Música é fator de encantamento para todos, na diversidade de idades, épocas e acontecimentos. Para nós, médicos, que vivenciamos o sofriment...


Música é fator de encantamento para todos, na diversidade de idades, épocas e acontecimentos. Para nós, médicos, que vivenciamos o sofrimento alheio, representa não apenas a busca da beleza, mas também a conquista de tranquilidade, relaxamento e conforto.

Não me refiro aos mais dotados, compositores ou instrumentais, mas, aos que como eu são apenas capazes de sentir e de amar as peças musicais. Por isso, nessas palavras sintéticas, serei mais “pessoal”, trazendo aos colegas e ao público algo do que vive em meu espírito e envolve minhas atividades.

Sabemos que não são raros os exemplos de médicos aptos à análise profunda de obras célebres. Um dos quais permanece ainda muito viva na minha memória, é a do sempre saudoso e emblemático Mestre, Luiz V Décourt, emérito catedrático da faculdade de medicina da USP, que tive a honra e o privilégio de ter sido seu discípulo. Sua erudição e genialidade estão expressas no admirável estudo que fez do Quarteto nº 14, opus 131, de Beethoven, um dos mais importantes de um conjunto de obras magníficas para cordas.

Por outra, compreendemos certas limitações contemporâneas. Não há dúvida de que os progressos e as exigências da medicina moderna vêm acarretando nosso maior distanciamento, temporal e mental, das atividades musicais. E essa ocorrência é lamentável.

A estranha e conhecida frase de Stravinsky contida em sua autobiografia: “A música, por sua própria natureza, é impotente para expressar qualquer coisa”, deve ser entendida apenas como uma afronta a oponentes estéticos que atribuíram às peças musicais fins extramusicais.

Sabemos ainda que na Idade Média um programa de cultura geral abrangia o estudo de sete artes liberais, herdadas da Antiguidade. Elas eram agrupadas em dois conjuntos: o Trivium, abrangendo três artes literárias (gramática, retórica e didática) e o Quadrivium, ulterior, com quatro disciplinas “matemáticas” (aritmética, geometria, astronomia e teoria musical). Como acentuou o competente educador, Prof. Monroe, “A ciência musical abrange essencialmente as leis numéricas que regem a harmonia. O estudo da estrutura dos intervalos e da rítmica introduz os indivíduos no mundo da melodia".

E a magia permanece expressiva, alentadora, sem declínio. Perante o universo da música, a minha experiência na prática clínica da medicina autoriza-me a afirmar que ela modifica o ambiente que nos envolve e favorece a sensação de uma plenitude de vida. Essa sistemática sublime vem constituir ao médico um ambiente suave no seu mister diário dos consultórios, dando-lhe maior tranquilidade para formulação do diagnóstico e evidentemente amenizando o estado de inquietude, ansiedade e medos dos seus pacientes.


Há um ano que estou em nova morada. Mais perto do mar. Mais perto do parque. Mais perto. E mais longe também. Mais longe dos meus 35 anos na...


Há um ano que estou em nova morada. Mais perto do mar. Mais perto do parque. Mais perto. E mais longe também. Mais longe dos meus 35 anos na rua dos oceanos. Dos nascimentos e das mortes. Do fechamento de um ciclo. E aqui, da abertura de outros. E com as paredes em branco. E isso é bom. E difícil também. Mas, mais bom!

E me perguntam - “E aí Ana , já adaptada? Saudades da casa?” E para meu espanto , eu me adaptei na hora que vim com o caminhão de mudança. E na primeira noite. Aquele quarto parecia of my own há tempos. Claro que não achava nada, mas subjetivamente falando, aquele espaço, já era meu. Sou um animal que me aquieto logo.

E já nos primeiros dias, ouvi o som de uma flauta a tocar. Notei que alguém ensaiava o instrumento: dó ré mi fá sol....acordes repetitivos. E muitas horas do dia. Pensei , ah! Se fosse Vítor Diniz, o filho de Dodora, minha amiga, e que é flautista. Mas esse, mora alhures. O daqui é um desconhecido , o que torna tudo ainda mais intrigante. E o melhor lugar para esse deleite? o meu banheiro. Melhor acústica, proximidade com o vizinho de rua, e pronto. Estava feito a minha trilha sonora dos banhos e conversas no espelho. E o som da flauta, assim como o do violino, me remetem aos filmes – O Violinista no Telhado; O Violinista Que Veio de Longe (exibido recentemente na Fundação Casa José Américo); A Flauta Mágica...

