Mostrando postagens com marcador Sam Cavalcanti. Mostrar todas as postagens

Não é mesmo nada fácil escrever sobre amigos quando se pretende uma avaliação isenta. Por outro lado, sabemos que com os verdadeiros amigos...

ambiente de leitura carlos romero musica nata rio grande do norte samuel sam cavalcanti pianista potiguar grace elizabeth smith-alves

Não é mesmo nada fácil escrever sobre amigos quando se pretende uma avaliação isenta. Por outro lado, sabemos que com os verdadeiros amigos deve-se cultivar a sinceridade e a boa crítica, porque se trata de um olhar carinhoso com o único objetivo de melhorar, ou, pelo menos, contribuir com o aprimoramento de quem temos estima. Arvoro-me nessa empreitada a falar, desta vez, sobre álbum de grande amiga potiguar-estadunidense.

A voz é o instrumento primeiro, mais natural, de expressão primordial de onde parte toda a articulação para os instrumentos externos ao cor...

Ambiente de leitura carlos romero samuel sam cavalcanti Ottoni de Figueiredo Melo Collegium Pro musica louis boyer jose alberto kaplan musica canto coral canto lirico voz humana

A voz é o instrumento primeiro, mais natural, de expressão primordial de onde parte toda a articulação para os instrumentos externos ao corpo humano. Não é à toa, então, que durante séculos a música centro-europeia fundou-se em obras essencialmente vocais. Não é um instrumento fácil quando se quer, sobretudo, usá-lo para o serviço artístico.

Decerto o inquieto e producente Arthur Kösztler viveu o conceito que emulou e a que denominou “the oceanic feeling” (o oceano de sentiment...

ambiente de leitura carlos romero sam cavalcanti musica seculo xx estado de consciencia lsd rautavaara musica finlandesa misticismo musical

Decerto o inquieto e producente Arthur Kösztler viveu o conceito que emulou e a que denominou “the oceanic feeling” (o oceano de sentimentos). Köstler (como grafava sua mãe vienense) era judeu, tendo incorporado toda a mística hebraica, e experienciado estados alterados de consciência seja no uso de drogas como LSD, seja pelo que relata em seu trabalho autobiográfico "The Invisible Writing", onde a mística o alcançou no cárcere. Esses homens, dados à vivência intensa e à experimentação, fazendo de suas mentes e corpos cobaias do sentir e do pensar, são forte influência para os artistas, sobretudo quando publicam com tamanha riqueza de detalhes e arte mesmo no escrever.

Imagine-se numa eletrizante excursão na Bavária alpestre, pelas lentes de um drone, de uma madrugada ao anoitecer, guiado por uma grande ob...

ambiente de leitura carlos romero sam samuel cavalcanti richard strauss sinfonia alpina domestica Eine Alpensinfonie musica descritiva

Imagine-se numa eletrizante excursão na Bavária alpestre, pelas lentes de um drone, de uma madrugada ao anoitecer, guiado por uma grande obra musical; assim é o Opus 64 de Richard Georg Strauss. Ao convite irrecusável orbitam algumas informações sobre seu criador, a obra em si e os desdobramentos dessa aventura que impressiona pela pujança e emotividade.

Havia mais de uma década que Richard finalizara a Sinfonia Doméstica e estava pressentindo o trabalho que teria com a obra que passa para a produção sinfônica dele próprio e de todo o repertório orquestral, como uma das mais densas e tecnicamente complexas.

ambiente de leitura carlos romero sam samuel cavalcanti richard strauss sinfonia alpina domestica Eine Alpensinfonie musica descritiva
Richard Strauss
Fortemente impactado pela morte de seu colega de ofício – “o judeu” como ele costumava chamar – Gustav Mahler, em 1911, Richard soltou uma frase de efeito: “torturo-me com uma sinfonia, trabalho que, quando tudo estiver dito e feito, me trará menos satisfação do que perseguir baratas...”.

