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- Aqui que mora o pintor? Eu estava deitado no sofá, quando aquela cabeça assomou por sobre a porta de baixo, da entrada da casa e, d...


- Aqui que mora o pintor?

Eu estava deitado no sofá, quando aquela cabeça assomou por sobre a porta de baixo, da entrada da casa e, depois da pergunta, ficou me encarando, interrogativa. O homem estava do lado de fora da casa, posicionado uns dois batentes abaixo do umbral daquela porta no velho estilo saia & blusa.

Corria o ano de 1974, contava eu então 19 anos de idade e estava passando férias da faculdade em casa de minha mãe, em Campina Grande, na Avenida Getúlio Vargas, 447, centro.

O homem, relativamente jovem, era gente das mais simples. Vai ver, um serviçal doméstico, e – mas não exatamente por isso --, sem a menor chance de suspeitar que suas palavras acabavam de ser importante vetor no destino de uma vida. O pintor no qual eu, incertamente sonhava me tornar um dia, acabara de ser convocado por ele, de uma forma clara, inequívoca, carregada de convicção. Aquela certeza me contagiou e me emprestou suficiente coragem para, pegando na palavra, responder:

-- Aqui mesmo. Sou eu!

Ele trouxera um recado da d. Lisete (a quem conhecíamos por ser amiga de nossa mãe), que queria contratar um trabalho, e naquele momento estava esperando por mim, um mero estudante de Arte, em sua casa – não muito distante dali – para acertar os detalhes. Ele deu o recado e se foi. Logo em seguida, ainda surpreso com aquilo, coração agitado, parti no rumo daquele endereço, descendo pela calçada da rua. Passei a Mercearia de Seu Adauto, cruzei a Rua Indios Cariris, passei na frente do Cine Avenida, no quarteirão seguinte, dobrei à esquerda na Rua Siqueira Campos, e logo me encontrava diante da casa.

D. Lisete me fez entrar, e, ali mesmo, no jardim, fez a primeira pergunta: se eu sabia mesmo como fazer retratos a óleo. Acontece que, naquele momento, eu me achava ainda contaminado pela dose de autoconfiança, há pouco inoculada, e com isso, passei a responder afirmativamente aos questionamentos sobre minha capacidade artística. Me lembro de vê-la parar, depois de preenchido seu questionário de dúvidas, e me examinar em silêncio por algum instante, antes de entrar na casa para buscar a fotografia em tamanho 3x4 do falecido. De volta, perguntou: ‘’Você acha que dá para fazer por aqui?’’

Era o pai do marido dela, Seu Arnóbio, numa foto antiga e semiapagada. A mulher logo me explicou que estava preparando uma surpresa para o dia do aniversário de seu marido, em data próxima. Ela conhecia bem o tipo de apego que unia Gonzaga, gerente de uma transportadora, à memória paterna. Seria uma enorme surpresa para o filho de Seu Arnóbio, isso a mulher fez questão de salientar. Pelo que dela ouvi, e pelo que ouviria depois do próprio Gonzaga, posso afirmar sem receios que a ligação afetiva que ele mantinha com seu pai em nada devia àquelas que Amadeus Mozart, William Turner, ou o Arquiteto Germano Romero, haviam, pela vida inteira, mantido com seus respectivos progenitores. Mais que amor, veneração.

Minha mãe me adiantou o dinheiro para comprar tela e tintas, e nessa altura, é preciso explicar que, por aqueles dias, eu até já havia participado de uma primeira Exposição Coletiva de Artes Plásticas na Capital, ao lado dos colegas Dalberto Henriques, Bruno Steinbach, Elpídio Dantas, Guilherme Lira, Marcos Pinto, Antonio Lucena e Sandoval Nóbrega, embora tudo que eu tivesse feito até então com pincéis e tintas não fosse mais que algumas pinturas cubistas, alguns pastiches naquela linha mais Picassiana possível, estando portanto ainda bastante longe de possuir o traquejo técnico suficiente para pintar um retrato a óleo, cuja fatura exige do artista não apenas domínio de recursos pictóricos, mas também da sutileza presente em convenções sociais desse tipo. Desenhar eu bem que sabia, sim, e por isto estava ali. Havia feito um retrato, 10 ou 12 anos atrás, quando era apenas um menino e morava em Patos-Pb. Naquela ocasião, porém, fazendo uso exclusivo de lápis grafite sobre papel cartolina.