Passei a observar os sons do novo endereço. A algazarra das crianças de férias que brincam na piscina do prédio ao lado; o silêncio de um gato, que fica estático na janela em frente ao meu quarto desnudo, tenho até a impressão de que me observa quando abro a janela; o baticum do apartamento de cima, que está se preparando para novo inquilino; meu despertador que insiste em me acordar na hora, mal sabe ele que ando com o sono diminuído e desperto antes; um cachorro que late, mas nem de longe parecido com aquele de O som ao Redor; o alarme da porta, agora com tudo sem chave e novas tecnologias, tem aquela musiquinha avisando que meu filho chegou . Ou saiu. Mas é o som da flauta que me eleva o espírito, me trás paz, e beleza no dia a dia.

E o ano começou com apreensões, perdas, novos desafios, e para mim em especial, com o ninho literalmente a ficar vazio. Sempre quis os filhos longe, para o mundo, “...mas o que importa o cérebro comparado com o coração?” Mrs Dalloway ouviu de Sally! Logo eu que prezo tanto a solidão e sou tão independente. Mas logo logo, quando chegar em casa, só terei o som da minha flauta mágica. Aquela que povoa os meus dias, e que me encanta dizendo: vai dar tudo certo! Acredite! E agradeço de ter esse som, doce e suave, a me embalar o tempo.

E o som da flauta me inspirou a escrever, a primeira crônica do ano.

Que venha janeiro! Estou (quase) pronta!

Revi, esta semana, o musical baseado em Os Miseráveis. Dessa segunda vez me pareceu melhor. Não estou dizendo que é um filme ruim, muito p...



Revi, esta semana, o musical baseado em Os Miseráveis. Dessa segunda vez me pareceu melhor. Não estou dizendo que é um filme ruim, muito pelo contrário, trata-se de uma produção excelente, do ponto de vista do visual, do elenco e, sobretudo, do tratamento dado àquilo que é o cerne do romance de Victor Hugo: a injustiça, que se divide em cega observância e cumprimento da lei, cuja encarnação é o inspetor Javert, e em acumulação de riquezas, que fecha os olhos aos desvalidos e necessitados, ajudando a criar uma sociedade de submundo. O filme dirigido por Tom Hooper (UK/USA, 2012) é, portanto, uma obra a não ser esquecida.

O problema, me parece, está no gênero escolhido – musical – e no elenco, apesar de contar com estrelas bem conhecidas. Senti como muito artificial (artificial já é, per se) as falas transformadas em músicas, muitas delas difíceis de se identificar como uma melodia palatável. Ao lado disso, vemos que em determinados momentos soa, mais do que artificial, ridículo, ver Hugh Jakman e Russel Crowe tentando cantar. Por mais que eu tivesse boa vontade, não me furto de dizer que, em alguns momentos, fiquei com vergonha das interpretações. Assim como não consigo descolar Jean Valjean da figura de Gérard Depardieu, na excelente série da televisão francesa, de 2000, que depois virou filme, com seis horas de duração – para mim, a melhor versão do romance no cinema –, também não consigo apartar as figuras de Hackman e Crowell de Wolverine e do gladiador Maximus. O pecado na série da televisão francesa é John Malkovich interpretando Javert. Malkovich sempre interpreta a si mesmo. O melhor Javert, para mim, é Geoffrey Rush (EUA, 1998). Javert é duro, inflexível, só enxerga a lei. Não há nada para além na face da terra, além da lei. Victor Hugo deixa isto bem claro, no romance. Mas Javert não é sem emoções ou expressividade. Embora seja contido. No caso, de Crowell, como intérprete de Javert, temos um inspetor agressivo, em lugar de um homem de cálculo, um Javert que parte para uma disputa corporal com Jean Valjean, em lugar de deixar o trabalho sujo para seus subordinados, impondo-se pela sua estatura moral, embora equivocada e doentia.

