O mito da mulher perfeita foi criado pelos trovadores. Como a sociedade feudal era extremamente machista, e lá a figura feminina não decid...
Sobre a mulher ideal
O mito da mulher perfeita foi criado pelos trovadores. Como a sociedade feudal era extremamente machista, e lá a figura feminina não decidia nada (a não ser, por exemplo, com que plantas aromáticas iria lavar os pés do marido), era necessário compensar essa inferioridade dando a ela contornos ideais. Nas cantigas, a mulher não é a escrava do cotidiano – é a senhora, ou a “mia senhor”. Esse tipo de culto se limitava ao plano da arte, claro; no dia a dia, a discriminação continuava a mesma.
“A árvore da Serra” é um dos sonetos mais populares de Augusto dos Anjos . Comumente o vemos recitado em aulas, festas, saraus literários e ...
A cena edipiana em “A árvore da serra”
As palavras, como as pessoas, nascem e morrem. A diferença entre elas e nós é que podem ressuscitar. Um dia, quando menos esperamos, depara...
Antigamente
As palavras, como as pessoas, nascem e morrem. A diferença entre elas e nós é que podem ressuscitar. Um dia, quando menos esperamos, deparamo-nos com um arcaísmo que nos faz voltar à infância (esse “deparamo-nos”, com o pronome enclítico, não seria um?).
As redes sociais são uma espécie de imprensa informal. Nelas se encontra, de maneira menos elaborada, tudo que aparece nos jornais: notícia...
Confissões virtuais
As redes sociais são uma espécie de imprensa informal. Nelas se encontra, de maneira menos elaborada, tudo que aparece nos jornais: notícia, colunismo mundano, consultório sentimental e breves juízos que lembram as colunas de opinião. Têm além disso a confissão e o desabafo, o que constitui uma vantagem em relação à imprensa. Ninguém encontra no jornal relatos de doenças, malogros econômicos, fracassos amorosos e de outras ocorrências que infernizam a vida do ser humano. Como diz a letra da música, “a dor da gente não sai no jornal”.
Estavam bem velhinhos, ela já doente, ele lhe fazendo companhia. Tudo que tinham eram as lembranças dos velhos tempos, que pareciam cada ve...
A volta
Estavam bem velhinhos, ela já doente, ele lhe fazendo companhia. Tudo que tinham eram as lembranças dos velhos tempos, que pareciam cada vez mais indistintas. Como não tinham tido filhos, encheram a vida com passeios, viagens e uma rotina silenciosa. Pareciam se entender sobre quase tudo e sentiam pouca necessidade de falar um com o outro.
Nosso propósito era deixar Roma cedo e seguir o mais rápido possível para Florença. Não pudemos fazer isso, pois uma família que fazia part...
Perfume de Florença
Nosso propósito era deixar Roma cedo e seguir o mais rápido possível para Florença. Não pudemos fazer isso, pois uma família que fazia parte do grupo fora assaltada na porta do hotel. Quando já estávamos de saída, a mulher entrou no ônibus, lívida e chorosa, dizendo que lhe haviam levado a bolsa com tudo que havia dentro: dinheiro, passaporte, documentos (e até uma carteira de motorista que o marido, ninguém sabia por quê, trouxera do Brasil; talvez por ter mais medo dos nossos ladrões).
Fala-se da melancolia como um novo mal do século, mas ela é tão antiga quanto o próprio homem. Pode-se dizer que o que nos inaugura, em ter...
A máscara de Narciso
Fala-se da melancolia como um novo mal do século, mas ela é tão antiga quanto o próprio homem. Pode-se dizer que o que nos inaugura, em termos simbólicos, é a tristeza consequente à “primeira transgressão”. Essa tristeza nos estrutura e nos reinventa.
Sucumbimos ao apetite pelo fruto proibido e em troca ganhamos o arrependimento, o selo de nostalgia que nos faz encarar continuamente a face do abismo, o outro lado de nós mesmos, a sombra da morte (contra a qual se recorta a vida em seu provisório esplendor).
Perder é o nosso destino e em nenhum momento nos alheamos disso. Vestimos os disfarces da alegria mas somos substancialmente tristes, herdeiros de Belerofonte, o patrono da grei dos melancólicos na cultura ocidental. Ele teve a ousadia de desafiar os deuses e acabou ficando sozinho, “cantando sobre os ossos do caminho/ a poesia de tudo quanto é morto” – conforme dirá séculos depois Augusto dos Anjos.
Aristóteles destacou o refinamento perceptivo do melancólico, que teria mais aptidão do que os outros homens para as atividades do pensamento e da arte. O que o acomete é um desequilíbrio humoral (discrasia); nele o humor negro (melaina kole) prepondera sobre os outros humores. Mas, para o estagirita, ser dosadamente triste é vantajoso.