Espirituoso, Richard, sim, teve descomunal trabalho, muito embora tenha tido uma verve criadora e facilidade no compor que sequer requeria aproximar-se do piano durante seu processo composicional. Mas o trabalho deveu-se à intrincada trama de relacionamento temático, além das alusões imagéticas, baseadas numa viagem que fizera aos alpes bávaros, aos seus quatorze anos, e, ainda, nos recursos timbrísticos muito ricos que desprendeu na instrumentação, sem perder de vista uma orientação filosófica nietzscheriana. Para ainda mais adensar essa urdidura sinfônica, ele a faz como uma espécie de conto fantástico, façanha alpinista de um adolescente – ou de suas lembranças – reunida ao respeito que nutria por Mahler e sua obra: diversas são as alusões à música mahleriana e seu peculiar estilo.

Tal como Franz Liszt, – que criou sinfonias, poemas sinfônicos e sonatas em formas unas e cíclicas – Strauss concebeu Ein Alpensinfonie como um romance imagético-musical, ou conto orquestral. Os vinte e dois títulos são guias para o ouvinte, representações visuais que se desdobram, sem pausas, num cenário montanhesco de impressões que o compositor reuniu: Noite, Nascer do Sol, Ascensão, Entrada na Floresta, Vagueando junto ao Ribeiro, Na Cascata, Aparição, Sobre Prados Floridos, Na Pastagem Alpina, Perdendo-se por entre o Bosque Denso e a Mateira, No Glaciar, Instantes Perigosos, No Cume, Visão, Aumento do Nevoeiro, O Sol encobre-se a pouco e pouco, Elegia, Calma antes da Tempestade, Trovoada e Tempestade, Descida, Pôr-do-sol, Final e Noite.



A obra inicia e finaliza-se com a noite fazendo-nos atentar para o fechamento de um ciclo natural com tempo próprio, dado pelas montanhas, suas sombras e espantosas belezas. Também, noutro perceber, a filosofia que há na própria apreensão desses pulsos naturais de recorrência. O intelectual Antônio Houaiss – que nasceu apenas treze dias antes da estreia de Ein Alpensinfonie – define o verbo perceber como uma tomada de consciência por meio dos sentidos; um conhecimento por intuição ou perspicácia. Compreender, então, esse mundo sinfônico, – tanto literal das imagens não só Richard, mas de todos os que às montanhas alpinas forem, como das referências composicionais que direcionaram, por exemplo, as relações motívicas com os conceitos de Nietzsche emprenhados em Strauss – tem como condição sine qua non essa ‘tomada de consciência’ das capacidades cógnitas straussianas. Compreensão musical que não se dará apenas em nível de performance, ou seja, do desempenho de intérpretes, mas, aqui, toma um sentido amplo e irrestrito: a contenção em nós do fenômeno, de suas articulações timbrísticas e discursivas, e de seu poder expressivo e referencial, seja por criadores, executantes e ainda quaisquer outros ouvintes.

ambiente de leitura carlos romero sam samuel cavalcanti richard strauss sinfonia alpina domestica Eine Alpensinfonie musica descritiva
Assim, não só ouvimos essa sinfonia com nossos ouvidos, mas todas as inteligências, sentidos e recursos possíveis e imagináveis são convocados para o ato eminentemente polissêmico e plural.

A madrugada vai se movimentando para o amanhecer e os primeiros dilúculos (Sonnenaufgang), que se irrompem por sobre a cordilheira gelada, explodem na orquestração que é sempre cheia. Após os irradiantes fachos de luz dá-se a ascensão imperiosa do sol (Der Anstieg) que soa enérgica, acentuada, quase marcial: um intenso despertar. À poesia da natureza é incrementada a curiosidade humana de explorar o entorno e surge a misteriosa floresta; como um narrador em primeira pessoa, a música nos faz adentrá-la (Eintritt in den Wald). Antes da floresta propriamente, há recurso já bem conhecido porém numa dimensão ampliada cujo efeito é magnífico: doze trompas, dois trompetes e dois trombones longe do alcance de visão (fora do palco) a anunciar uma altruística empreitada de caça, a encorajar.