No tocante ao personagem Thénardier, o problema é mais grave. Quem interpreta um dos maiores vilões e um dos seres mais vis e abjetos da literatura é Sacha Baron Cohen. Não preciso dizer mais nada... O diretor apostou na faceta menos importante de Thénardier, que é o histrionismo, interpretação muito fácil para Sacha Baron Cohen. A natureza de Thénardier é a de um homem sem humanidade, sem piedade, um monstro que explora as crianças dos outros, como fez com Cosette, e explora e abandona os seus filhos à própria sorte, cujo resultado é a morte dos ainda jovem Gavroche e Éponine, e o desaparecimento dos dois menores de 5 anos... O histrionismo do ator, que eu diria canastrice, esconde quem é, na realidade, Thénardier, cujo caráter se complementa, quando migra para a América e se tornar traficante de escravos.

Outra coisa que achei grave no musical é o fato de que, muito dificilmente, as pessoas que não conhecem o romance, entenderão o que realmente ali se passa. Há muitas lacunas, uma das principais causas é a transformação do diálogo em cenas cantadas. O cantar toma muito tempo; os diálogos são muito mais ágeis, além de soltar mais a intepretação dos atores. Apesar das 2 horas e 38 minutos do filme, as lacunas são enormes, que poderiam ser minimizadas se não fosse um musical. Só para dar um exemplo, de modo a não me alongar, um dos episódios mais tensos do romance, a fuga de Jean Valjean pelos esgotos, levando consigo Marius gravemente ferido, é transformado em uma cena rápida e pífia.

Plasticamente, no entanto, vejo como um dos melhores cenários, este do musical. E já que estamos falando de beleza, fico inconformado com as belas Cosettes – Virginie Ledoyen, na série francesa, e Amanda Seyfried, no musical – contracenando com o narigudo Enrico Lo Verso e o bocudo Eddie Redmayne, respectivamente. Cosette tendo sofrido muito nas mãos dos Thérnadier, mereceria um par mais bonito.


Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar, e vejo às vezes que as ...



Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar, e vejo às vezes que as espumas parecem mais brancas e que às vezes durante a noite as águas avançaram inquietas, vejo isso pela marca que as ondas deixaram na areia. Olho as amendoeiras de minha rua. Presto atenção se o céu de noite, antes de eu dormir e tomar conta do mundo em forma de sonho, se o céu de noite está estrelado e azul-marinho, porque em certas noites em vez de negro parece azul-marinho. O cosmos me dá muito trabalho, sobretudo porque vejo que Deus é o cosmos. Disso eu tomo conta com alguma relutância.

Observo o menino de uns dez anos, vestido de trapos e macérrimo. Terá futura tuberculose, se é que já não a tem.

No Jardim Botânico, então, eu fico exaurida, tenho que tomar conta com o olhar das mil plantas e árvores, e sobretudo das vitórias-régias.

Que se repare que não menciono nenhuma vez as minhas impressões emotivas: lucidamente apenas falo de algumas das milhares de coisas e pessoas de quem eu tomo conta. Também não se trata de um emprego pois dinheiro não ganho por isso. Fico apenas sabendo como é o mundo.

Se tomar conta do mundo dá trabalho? Sim. E lembro-me de um rosto terrivelmente inexpressível de uma mulher que vi na rua. Tomo conta dos milhares de favelados pelas encostas acima. Observo em mim mesma as mudanças de estação: eu claramente mudo com elas.

Hão de me perguntar por que tomo conta do mundo: é que nasci assim, incumbida. E sou responsável por tudo o que existe, inclusive pelas guerras e pelos crimes de lesa-corpo e lesaalma. Sou inclusive responsável pelo Deus que está em constante cósmica evolução para melhor.

Tomo desde criança conta de uma fileira de formigas: elas andam em fila indiana carregando um pedacinho de folha, o que não impede que cada uma, encontrando uma fila de formigas que venha de direção oposta, pare para dizer alguma coisa às outras.

Li o livro célebre sobre as abelhas, e tomei desde então conta das abelhas, sobretudo da rainha-mãe. As abelhas voam e lidam com flores: isto eu constatei. Mas as formigas têm uma cintura muito fininha. Nela, pequena, como é, cabe todo um mundo que, se eu não tomar cuidado, me escapa: senso instintivo de organização, linguagem para além do supersônico aos nossos ouvidos, e provavelmente para sentimentos instintivos de amor-sentimento, já que falam. Tomei muita coisa das formigas quando era pequena, e agora, que eu queria tanto poder revê-las, não encontro uma. Que não houve matança delas, eu sei porque se tivesse havido eu já teria sabido. Tomar conta do mundo exige também muita paciência: tenho que esperar pelo dia em que me apareça uma formiga. Paciência: observar as flores imperceptivelmente e lentamente se abrindo.

