Eras, na vida, a pomba predileta Que, sobre um mar de angústias, conduzia O ramo da esperança. — Eras a estrela Que, entre as névoa...

Por um instante só

Eras, na vida, a pomba predileta
Que, sobre um mar de angústias, conduzia
O ramo da esperança. — Eras a estrela
Que, entre as névoas do inverno, cintilava,
Apontando o caminho ao pegureiro.
Eras a messe de um dourado estio.
Eras o idílio de um amor sublime.

(Fagundes Varela)

Oh, Misericordioso, que o Livro Sagrado diz estar acima de todos e de todas as coisas, que tudo pode e consegue, eu aqui, humildemente, contrito e apequenado em minha dor, venho propor uma troca que a Ti não demandará custos ou quaisquer outros inconvenientes.

Tu, onipresente, onisciente e detentor de outros sortilégios, já deves ter lido meus pensamentos. Sabes o que de Ti quero e o que de mim desfaço nesta singular negociação.

GD'Art
Estes escritos, aparentemente sem significado, ficam, a quem interessar possa, a oportunidade de que conheçam meus propósitos, com minha respectiva anuência, uma vez que, da outra parte, Tuas intenções já bastariam, pois valem mais do que mil firmas reconhecidas e outros tantos carimbos de cartórios.

Assim, nem precisaríamos deste documento para celebrar o referido acordo. Ficam estes rabiscos, como já mencionei, como mera satisfação aos que se dignam a decifrar estas garatujas, para que se façam conhecedores de minhas dores e de minhas saudades.

Ah, Senhor. Tu naturalmente hás de lembrar que, numa manhã azul, exatamente quando devíamos celebrar a Tua chegada ao mundo — digo, o dia da Natividade —, não sei com que motivação, Tu resolveste levar para junto de Ti um menino meu. O Sol, desde então, viu a Terra dar 22 voltas em torno dele e... nunca mais minha vida foi a mesma desde que tiraste esse pedaço de mim.

Vamos, então, à troca que proponho. O que quero da Tua parte?

Cauê, filho do autor (in memorian)
Quero que dês o privilégio de alguns instantes ao lado dessa minha cria que levaste. Quero só rever, mesmo que seja por um tempinho, aquele sorriso que inaugurava a vida a cada manhã. Quero que chegue a mim a voz de quem eu ouvira muitas vezes “meu pai”, tão cheia de orgulho e carinho. Sentir seu abraço lhano, sua companhia, como nos meus momentos de euforia e nos de angústia, quando era capaz de me fazer ver que a vida era maravilhosa e valia a pena. Preciso de um pouquinho de tempo para olhar nos olhos dele e dizer da saudade que sinto. Relembrar com ele os bons momentos que vivemos juntos, quando ele deu os primeiros passos, pronunciou as primeiras palavras. Perguntar se ele se lembra de nossas caminhadas, nossas pescarias, nossas viagens. Como gostava de viajar aquele rapaz!

Em troca, vê: dou-Te o meu jardim, do qual cuido com esmero e denodo, verdejante e florido. Podes levar com ele os colibris costumazes do meu quintal. Leva para Ti meu canarinho cantador. Podes levar aquele cantinho com meus livros que tanto preenchem minha vida. Tomas os que escrevi (podem não ser lá essas coisas, mas é o melhor que extraí de mim).

GD'Art
Se estiveres achando pouco, leva minhas manhãs azuis, o nascer esplendoroso desse Sol que me conforta e aquece. Ofereço também minhas tardes douradas e o adormecer de todas elas. Põe nesse pacote minhas noites, com o ciclo mágico de todas as Luas. Se quiseres, entrego os dias de chuva, pois nem imaginas como os aprecio.

Para que sejas generoso, entrego duas caixas com fotografias. Ali está minha história de vida e, então, vê, com esta minha oferenda, de quanto estou me desfazendo. Perder fotografias é perder o passado e o que há de melhor dele.

Achas pouco, Senhor? E vê o que Te ofereço em troca desses instantes. Não darão curas às minhas dores, mas me trarão a magia do melhor dos reencontros que a vida é capaz de nos proporcionar.

Enfim, é o que estou pedindo. Queres mais? Dize-me. Sabes o que sou capaz de entregar-Te. Dou-Te tudo o que de melhor possuo. Tudo isso por este breve momento. Por um instante só.

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  1. Dor inegociável

    Que dor!
    A dor que fica
    como um braseiro que queima,
    nunca apaga,
    que arde
    sem parar.
    Inimaginável
    seu tamanho,
    sua densidade....
    Profundidade tamanha
    não cabe
    em nenhum acordo
    em nenhum tratado
    em nenhum contrato
    dessa impossível
    transação.

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  2. Que poema sublime! Poucos entregam a própria alma por Amor.

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  3. Como sofre o materialista. O filho continua vivo, lhe amando e falando ao seu ouvido: "Pai fomos imortais, fomos criados por Deus para viver para sempre."

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