Na floresta a música reporta-nos para um caminhar pensativo ao lado de um curso d’água: a destreza de Strauss é de uma simplicidade e criatividade tal que só os grandes possuem; ele põe, lado a lado, dois grupos rítmicos, um mais melódico e outro em notas bem curtas e sinuosas como uma corredeira que brota e segue. A corrente de água vai tomando forma e desemboca numa cachoeira (Am Wasserfall) que primeiro é pressentida, ouvida a queda d’água, e depois, vista (Erscheinung).

ambiente de leitura carlos romero sam samuel cavalcanti richard strauss sinfonia alpina domestica Eine Alpensinfonie musica descritiva
A fauna e flora nas montanhas é exuberante: cores florais nas pequenas campinas montanhescas e sinos de vacas e cabras alpinas associadas a breves trechos melódicos que rememoram cantos pastorais, inclusive encontrados nalgumas sinfonias de Mahler, como a sexta e a sétima. A aventura segue por trilhas erráticas com moitas fechadas, em momentos delicados e incertos (Gefahrvolle Augenblicke) cuja métrica interna é difícil de conduzir. E, claro, a geleira (Aus dem Gletscher) e o cume montanhoso (Aus dem Gipfel) levam-nos a uma melodia reflexiva e singela que é seguida pela visão (Vision) do todo, do amplo alcance que nos enternece e nos faz calar... Aparição, talvez, do próprio Mahler: no cume dos montes quiçá possa-se ver e ouvir a quem admiramos em Arte... Paira uma neblina, o sol, a pouco e pouco vai-se embora e a nostalgia emana numa Elegia – em memória de Mahler?... – que é sucedida por uma calmaria, depois forte e breve tempestade com trovoada e pôr do sol (Sonnenuntergang). Um epílogo (Ausklang) arremata a obra antes do ressurgir da noite... É de fato uma obra magistral: indispensável repertório e desafio imprescindível para ouvidos aventureiros e desprendidos que buscam profundo deleite e abstração.

ambiente de leitura carlos romero sam samuel cavalcanti richard strauss sinfonia alpina domestica Eine Alpensinfonie musica descritiva
Referindo-me à relação de Richard e Gustav, ouso a alegoria de que, além das que já são sabidas, as montanhas alpinas, na sinfonia, são a barreira da morte que separa dois grandes baluartes contemporâneos de fé musical e carreiras bem semelhantes, mas, no topo inabalável, se (re)encontram: onde não há tempo mensurado, e onde um dia é como mil anos, onde a melodia é supra-humana, lugar de perfeita harmonia... Richard levou quatro intensos anos, em meio a criação de várias óperas, para finalizar sua Ein Alpensinfonie. Dedicou-a com gratidão profunda ao entusiasta de sua Arte, o Conde Nicolaus Seebach, quando este dirigia a Capela Real de Ópera em Dresden, a que também foi dedicada. A estreia foi aos vinte e oito de outubro de 1915, sob a batuta do próprio compositor, com a Dresden Hofkapelle em Berlim. Recomendo o registro fonográfico realizado em 1941, na autêntica e arrebatadora execução de Richard Strauss & Die Bayerische Staatskapelle.


Sam Cavalcanti é mestre em música, crítico e escritor

Para os filósofos franceses Félix Guattari e Gilles Deleuze, há um devenir impopular no enredo do livro Ratman’s Notebooks (bestseller de 1...

sam samuel cavalcanti ambiente de leitura carlos romero musica de filme stephen gilbert willard michael jackson deleuze guattari alex north ratatoulle

Para os filósofos franceses Félix Guattari e Gilles Deleuze, há um devenir impopular no enredo do livro Ratman’s Notebooks (bestseller de 1968) escrito por Stephen Gilbert, e que é base para o filme Willard (1971). Esse filme, que só conheci pela indicação dos filósofos constante no livro ‘MIL PLATÔS, Capitalismo e Esquizofrenia’, é dirigido por Daniel Mann, e tem no papel principal o ator norte-americano Bruce Davison, quando ainda tinha um quarto de século de vida.

