanos ricos que vagaram pela Europa no entreguerras, aqueles paraibanos que viveram o Ciclo da Cana-de-Açúcar. O Silêncio do Delator, de José Nêumanne, tornou-se, na mesma linha, a maneira mais perfeita de se ver o que foram os muitos grupos de jovens brasileiros dos anos 60, apaixonados – e marcados – por Bob Dylan, Mao e Che, pelos Beatles, mais o cinema de Glauber e Godard, além do tórrido tempero da revolução sexual.

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Jean-Luc Godart e Glauber Rocha portalbrasileirodecinema.com.br
Tolstói dizia que não escrevera nada que não houvesse visto. Hemingway fez parte da lost generation que descreveu. Zé Lins foi, ele mesmo, menino de engenho. Com uma carreira que inclui Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil, Nêumanne começou no jornalismo justamente nos anos 60, tema de seu livro, como crítico de cinema do Diário da Borborema.

— Nos idos de 67 — segundo me disse — Bráulio Tavares presidia o Cineclube de Campina Grande; eu, o Glauber Rocha. Eu programava o Cinema de Arte do Cine Capitólio; ele, a sessão Cultura do Cine Babilônia.

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Cine Capitólio (Campina Grande) Bráulio Tavares
Adquirindo saber e enorme vivência com artistas, políticos e intelectuais daqui e do Sul em seu desenvolvimento, aparelhou-se, com o tempo, para produzir aquilo que o narrador de seu livro classifica de romance enciclopédico, o que nos lembra logo o Ulisses, de Joyce, e Contraponto, de Huxley, obras que fazem os inventários completos de suas épocas e de seus ambientes, tal como Dante — em A Divina Comédia — fez com a Florença que o exilou.

Assim, O Silêncio do Delator nos traz do passado a juventude idealista e culta que sequestrou um embaixador, protestou contra a guerra do Vietnã, padeceu a ditadura, idolatrou Woodstock; viu mil vezes A Chinesa, de Godard, e Os Retratos da Vida, de Lelouch; analisou telas de
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Lichtenstein e de Warhol; dissecou romances de Camus e Salinger; riu e se comoveu com as tiras em quadrinhos de Crumb e Quino; deslumbrou-se com as sinfonias de Luciano Berio e Philip Glass; usufruiu e sofreu a revolução da pílula, a que transformou o comportamento reprimido da década anterior, principalmente entre as mulheres.

— O livro de Nêumanne — diz Affonso Romano de Sant’Anna — realizou, de modo original, aquilo que tantos tentaram: o romance de minha geração.

De modo original? Sim, porque, entre outras coisas, O Silêncio do Delator é um enorme monólogo em que um autor incerto orquestra as vozes de todo um grupo de velhas figuras — marcantes no seu tempo — reunidas agora no funeral de uma delas, o Morto, com quem faz duo constante (numa brincadeira com o Brás Cubas, de Machado). Falam, aí, a historiadora; o publicitário rico que não conseguiu se impor como romancista; a psicanalista; o ex-guerrilheiro que fez fortuna especulando na bolsa; o militante comunista que virou ministro; o popstar que é gay; o artista plástico que ficou na miséria; etc., etc.

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José Nêumanne Pinto
Ao contrário do que seria de se esperar de quem é poeta, Nêumanne não usa em seu romance as construções comuns em Gabriel García Márquez ou Guimarães Rosa. Assim, ele preenche as 540 páginas de seu livro com o que ele mesmo chama de “texto zero”, tão despojado quanto o do também jornalista-romancista Ernest Hemingway.

— Tudo o que estiver ao meu alcance será revelado neste velório — promete, objetivamente, o início de O Silêncio do Delator. Mas isso, capciosamente como no título, não é cumprido, pois, enquanto García Márquez cria nomes precisos para os habitantes de sua precisa Macondo, como José Arcádio Buendía, Amaranta, Remédios, mais Úrsula Iguarán; enquanto, no Grande Sertão: Veredas, vigoram os mineiros José Simpilício, Titão Passos, Jazevedão ou Fafafa, Nêumanne vai chamando suas personagens femininas de Helena, Penélope e Hebe, obtendo com isso uma desindividualização-generalização semelhante às das máscaras do teatro grego, colocando todo mundo — isso é ainda mais significativo — em alguma cidade do país da qual não se sabe o nome, nem a que estado ou região pertence. Acaba-se chegando, com isso, por vias indiretas, ao “poético” necessário ao gênero herdeiro da Ilíada e da Eneida.

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GD'Art
Quando peguei O Silêncio do Delator pela primeira vez, há cerca de dois anos, travei logo no início. Não conhecia o comentário em que Bráulio avisava: “No começo o leitor custa a pegar o tom e o ritmo, mas, depois que consegue passar a terceira, vai em terceira até o fim.” Senti o que me pareceu excesso de referências e citações — grande problema do Contraponto, de Aldous Huxley... e de todos os meus romances. Mas, com o nome de Nêumanne repetido frequentemente, retomei a leitura de sua narrativa e me aconteceu a reedição de minha descoberta em dois tempos da Chacona, de Bach: o primeiro, com estranhamento e resistência; o segundo, com sintonia e prazer. Nada de excesso de referências. O que há é um fabuloso uso de necessários tijolos ou átomos para a reconstrução de um universo, talvez o mais rico da recente história brasileira.

Bem, falou-se e fala-se muito, merecidamente, de A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Acho que está na hora de se fazer igual barulho em torno de todo esse Silêncio, para que se faça justiça à sua retumbante fortuna crítica, à qual venho juntar este meu tarol.

* Do livro “Sobre 50 livros (brasileiros / contemporâneos) que eu gostaria de ter assinado”. Ed. Ideia, 2012 - Disponível na Amazon


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