Só não encontrei ainda a quem prestar contas.

(2020, Ano de Centenário de Clarice Lispector)

"Não é o artista quem inventa o feio, o chocante. A dor da vida é que é assim, quando não idealizada. Se lembrarmos bem, não foi propri...


"Não é o artista quem inventa o feio, o chocante. A dor da vida é que é assim, quando não idealizada. Se lembrarmos bem, não foi propriamente a figura humana que os olhos do mundo viram pisar no deserto da lua. Mas um pacote disforme, inflado, trôpego e desengonçado, no qual seria impossível identificar os traços de Gagarin ou de Armstrong. E ainda havia a pergunta: Para quê? Pois a corrida espacial, consumindo cifras incalculáveis, sempre recebeu críticas, pelo sacrifício que impunha aos deserdados habitantes da terra."



Não posso deixar de imaginar a reação do Mestre Juarez da Gama Batista, se pudesse presenciar minha ansiedade - timidez mesmo - no cuidado extremo de encontrar o ponto de equilíbrio para o trato com a sua produção intelectual. Um sorriso suave, complacente, os olhos quase fechados, a cabeça levemente inclinada para trás - o seu jeito afetuoso de subestimar minhas preocupações e inseguranças. Depois, as palavras de encorajamento, refletindo sempre uma expectativa maior que as minhas possibilidades. Tantos anos passados, e ainda me apóio na força desta lembrança.



É isto a festa de Centenário: um desafio à morte absoluta. A presunção de que, sem o lugar à mesa, mesmo assim, é possível a consubstanciação de uma outra forma de presença. Que não responde à premência da saudade e dos afetos. Mas é pesada substância que se impõe ao tempo, na dimensão da memória e da palavra. Uma festa cuja realização traz sempre o caráter de excepcionalidade. Pois, apenas o tempo não a justifica, nem tampouco a morte. Somente a vida.



(fragmentos sobre Zé Lins...)

"Quem não identifica, na realidade contemporânea, os milhões de “moleques Ricardos” excedentes, marginalizados pela revolução tecnológica e pela ideologia da globalização? Milhões de Ricardos para quem sobrou a última classe e nenhum destino."



"Usina coloca em discussão os aspectos da ecologia que constituem, hoje, preocupações mundiais. A devastação dos ecossistemas, da biodiversidade, a poluição das águas e a degradação dos homens. E em sua percepção o que sobressai é a visão de conjunto, a apreensão da problemática no vértice de suas implicações. Não se trata de salvar apenas as baleias ou o mico-leão-dourado ou as tartarugas marinhas.

A obra de Zelins antecipa a consciência crítica de hoje que preconiza uma articulação ético-política entre os três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade."



"Uma característica que diferencia a construção ficcional de José Lins do Rego é a densidade dramática que ele imprime aos seus personagens, sem distinção da classe social que representem. E um aspecto do tratamento dispensado à cultura popular, fonte original de sua criação, que não se deforma na superficialidade da abordagem folclórica. Elimina não apenas o distanciamento entre a cultura erudita e a popular mas, sobretudo, a hierarquia entre essas duas formas do saber."

(Excertos)


Eita pai, mas que saudade Dos nossos papos compridos Quando tu me convocavas E esquecias os motivos Eita pai são quatro anos E eu ch...



Eita pai, mas que saudade
Dos nossos papos compridos
Quando tu me convocavas
E esquecias os motivos

Eita pai são quatro anos
E eu cheio de novidade
A vida muda meus planos
Assusta a velocidade

Eita pai, sou vô agora!
Tu amarias Letícia
Fiquei mole com a notícia
Mas havias ido embora

Eita pai, tem os problemas
Sem ninguém pra dividir
Nos mais variados temas
Sinto falta de te ouvir

Eita pai, agora entendo
Que conselhos são em vão
Pois só se aprende vivendo
Sofrer por filho é ilusão


Eita pai, a vida é dura
Talvez a grande vitória
Esteja em contar a história
Feito tu de alma pura

Eita pai, mas é verdade
Que um dia serei saudade
E espero que assim sentida
De quem muito amou na vida

No período que antecede a alvorada do dia 06 de junho de 1832, Enjolras, um dos estudantes que integra a Sociedade Amigos do ABC, faz um d...