Foram os românticos que descobriram (e valorizaram) o charme da melancolia. Com eles a tristeza e o tédio viraram pose e se transformaram numa escolha de vida (e também de morte). Divinizavam a mulher para colocá-la fora do seu alcance. Embora dessem a entender o contrário, eles fugiam do prazer erótico, ao qual se associava a angústia decorrente do sentimento de culpa. O amor romântico era uma maldisfarçada vitória de Tânatos.
Veio a modernidade e, com ela, Freud. Entre as muitas intuições que teve o mestre vienense, destaca-se a de que o melancólico está de luto. Tão simples, mas só ele viu.
Ou, se outros também viram, foi ele quem melhor formulou a ideia da melancolia como resultante de um luto por si mesmo (uma defecção do ser, como diz Julia Kristeva em “Sol negro”).
O mecanismo é distinto do que ocorre no luto normal: ao perder o objeto (que pode ser uma pessoa, um ideal, um valor), o sujeito se identifica com ele. E passa a tratar a si mesmo com o ressentimento que deveria ser destinado a quem o abandonou. Desprezado, o sujeito julga que não merece o afeto ou o interesse de ninguém. Perde a autoestima e se abisma numa tristeza que pode culminar no suicídio – uma forma de matar, enfim, esse outro cuja sombra caiu sobre ele.
Seja na perspectiva da teologia, seja na da filosofia ou na da psicanálise, que vê o melancólico como vítima de um jogo de forças no qual o objeto triunfa sobre o eu, ressalta-se a concepção da melancolia como uma crise do indivíduo, da subjetividade, enfim, do próprio ser. Mas é ela que orienta a nossa busca para um absoluto que desejamos, fantasiamos, e que também está em nós. Para além da triste máscara de Narciso.
Vejo uma reportagem na TV sobre compulsão. A repórter entrevista alguns compulsivos, que falam sem pudor de suas manias. Uma mulher só se s...
Compulsões
Vejo uma reportagem na TV sobre compulsão. A repórter entrevista alguns compulsivos, que falam sem pudor de suas manias. Uma mulher só se sente feliz quando faz compras. Mostra no guarda-roupa uma porção de vestidos, blusas, sapatos que jamais vai usar.
Li há algum tempo que o Projeto Genoma conseguiu mapear mais de 98% do código genético humano. Trata-se de um feito semelhante à invenção d...
Bravos genes brasileiros!
Li há algum tempo que o Projeto Genoma conseguiu mapear mais de 98% do código genético humano. Trata-se de um feito semelhante à invenção do telescópio, que permitiu a Galileu perceber que a Terra não é o centro do Universo, e está no mesmo nível da descoberta da evolução (Darwin) ou do inconsciente (Freud).
Sou o que se pode chamar de frutófilo desde a infância. Muito antes de a ciência enfatizar que fruta é bom para a saúde e pode ser consumid...
Psicanálise das frutas
Sou o que se pode chamar de frutófilo desde a infância. Muito antes de a ciência enfatizar que fruta é bom para a saúde e pode ser consumida à vontade, eu já era um consumidor voraz de mangas, sapotis, laranjas e que tais. Comia-as ou chupava-as não por dever, mas pelo gosto de saboreá-las. Hoje me ocorreu indagar se não haveria algum tipo de correlação entre a preferência por certo tipo de fruta e a personalidade do indivíduo.
O tempo é um dos maiores enigmas humanos. Muitos já tentaram decifrá-lo, mas, ou não tiveram suficientemente tempo para isso, ou desistiram...
Divagando sobre o tempo
O tempo é um dos maiores enigmas humanos. Muitos já tentaram decifrá-lo, mas, ou não tiveram suficientemente tempo para isso, ou desistiram pela complexidade do tema. A hipótese mais viável é a segunda, pois quem se dispõe a meditar sobre a passagem do tempo não está ocupado com outras coisas e pode se dedicar com muita calma a isso (alguém já disse que, sem ócio, não haveria filosofia nem chá dançante).
Os manuais de redação dizem que escrever bem é evitar lugares-comuns. Nada compromete mais o estilo do que o uso de expressões batidas, do ...
A precisão dos clichês
Os manuais de redação dizem que escrever bem é evitar lugares-comuns. Nada compromete mais o estilo do que o uso de expressões batidas, do arroz de festa linguístico que nada acrescenta à expressão. Mas não é fácil fugir ao clichê. O leitor terá notado que acabei de usar um – “arroz de festa”. E por que é tão difícil escapar dessas fórmulas?