sam samuel cavalcanti ambiente de leitura carlos romero musica de filme stephen gilbert willard michael jackson deleuze guattari alex north ratatoulle
Segundo as vagas memórias dos autores-filósofos, compartilhadas no início do quarto volume de seu denso livro, – que tem Ana Lúcia de Oliveira como coordenadora da tradução para o português, pela primeira edição de 1997 – há heróis no enredo, e são camundongos! Ora, a impopularidade estaria em parte pela qualidade duvidosa do filme, “um série B, talvez”, como lembram – que aliás ganhou uma sequência, Ben (em 1972), e uma espécie de releitura dos enredos anteriores e do livro original, um remake expandido, em 2003. Noutra parte, essa impopularidade, percebida pelos pensadores europeus, advém do asco que os ratos (e as possíveis mazelas que eles carregam) provocam no homem. Mas, paradoxalmente às impressões de Deleuze e Guattari, tanto o livro quanto os filmes que dele derivam gozaram de sucesso notável de vendas e bilheteria. Aliás, os próprios autores, conheceram o filme, no cinema, já na primeira metade da década de 1970.

Uma força inegável que realça e reinterpreta a narrativa do livro – e que pode explicar, em parte, essa “impopularidade popular” – é a música trilhada nos filmes. Na primeira montagem, adaptação para o cinema logo três anos após o lançamento do livro, temos a música de Alex North (1910-1991) que, desde a abertura do filme, com créditos e cena inicial
passando-se numa siderúrgica – homens fundindo ferro e aço, operários em meio a faíscas de combustão cintilando bem à frente da câmera, dando bastante movimento – sob uma pujante música orquestral (regida pelo próprio compositor) com um apelo melódico nas cordas com arco, leve e contrastante ao ambiente metalúrgico.

A música tem o primeiro corte justamente quando o carro do anti-herói, por assim dizer, o chefe da empresa, sa vci da fábrica e assusta Willard freando bruscamente quase que em cima dele. Essa sincronia de eventos da música que prepara, antecipa, refere, e alude a afetos e emoções é recurso não só do mundo cinematográfico, mas, advém de muito antes, já das obras incidentais e cerimoniais de tempos imemoriais.

North, para fazer um trocadilho com seu próprio nome, dá um “norte” à trama do filme que, apesar de estar rotulado no gênero terror, suaviza-se e ganha mais envolvimento com uma música criativa e interessante. Aos ratos, que saem da condição de intrusos num casarão tradicional norte-americano, passando a verdadeiros donos, ao fim do filme, são associados efeitos sonoro-temáticos próprios, de ritmo, timbres e arabescos rápidos ou gestos lentos a depender da intenção que se quis provocar no espectador.

sam samuel cavalcanti ambiente de leitura carlos romero musica de filme stephen gilbert willard michael jackson deleuze guattari alex north ratatoulle
A cena final tem Willard confrontado por Ben (o rato-chefe) como num acerto de contas. Ben vai crescendo, pouco a pouco, no filme; é nomeado pelo seu tutor Willard, e, então, sai da condição de ratazana para tornar-se personagem. É o rato maior e que lidera uma vingança contra Willard por ele ter matado por afogamento – tipo de assassinato já esboçado por ordem de sua mãe, bem antes, quando não havia enorme proliferação – grande parte da rataria. Também Willard contara com a ajuda de Ben e outros ratos para vingar-se de seu chefe, assassinando-o; mas, o personagem principal não é bom moço e, após este ataque mortal, abandona seu parceiro de crime à própria sorte. O enredo então é envolvido por música de tensão nessa espécie de luta final, mas, quando Ben vence, a câmera fecha em close-up nele, a subir os créditos finais, com música heroica e tematicamente transformada do tema de abertura que antes aludira a Willard.
Trompetes, trompas e trombones em ritmos marcados, quase em marcha, sucedidos por contraponto das cordas e flautins, com tímpanos rufando: a música em si a condecorar Ben como o vitorioso.