No período que antecede a alvorada do dia 06 de junho de 1832, Enjolras, um dos estudantes que integra a Sociedade Amigos do ABC, faz um discurso emocionado e vigoroso, para os revoltosos que decidiram enfrentar as forças monárquicas, tendo como bastião a barricada da rua de Chanvrerie (extinta em 1838, com a abertura da rua Rambuteau), que começava na rua Saint-Denis e terminava na rua Mondétour, no quarteirão dos Halles.

Enjolras, para Hugo, representava, com relação aos demais amigos, “a lógica da revolução”, “Antínoos furioso”, por sua beleza, juventude e virilidade (Os Miseráveis, Parte III, Livro IV, Capítulo I). O seu discurso, antes da carga das forças constitucionais, é uma despedida exaltando as virtudes da república e encarnando os seus princípios fundamentais: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Nada menos republicano do que a luta mesquinha pelo poder para eternização no poder; nada mais digno do ideal da RES PUBLICA do que a consciência do que se pode e deve fazer para se conseguir a síntese das soberanias representadas pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade, numa Sociedade (Le point de d’intersection de toutes ces souverainetés qui s’agrègent s’appelle Société. – O ponto de interseção de todas estas soberanias que se agregam se chama Sociedade).

E como se constrói essa Sociedade? Vejamos os pressupostos de Enjolras. Sendo a Liberdade a soberania do homem sobre si mesmo; a Igualdade, a identidade de concessão para formar o direito comum, que cada um faz a todos; a Fraternidade, a proteção de todos a cada um, assim se faz a Sociedade. O básico, porém, é a Igualdade, que tem um órgão: a instrução gratuita e obrigatória. Óbvio, não? Mas os que se engalfinham pelo poder, para se manterem no poder, detestam essa obviedade, pois ela os retira do poder para concedê-lo a quem é seu verdadeiro dono – a população.
Diz Hugo:

“O direito ao alfabeto. É por aí que é preciso começar. A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos (hoje, se fosse vivo, ele manteria o “imposta”...), é aí que reside a lei. Da escola idêntica sai a sociedade igual. Sim, ensino! Luz! Luz! Tudo vem da luz e para ela retorna” (Parte V, Livro I, Capítulo V).

Hugo via o século XIX como grande, mas acredita a felicidade estar no século XX, com a educação universal, quando não teríamos mais a temer a fome, a exploração, a prostituição, a miséria, o cadafalso, a espada e as batalhas... Para que isto possa acontecer, as revoluções são necessárias, mas a revolução que traga como resultado a civilização (“Révolution, mais civilisation”, Parte III, Livro IV, capítulo I), como pensava Combeferre, o filósofo da Sociedade dos Amigos do ABC.

Visionário, Hugo legou a receita de uma sociedade humana. Não contava ele que a mesquinhez política não pensa na humanidade, mas na individualidade e no egoísmo. Não teve o desprazer de ver as gerações futuras apoiando ditaduras e corrupções de um lado e de outro, se xingando mutuamente e defendendo, de maneira incondicional, os que manipulam o povo, para a sua satisfação pessoal e para seus projetos espúrios de política abjeta.Tolos, que se assemelham às zebras, antílopes, símios e gnus comemorando o nascimento do pequeno leão Simba, que um dia será seu predador.

Demorei muito para perceber que dentro daquela pessoa serena, disfarçada em calma, habitava uma alma inquieta, dotada de uma força indomáve...


Demorei muito para perceber que dentro daquela pessoa serena, disfarçada em calma, habitava uma alma inquieta, dotada de uma força indomável.

Teimosa...totalmente teimosa. Acreditava na transformação e principalmente, acreditava que todas as pessoas possuíam um potencial e buscava fazer desabrochar algo que ninguém esperava.