O problema da indisciplina na escola estava sério, por isso o diretor convocou uma reunião dos professores com os pais dos alunos. Ultimame...
O quase facínora
O problema da indisciplina na escola estava sério, por isso o diretor convocou uma reunião dos professores com os pais dos alunos. Ultimamente houvera episódios graves – um deles envolvendo o professor Astrogildo (por sinal, um dos mais detestados da escola). Ele se dirigira a uma aluna e, diante da turma, dissera que ela não tinha futuro; era bagunceira demais para esperar coisa boa da vida. A menina saiu da classe chorando e foi para casa mais cedo.
Uma das versões da tela “O grito”, de Edvard Munch, foi arrematada em leilão por cento e vinte milhões de dólares. Li que nunca se pagou ta...
Uma ponte entre Munch e Augusto
Uma das versões da tela “O grito”, de Edvard Munch, foi arrematada em leilão por cento e vinte milhões de dólares. Li que nunca se pagou tanto por um quadro. “O grito” mostra um homenzinho que caminha sobre uma ponte e é surpreendido por algo que o aterroriza. Não se sabe o que ele vê, nem mesmo se está vendo alguma coisa. A força da imagem vem sobretudo desse enigma.
Ele mais uma vez dormira mal. Com tanta gente sendo presa, tinha medo de não sair ileso. Envolveu-se em algumas tramoias, é certo, mas como...
A vidente
Ele mais uma vez dormira mal. Com tanta gente sendo presa, tinha medo de não sair ileso. Envolveu-se em algumas tramoias, é certo, mas como poderia resistir? Agiu por influência de amigos e porque isso era “da cultura”, todo mundo estava fazendo. Do grupo participavam cerca de dez, todos com codinomes; o dele era “Menestrel”. Nunca entendeu por que resolveram chamá-lo assim, já que não gostava de música e tinha a voz péssima. Talvez tenha sido justamente por isso; a turma gostava de ironizar.
O hábito começou muito cedo. Dizia “papá” e “mamã” com um prazer especial em jogar com as sílabas. “Pa... pá”, “mã... mã” – os sons iam e v...
O colecionador de palavras
O hábito começou muito cedo. Dizia “papá” e “mamã” com um prazer especial em jogar com as sílabas. “Pa... pá”, “mã... mã” – os sons iam e voltavam até que ele os guardava para depois, quando quisesse, brincar de novo. Com o tempo foi juntando outros fonemas (“bu... bu”, “pi... pi”, “tó...tó”). Um dia teve febre e ouviu “dodói”; enamorou-se da palavra e ficou repetindo-a em seu delírio.
O politicamente correto chegou às cantigas infantis. A partir de agora devemos ter muito cuidado com o que cantamos para as crianças. Uma s...
Cantigas perigosas
O politicamente correto chegou às cantigas infantis. A partir de agora devemos ter muito cuidado com o que cantamos para as crianças. Uma simples canção de ninar pode embutir um significado nocivo, capaz não só de amedrontá-las como também de marcar-lhes negativamente a personalidade.
Eu fazia o segundo ano ginasial. Meu colégio não era nenhum modelo de prática pedagógica, mas gozava de prestígio na cidade. Estava longe d...
A peteca
Eu fazia o segundo ano ginasial. Meu colégio não era nenhum modelo de prática pedagógica, mas gozava de prestígio na cidade. Estava longe de ser, como se costuma dizer de certas escolas, “pagou, passou”. Também não impunha aos alunos grandes desafios; estudando razoavelmente, a gente conseguia passar de ano até chegar ao temido vestibular. Isso permitia que eu tivesse um razoável sucesso, pois as peladas e os jogos de botão não me impediam de fazer os deveres e me preparar para as provas.
Gosto da palavra “namorar”. É um dos verbos mais puros da língua portuguesa. Mesmo quando por eufemismo designa outra coisa (a ligação entr...
Namorar
Gosto da palavra “namorar”. É um dos verbos mais puros da língua portuguesa. Mesmo quando por eufemismo designa outra coisa (a ligação entre amantes, por exemplo), “namorar” sugere mais ternura do que desejo. É uma palavra tão embebida em frescor adolescente, que deveria ser proibida aos que se relacionam num nível mais avançado.
A mentira é também a nossa verdade. É uma forma estratégica de nos relacionarmos com o mundo. Que seria de nós sem esse espaço de manobra q...
Sobre a mentira
A mentira é também a nossa verdade. É uma forma estratégica de nos relacionarmos com o mundo. Que seria de nós sem esse espaço de manobra que nos permite lidar com a pressão dos outros? Acossado por deveres sociais, éticos, econômicos, não resta ao homem senão mentir.