Por aqueles dias, alheamento profissional combinado com excesso de confiança em relação às dificuldades que me aguardavam, foi o pretexto para que o Arquétipo conhecido como ‘Loucura da Juventude’, se apressasse em invadir meu processo criativo, o que de fato aconteceu quando escolhi para cenário de fundo daquela pintura uma sombria paisagem de canavial ao entardecer (considerei – pasmem! -- que um certo clima sobrenatural ‘caísse’ bem para um homem que já falecera!)... e, como se não bastasse, resolvi colocar uma espécie de lacrau passeando sobre a lapela do paletó da personagem, num arroubo de sinceridade (própria talvez de certo traço cultural inerente a paraibanos rebentos da primeira metade do séc. XX, por herdade do poeta Augusto dos Anjos) que pretendesse lembrar os vermes que foram seus verdadeiros companheiros durante a última viagem!…

Comecei a pintar o lacrau, mas aí, um pequeno filete de luz alcançou-me na mente, aspergindo ali um restinho de bom-senso para que eu, pelo menos, passasse a desconfiar de que talvez os familiares do morto não fossem gostar daquilo... e apressadamente tratei de retirar aquele inseto dali. O forte Tenebrismo canavieiro, porém, um mal menor, esse permaneceria. Quando, finalmente, terminei o trabalho, assinei-o e tratei de rapidamente entregá-lo, pois a data limite já se expirava.

Quando transpus o portão e exibi a tela para d. Lisete, ali mesmo no jardim, ela permaneceu por um tempo muda e espantada com o que via. Na sequência, eu tive o extremo dissabor de, aos poucos, ver sua expressão cambiar do inesperado espanto para um misto de angústia e raiva. “Os olhos até que parecem’’, ela foi dizendo, ‘’a boca também, mas ele não tinha bochechas grandes assim. Seu Arnóbio não era inchado desse jeito. Ele nem bebia’’. E foi ‘pegando ar’ à medida que falava. Não se cansava de citar defeitos, sobretudo os das tais bochechas. Nesta altura eu já buscava um buraco onde me socar, feito um daqueles vermes, os tais amigos derradeiros do falecido, mas, num dado momento, a dona Lisete se deu conta do quanto eu estava constrangido, e foi então que se lembrou de recorrer à viúva do retratado para que emitisse ela também sua opinião sobre a obra. Afinal, a dona Alice vivera a vida inteira com o suposto retratado, opinião esta que a dona Lisete – foi logo adiantando --, havia de ser equivalente à sua, desabonadora de qualquer suposta fidelidade naquele retrato à feição de Seu Arnóbio, e, se assim fazia, era para que eu não pensasse que ela estava com algum tipo de má vontade para com meu trabalho, e procurasse compreender que ela estava apenas muito decepcionada com o fracasso da empreitada, com aquela tremenda falha de fidelidade na pintura.

Hoje eu me arrisco a dizer que o que ela tentara me explicar, na verdade, é que estava com muita raiva de si própria por ter sido tola ao ponto de acreditar que um jovem inexperiente feito eu fosse capaz de cumprir à risca um compromisso daqueles. Dito aquilo, porém, a mulher entrou novamente em casa e foi buscar a sogra anciã.

Depois de uma espera interminável, a dona Lisete e uma empregada da casa, segurando cada uma num dos cotovelos de dona Alice Gonzaga, já de idade bastante avançada, apareceram na porta. A anciã bem que era frágil. Bem decrepitazinha. Levaram um tempão para fazê-la descer o desvão de uns poucos centímetros entre a sala e o terraço. Por fim a sentaram numa cadeira, e enquanto a dona Lisete, considerando a avançada miopia da sogra, posicionava o quadro sobre as coxas dela, a outra mulher tratava de colocar-lhe os óculos no rosto. Nesse momento, e eu digo aqui com sinceridade, senti um tênue fio de esperança me reanimar: é que naquelas condições em que a viúva se encontrava, tudo podia se esperar. Era possível ATÉ MESMO que ela viesse a identificar naquele retrato as feições do companheiro que o destino um dia lhe designara para seu convívio. Mas, quando a idosa, finalmente, pôs seus olhos no quadro e neste se concentrou, demoradamente, um silêncio se fez. Depois de um tempo que me pareceu um século, a d. Alice Gonzaga, com uma energia insuspeitada quanto súbita, fez aquele gesto de afastar o quadro de si, e com seu filete de voz, ergueu a cabeça e exclamou para que todos ouvissem:

--- Este aqui nunca foi o finad’Arnóbio!