Como dar sequência a uma pitoresca estória como esta? No ano seguinte, Ben ganha seu próprio filme, suplantando a própria ênfase do livro no personagem Willard: “quando Willard se finda, Ben emerge, e ele não está só”, diziam as campanhas publicitárias de lançamento. Aliás, caberia aqui a expressão de pergunta sobre a coragem ou bravura que Willard não teve e que se viu no ‘gabiru-herói’: és um homem ou um rato?...

sam samuel cavalcanti ambiente de leitura carlos romero musica de filme stephen gilbert willard michael jackson deleuze guattari alex north ratatoulle
Pois bem, a música nesse novo filme é da lavra de Walter Scharf e junto ao diretor Phil Karlson, têm a felicidade de embutir uma canção com referência direta a Ben. Ambos os filmes guardam algumas semelhanças no roteiro, traçando o mesmo perfil solitário do personagem humano com quem Ben se relaciona. No entanto, Danny Garrison (interpretado pelo ator Lee Montgomery) não é um rapaz como Willard, é uma personagem criança e isso nos suscita, na relação com o rato, algo lúdico e muito mais ligeiro no argumento fílmico. Essa percepção é definitivamente terna quando, à cena do choroso Danny, pensando que Ben morrera, é adicionada a canção de Scharf, com letra de Don Black, num acompanhamento singelo de violão e cordas com arco ao final, pela voz inconfundível de Michael Joseph Jackson, aos quatorze anos. A canção é tão poderosa, de uma melodia tão tocante, tão poética que certamente não duvido muitas crianças terem pedido aos seus pais, à época, para domesticarem ratos e terem um ‘Ben’ para chamarem de seu.


Seja um “devir-animal”, – numa lembrança bem desenredada dos filósofos, com conceitos demasiado densos para que os traga aqui sem esmiuçá-los – seja a análise do discurso feita pelo profícuo e inteligentíssimo teórico literário canadense Northrop Frye, que emula a relação entre ritual, como “pré-consciente e animal”, e mito, como “consciente e humano”; tanto o livro, quanto os filmes, com a imaginativa e expressiva música, têm forma para bem além dos gêneros: uma criação arquetípica que releva nossa relação íntima com o mundo dos símbolos do qual a música é parte.

sam samuel cavalcanti ambiente de leitura carlos romero musica de filme stephen gilbert willard michael jackson deleuze guattari alex north ratatoulle
E nesse ambiente arquetípico, a tradição do conto em filme com os ratos como amigos de uns e causadores de nojo em muitos outros, chega ao auge no filme de animação Ratatouille (2007) onde Rémy – que já não é um rato real como Ben, nos filmes de terror, mas, um desenho animado, suavizando ainda mais essa relação mítica de devir-animal – não só fala, como lê e cozinha como poucos humanos. A sujeira na vida de esgotos dos ratos, a relação com o homem, e os preconceitos são todos postos à prova na moral dessa estória que se encerra na crítica final de Monsieur Anton Ego: um rato jamais poderia ser artista, mas os humanos desprezados hoje, ou sem o devido reconhecimento e espaço, são como ratos que proviriam de quaisquer lugares. A música, também competente enquanto função de ambientar a trama, fica a cargo do premiado Michael Giacchino que, bem diferente do estilo de North ou Scharf, cumpre seu papel sem grandes orquestrações, e num estilo mais industrial, ou fabril, com clichês que servem bem ao espírito da animação.

Voltanto à França de Guattari e Deleuze, Giacchino compõe a canção Le Festin que encerra o filme de modo altruísta, fazendo-nos respirar fundo, arrepiar de vontade em rodopiar nessa canção em valsa no estilo tradicional das ruas da cidade-luz, com o acordeão bem característico, e na interpretação da cantora parisiense Camille Dalmais.


Camile possui um timbre escolhido a dedo, tão suficientemente leve, agudo e nasal que se pode associar a Rémy, personagem principal, na felicidade da inauguração do restaurante La Ratatouille, em que ele é a estrela.

Ratos ou homens, rituais e mitos, em todos manifesta-se esse saber, ora alquímico, ora prático e objetivo: a música envolve, ambienta, serve à narrativa ou dela se serve para imprimir e afetar por meio de intrincadas tramas de subjetividade e simbolismo. Creio que mesmo transcendente à criatividade humana, a música, posto que manifesta em som, é em nós e através de nós.


Sam Cavalcanti é mestre em música, crítico e escritor

“De certa forma, o trabalho de um crítico é fácil. Arriscamo-nos pouco; sim, gozamos com superioridade a posição sobre aqueles que nos subm...