Ato contínuo, a nora sentou-se ao lado dela, e passou a salientar, para ela, os traços cuja infidelidade condenavam o retrato, e só depois, quando percebeu, num relance, o lamentável estado psicológico em que eu me afundara, voltou-se pra mim, e, preocupada, quis minimizar a situação. Tentava agora me consolar, dizendo que a pintura era, apesar de tudo, de excelente qualidade, o quadro era bonito, etc., apenas não concernia à pessoa do retratado. Que eu não ficasse assim, porque ela iria me pagar segundo o combinado, etc. Disse ainda que, de qualquer forma, eu havia feito o possível para cumprir com meu papel, que havia entregue o quadro no tempo combinado. Apenas ela desistira de presenteá-lo ao marido. Só isso.

Quando eu subia de volta a ladeira da Avenida, o desânimo quis tomar conta de mim. O dinheiro que eu tinha colocado num bolso da calça, em contato com minha coxa, parecia queimar. Como se fosse dinheiro roubado. Teve um momento em que parei junto a um poste. Estava confuso e angustiado depois do enorme vexame a que fora submetido, mas foi aí que subitamente me ocorreu um pensamento redentor: o de que havia alguma coisa errada com o que eu acabara de experienciar.

Em seguida me lembrei da recorrência biográfica sobre todos que são vocacionados para alguma profissão, dos primeiros testes a que são submetidos na vida, e sobre os quais obtêm sua invariável superação. Portanto, aquelas mulheres estariam certas, caso eu não possuísse vocação para a pintura. E erradas, em caso contrário. De qualquer forma eu não havia pintado aquele quadro para elas, mas para aquele que era filho e marido delas. Este raciocínio, bastante claro, me acalmou, e eu consegui assim, são e salvo, estar em casa de volta naquela manhã.

Mas não demorou. Aproximava-se o final das minhas férias e lá estava eu, deitado no mesmo sofá, quando aquele mesmo rosto assomou sobre aquela mesma porta. “Seu Gonzaga mandou lhe convidar para almoçar com ele. Hoje. Ao meio dia”. Lembro bem desse domingo. Quando entrei na sala vi o retrato aposto, de frente, na copa ao lado, a mesa estava posta. Havia vinho sobre ela, taças de cristal e muita comida. Gonzaga ergueu-se para me receber e começou a falar. “Ontem, eu cheguei em casa às pressas, no final do expediente, pois precisava vestir uma roupa social para me fazer presente a um evento da Empresa. Lisete não se achava em casa, e eu comecei a procurar meus sapatos, sem encontrá-los. Nisso, me veio a ideia de verificar sobre o guarda-roupa, e após subir em uma cadeira, passei a mão lá por cima, e esta bateu em algo que caiu com grande barulho na parte de trás do guarda-roupa, desci da cadeira e fui ver o que era aquilo. Com aquele quadrado nos braços o meu susto foi enorme. Era meu pai, olhando para mim. A primeira coisa que fiz foi cancelar o evento social. Inquiri primeiramente minha mãe, que estava em casa. Passei ordens depois para os empregados, para que fossem procurar a Lisete nos lugares aonde ela costuma ir. Quando por fim me explicaram tudo, tim-tim por tim-tim, eu falei para as duas: vocês humilharam esse pobre artista. Este é o meu pai tal qual trago na memória esses anos todos da minha vida. Ele com suas bochechas, que a doença varreu de seu rosto nos anos da longa enfermidade que acabou com a vida dele, mas vocês rapidamente se acostumaram com sua imagem descarnada do final. Mas este é e sempre será o pai que tive e tenho, e vocês esconderam de mim o retrato fiel dele. Eu falei para Lisete: no meu aniversário você substituiu o quadro por um par de sapatos novos, dos quais, aliás eu estava mesmo precisando, mas foi esse mesmo par de sapatos que, antes mesmo de serem calçados pela primeira vez, acabaram me conduzindo para o esconderijo do quadro. Vamos agora fazer para esse moço, um pequeno almoço de desagravo. Acredito que ele possa nos perdoar”...


Alberto Lacet é artista plástico e escritor
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Numa noite, no ano de 1956, ele entrou estabanado na sala de uma residência em Teixeira – Pb, no pleno decorrer de uma Cantoria de Vi...