Flauta encantanda flautista vitor diniz musica classica paraiba bach carl philipp emanuel villa lobos pixinguinha bachianas sivuca dante santoro samuel cavalcanti ambiente de leitura carlos romero

“De certa forma, o trabalho de um crítico é fácil. Arriscamo-nos pouco; sim, gozamos com superioridade a posição sobre aqueles que nos submetem seu trabalho e reputação”. Assim inicia Monsieur Anton Ego, pitoresco personagem crítico-gastronômico, seu esperado editorial sobre o restaurante Gusteau’s no filme de animação – bem mais interessante do que se imagina... – Ratatouille, lançado pela Pixar Animation Studios, em 2007. Estas palavras não me saem da lembrança, não só porque esse filme é carregado de arquétipos e lições subjacentes aos símbolos do ‘gosto’ (ou do “augusto gosto”, que dá nome ao chefe do restaurante), e do ‘ego’, representado pelo crítico, narrado na inconfundível voz do consagrado e saudoso Peter O'Toole (1932 — 2013); mas também, porque este final me afeta profunda e diretamente.

Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius – os registros históricos são imprecisos sobre seu nascimento; provavelmente entre 470 e 480,...

boecio musica medieval ambiente de leitura carlos romero

Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius – os registros históricos são imprecisos sobre seu nascimento; provavelmente entre 470 e 480, possivelmente em Roma, como a maioria defende. Morreu em 524, ao que se acredita, em Pavia, lugar onde repousa seus restos mortais, na basílica de San Pietro in Ciel d'Oro – em seu tratado De Institutione Musica, escrito entre os anos 515 e 520, obra, portanto, de sua maturidade, relaciona a música à conduta ética assim como ao raciocínio puro.

Gentil-homem de conhecimento admirável, catedrático brasileiro respeitado em terras germânicas e de personalidade rara em dias atuais: assi...


Gentil-homem de conhecimento admirável, catedrático brasileiro respeitado em terras germânicas e de personalidade rara em dias atuais: assim é o pianista Marco Antonio de Almeida, paranaense, nascido na cidade de Londrina.

O homem sempre foi observador e, por conseguinte, apreciador de tudo que o cerca. A fauna e a flora, meio de sustento e subsistênc...

samuel cavalcanti passaros na musica

O homem sempre foi observador e, por conseguinte, apreciador de tudo que o cerca. A fauna e a flora, meio de sustento e subsistência são, ao mesmo tempo, fontes de inspiração. Há, no Evangelho segundo Mateus, admoestação aos que se preocupam com o vestir, por meio de um elogio à natureza: “Considerai como crescem os lírios do campo [...] nem Salomão, em toda sua glória se vestiu como qualquer deles” (Mateus 6: 28-29).

Apesar de, no momento em que vivemos, a apreciação do que nos está à volta não ser prática comum, e termos, cada vez menos, tempo para contemplações – haja vista o modo paradoxal com que tratamos a natureza (queimadas, extinção de espécimes, desmatamentos, etc.), temos uma relação intensa, no plano artístico, com o meio ambiente.

kierkegaard musica figurativa
Kierkegaard
Ao observar as coisas naturais, o homem monta analogias em relação a si próprio, ou à sua condição; o pensador dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard, a esse respeito, expressou: "Se um dançarino desse saltos muito altos, poderíamos admirá-lo. Mas se ele tentasse dar a impressão de poder voar, o riso seria seu merecido castigo, mesmo se ele fosse capaz, na verdade, de saltar mais alto que qualquer outro dançarino. Saltos são atos de seres essencialmente terrestres, que respeitam a força gravitacional da Terra, pois que o salto é algo momentâneo. Mas o voo nos faz lembrar os seres emancipados das condições telúricas, um privilégio reservado para as criaturas aladas".

O artista – esteja ele em quaisquer que sejam as áreas de atuação – vê de modo transcendente a realidade, transcrevendo-a em sua arte, por meio de associações ou puros recortes do que vivemos. Uma pintura ou uma escultura, mesmo que pretendam retratar, assim como a fotografia, deformam, transformam e transcendem a realidade pela observação interpretativa. A percepção do artista, neste sentido, se torna mais aguçada e, a cada instante, ele tende a reparar mais no que está à sua volta.