Numa noite, no ano de 1956, ele entrou estabanado na sala de uma residência em Teixeira – Pb, no pleno decorrer de uma Cantoria de Viola entre Lourival do Pajeú e Pinto do Monteiro. A forma inoportuna de sua chegada provocou mais uma sextilha famosa de Louro do Pajeú:

Ô Pinto, preste atenção / O mundo está transformado / Veja só Pedro Compasso / Como vem com o passo errado / Os outros compassos riscam / Mas este já vem riscado

Natural da Serra do Teixeira, Pedro Compasso foi um dos primeiros motoristas a se aventurar por aqueles contrafortes da Borborema, tendo se iniciado nos mistérios que passam da centelha à combustão, da tração à rotação e guia, quando ainda bem jovem, levado que foi pela mão do legendário ‘Bibiu’ – decano dos chauffeurs teixeirenses -- para ser seu ‘’moleque de ajuda’’ por acidentadas viagens durante aquele pós-guerra de 1930.

Para a sorte de ambos, o destino os poupou de errar pela “Ladeira da Verônica” (também chamada de Ladeira da Onça, tinha esse nome por ter sido ali onde Verônica Lins de Vasconcelos, esposa do sertanista pernambucano Manoel Lopes Romeu, havia matado uma onça – a facão, diriam uns, a arcabuz, diriam outros – quando à frente de um pequeno bando de serviçais, sobe a serra no ano da graça de 1773, numa ação mais do que temerária, e que tivesse por único objetivo recuperar seu marido que, a pretexto de uma caçada, estava se demorando por aquelas paragens muito além do que fosse recomendável), que era o pesadelo de tantos quantos tivessem de tomar o rumo Norte, que leva ao sertão. Isto devido à descida extremamente abrupta e íngreme a que essa aclive levava, uns 200 metros mais na frente.

Mas, os tempos mudavam. Senhores mais abastados começavam a importar automóveis de diferentes marcas, e, uns anos depois, o Brasil via surgirem os caminhões popularmente conhecidos como Fenemês, da nascente indústria nacional, e isso era razão de sobra para o Estado Novo de Getúlio Vargas resolver espalhar estradas pelo país, e assim, no começo da década de ‘40, iniciou-se a construção da chamada Estrada de Rodagem, que era o que podia haver de mais moderno para aqueles habitantes da serra.

‘Governar é Abrir Estradas’, dizia um jargão da época, e essa máxima se estendeu por todo um período que ia do final dos anos ’30 até a década de ´60. Naquele início, é possível dizer que a vida parecia sorrir para o legendário Bibiu, e, por tabela, para Pedro Compasso.

Aconteceria, porém de, nos anos posteriores, quando já houvesse Bibiu largado a profissão, vitimado por um acidente que lhe comprometeu parte da mobilidade física, que continuasse seu pupilo, Pedro Compasso, a frequentar boléias, e até conseguisse adquirir para si um caminhãozinho velho. Comumente chamado de “fubica’’, este lhe permitia, no entanto, manter-se como autônomo, dono de seu tempo, longe das ordens dos senhores brancos e abastados.

No começo de todo aquele processo, porém, a Serra do Teixeira registraria grande quantidade de acidentes fatais. Os caminhões produzidos na época pela indústria internacional – Studebaker, Alpha Romeu, etc -- não tinham ainda tecnologia satisfatória para enfrentar condições tão adversas em estradas que iam sendo construídas sem observância de quaisquer dos princípios básicos de segurança, tais como hoje os entendemos: acostamento, barras de proteção, sinalização, etc. O sistema de freios, a incipiente resistência do material utilizado na confecção da barra de direção, para citar alguns pontos vulneráveis, não suportavam torções e pressões quando submetidos ao transporte de cargas muito pesadas em ladeiras com inclinação próxima dos 40 gráus.

O carro de Antonio Pereira / Em baixa velocidade / Virou, matando a metade / Do povo bom de Teixeira / Gente boa, hospitaleira / Se acabou nesta enrascada / Com gente ruim não há nada / Não há sequer embaraço / Cadê que Pedro Compasso / Nunca morreu de virada?

(poeta Zé Marcelino)

Mas essa inovação na vida dos brasileiros começara, em Teixeira como em todo canto, a produzir novos profissionais do volante. As continuadas politicas desenvolvimentistas alcançariam seu auge nos anos ’50, e, nas imediações da bomba de gasolina de Aristeu Guedes, onde motoristas faziam ‘ponto’, tornou-se cena comum esses novos profissionais troçando do velho Pedro Compasso (que por esse tempo dividia a antiga constância no volante por essa mais recente, de consumir aguardente) com seu maquinário ultrapassado.

Zombeteiros, aqueles moços punham em dúvida não só a capacidade profissional do velho caminhoneiro, como a da sua esgarçada ferramenta de trabalho, um antigo Volvo de cor escura indefinível, e cuja máquina demorava-se cada vez mais em ceder aos apelos da manivela. Jocosos, gritavam de longe suas provocações a Pedro Compasso. Faziam isso, certamente, para ouvir as respostas espirituosas de sempre:

-- Aonde eu entrar no Recife com 60 km/h de ré, vocês não entram com 30 de frente!”

Magro e alto, Pedro Compasso tinha braços e pernas que, por serem muito longos faziam dele um tipo bastante desengonçado, e que parecia estar sempre ocupando o espaço na forma mais imprevisível. Bebendo em um bar, ele agitava-se e falava num tom de voz que era sempre em sustenido maior. Falava como se estivesse no meio de uma feira abarrotada de pessoas. E talvez por sua verve pitoresca, gostasse, como poucos de se fazer presente às cantorias de viola.

Encerremos com esse verso primoroso do poeta Zé Marcelino, escrito momentos após ‘convencer’ Pedro Compasso a se retirar do seu bar, numa hora da noite já bem tardia. Feito como verdadeiro desabafo, após fechar as seis portas de seu bar:

O diabo que joga o laço / Em tanta gente de bem / Porque um dia, não vem / E leva Pedro Compasso?/ Lhe deixe lá no espaço / Na esfera sideral / Onde seu corpo anormal / Que tanto incomoda e erra / Fique longe cá da terra / Não se veja nem sinal.


Alberto Lacet é artista plástico e escritor. lacet.alberto@gmail.com

Um náufrago é alguém de quarentena, isolado no mar da vida, tocando numa direção incerta como esse timão governado por um macaco prego, o ma...



Um náufrago é alguém de quarentena, isolado no mar da vida, tocando numa direção incerta como esse timão governado por um macaco prego, o mais irrequieto de todos os símios…

Mas pode ser também um momento de grande criatividade. As grandes obras de Arte européias, tanto na Música quanto na Pintura, foram criadas em quarentenas decretadas pelo frio. Sem falar que, em consórcio on-line com Mauricio Carneiro, o Dr. Cachacinha, estou criando o protótipo embrionário de uma bebida chamada Xaropirinha, um blend de Volúpia com mel de italianas, e que, desdobrado em sumo de limão e gelo, fornecera uma nova caipirinha,.. Como vê, o confinamento pode servir para alguma coisa.

O confinamento nunca é verdadeiramente confinamento a menos que não saibamos o que fazer com ele. É claro que cientistas, artistas, escritores, filósofos, artesãos finos, etc, fazem da solidão a verdadeira estrada da vida. E eles devem ensinar às pessoas, ou tentar passar um pouco de esperança, e que é possível lidar com isso, sem entrar em desespero.

Os antigos eremitas, religiosos autênticos, os monges, tinham se apoderado dessas capacidades. Com o tempo a religiosidade decaiu muito porque aquele fervor de crença já não se fazia necessário em uma igreja vitoriosa e que estava entregue ao poder mundano.

Pablo Picasso disse uma vez: "Ninguém haverá de criar nada sem o favor da solidão. Sabendo disto, tratei de criar uma solidão para mim". O gênio e sua penetrante compreensão dos processos em que está envolvido.

Tenho um amigo pintor que agora mesmo está islado e às voltas com uma tela de dimensões maiores que as comumente usadas por ele. Me disse que não tinha outra coisa a fazer que não fosse pintar, e eu lhe disse que esse era o momento de avançar (ele é um sujeito culto e certamente sabe disso), que os momentos em que eu consegui dilatar minhas concepções, composições e execuções artísticas se deram em meio às piores dificuldades, tanto materiais quanto espirituais, e posso dizer mesmo que me encontrava bastante adoecido e fragilizado.

Mas consegui, naqueles momentos de sofrimento, dar uma resposta criativa à altura do que a cisma existencial exigia para que eu seguisse vivendo, e que tinha de ser em novo patamar. E foi isso que aconteceu. Era uma quarentena mil vezes pior do que essa que vivo agora.

As pessoas que passam dramas profundos e conseguem superar adquirem alguma imunidade, embora não devam se confiar na HYBRIS...

(retraços da Web)