Os questionamentos de filósofos e cientistas, por um lado, são maneiras de observação que não implicam, necessariamente, em conclusões imediatas; o artista, por outro lado, transcreve para sua obra, de maneira literal ou não, a realidade; e sua arte, em muitos aspectos, já se constitui numa resposta mediata, mesmo que não esteja conscientemente baseada em nenhuma teoria, porque, dizia Rubem Alves, "é do desejo que surge a música, a literatura, a pintura, a religião, a ciência e tudo o que se poderia denominar criatividade”.

Os poetas, com toda sua simbologia, imprimem, com palavras, emoções às suas observações. João da Cruz e Sousa assim se referiu acerca de sentimentos próprios no poema Beijos: “Dentro de mim se projeta a luz cambiante dos prismas e batem asas as cismas qual passarada irrequieta”.

O músico, por semelhante modo, comunga dessa vivência de observações e transcrições, pondo em música, sob fortes associações, o seu contexto: natural e cultural. Assim, vemos como a elaboração musical pode estar diretamente relacionada com a observância do meio.

clement janequin
Clément Janequin
Desde antes mesmo de a Idade Média findar, os poetas e depois os músicos já haviam dirigido sua atenção ao canto das aves. Na renascença é notório o exemplo de canções onomatopaicas como o ciclo Le chant des oiseaux de Clément Janequin (1485 - 1558). Cada época, portanto, desenvolveu uma maneira particular de expressar o canto de pássaros em música, e hoje é possível traçar as várias formas de associação da matéria extramusical com o produto artístico final.

Existem vários graus de associação paisagística de pássaros à música, desde canção em homenagem a um pássaro significativo, ou mesmo sagrado de uma civilização (sem recursos onomatopaicos), até a inclusão em música de um registro fidedigno de seu canto, por meio de um espectógrafo. A paisagem sonora pode ser composta da “fauna” e da “flora” em volta do foco que se quer musicar. Os pássaros foram, em muitas ocasiões, focados dessa maneira, e seu habitat funciona, em alguns momentos na história da música, como acompanhamento paisagístico-sonoro (por exemplo, em Olivier Messiaen).

Seja pelo seu canto ou pelo que representam em determinadas culturas (um mito, por exemplo), as aves têm inspirado obras diversas e multifacetadas: de caráter épico, heróico, lírico ou mesmo patético e pastoral. As técnicas composicionais utilizadas ao longo do tempo para a referência aos pássaros são muitas, em função da relação associativa, ou da transcrição.

Berry Witherden, em resenha crítica do CD Anjos e Visitações, acredita que a maioria dos ouvintes, mesmo que nada saibam sobre o finlandês a quem muito admiro, Einojuhani Rautavaara, vão associar a sua música a paisagens árticas ao ouvirem sua orquestração clara, suas harmonias ásperas, suas melodias “cheias de suspiros e vibrações”. Segundo o autor, o próprio Rautavaara não somente endossou as palavras do romancista Milan Kundera, como também, tomou-as para si, quando este comparou a música sinfônica a ‘uma viagem por um mundo sem fronteiras’.


Samuel Cavalcanti é mestre em música e escritor

Percebo que a institucionalização exclusiva do fazer ou do produzir da arte, empobrece-a sobremaneira, hoje. O Artista precisa ser. Preci...


Percebo que a institucionalização exclusiva do fazer ou do produzir da arte, empobrece-a sobremaneira, hoje.

O Artista precisa ser. Precisa expressar-se em seu âmago, em sua sinceridade ainda que idiossincrática.

Quando a instituição toma para si a tutela da obra, subordina o Artista que, pouco a pouco vai se tornando minúsculo.

Os concursos, como já dizia Bèla Bartòk, são competições para cavalos, não para Artistas.

Em nome de necessidades empregatícias, o Artista vira artista, e a Arte (des)arte, apequenada por circunstâncias burocráticas e de uma pseudo e forçosa comparatividade inexistente para o foro íntimo de quem se expressa e busca expressar-se…

O Artista é autêntico quando se entrega ao seu que-dizer próprio, quando sua voz interior fala e o seu âmago se faz ouvir.

Do contrário não há Arte sincera.