Sua trajetória começou trazendo crianças, portadoras de deficiência, para serem “trabalhadas” na nossa casa. Por ser professora, encontrou na alfabetização o primeiro passo de sua crença no possível. Em tempos onde essas crianças viviam guardadinhas em suas casas, ela foi pescando uma a uma, convencendo pais, convencendo pessoas da cidade até que se viu rodeada de crianças e adolescentes e acabou fundando a APAE no interior de Minas. A ela, agregaram-se profissionais que também confiaram na crença do possível e os ensinou a pensar sobre a vida de cada um daqueles seres que precisavam ser vistos com dignidade e carinho.

Não satisfeita e apesar de leiga, começou a estudar sobre o cérebro humano e vorazmente buscou métodos e padrões que poderiam estimular o potencial daqueles que apresentavam algum déficit motor ou intelectual.

Participou de congressos, visitou outras instituições, leu muito, pesquisou, mas o que mais importava era seu espirito desbravador e forte que dava esperanças a pais desenganados, de que seus filhos poderiam alçar novos horizontes.

Nunca contou o número de pessoas que passaram por ela durante mais de quatro décadas. Viu crianças engatinharem, andarem, correrem. Viu inúmeras aprenderem a balbuciar, falar, ler e escrever. Ensinou muitas delas a dar laço nos sapatos, a segurar a colher, escovar os próprios dentes. Testemunhou diversos pais chorarem ao ouvir a primeira palavra dita por um filho já crescido. E acolheu muitos e muitos beijos babados e abraços desajeitados cheiinhos de carinho de “seus meninos”.

Achou que ainda era pouco o que fazia e quis promover uma verdadeira integração. Criou um centro de estimulação da inteligência onde criancinhas sem deficiência brincavam aprendendo, além de conviverem num mesmo ambiente com outras “diferentes”. Não sei se entre elas alguma percebeu diferenças, pois conviviam alegres e pacificamente. Umas aprendendo com as outras.

Para comemorar seus sessenta anos, inventou uma viagem exótica. Vendeu o carro e gastou o dinheiro passando dois meses na Índia. Voltou com o cabelo faiscando de hena vermelha, com os olhos brilhando de felicidade e com a certeza de que existia um povo generoso, alegre e espontâneo, mesmo cercado de uma tremenda pobreza.

Depois que completou setenta anos, todos esperavam por sua aposentadoria, pelo tempo que ela dedicaria a si própria para andar na praia, talvez fazer tricô, assistir filmes... Pois foi quando ela iniciou uma nova fase de vida. Através de suas pesquisas e pela própria experiência pessoal de não deixar-se esmorecer, iniciou um trabalho de estímulo à memória voltado para idosos. Vinculou suas pesquisas anteriores a exercícios motores, com atividades específicas para que o envelhecimento das pessoas fosse dilatado e dotado de muito mais qualidade. Este trabalho cresceu e ela o vai desenvolvendo com vários “alunos” e o explanando através de palestras e encontros onde mostra que a idade não limita, adiciona.

Hoje, aos oitenta e três anos ela continua a desenvolver suas atividades, dirige por todo lado, caminha pela praia, pratica stand up paddle, mantém uma invejável vaidade, adora cinema, está sempre se atualizando em diversos assuntos, além de participar de congressos e encontros sobre o envelhecimento.

Teve quatro filhos e eu sou a mais velha deles. Assistir à trajetória da mamãe foi um privilégio e é uma grande lição de viver. Com ela aprendi que a generosidade, não só aquela que doa dinheiro e bens, mas aquela em que se usa inteligência, percepção e vontade de promover a evolução de outras pessoas é a verdadeira generosidade. Sei que é o emendar uma atividade na outra que a mantém lúcida e que ao viver essa história tão cheia de “tudo” ela carrega dentro de si um mundo bonito, feliz e plenamente realizado.

Esperamos, os quatro filhos, sete netos, dois bisnetos e mais uma bisneta próxima de nascer, que ela viva por muitos anos sendo nosso exemplo de amor, ponderação e energia.


Cristina Lugão Porcaro é bacharel em artes plásticas, psico-pedagoga e escritora

A passagem do ano nos torna filosóficos. Incita-nos a pensar na morte, no tempo, em Deus. Uma das frases que mais me impressionaram na a...



A passagem do ano nos torna filosóficos. Incita-nos a pensar na morte, no tempo, em Deus.

Uma das frases que mais me impressionaram na adolescência foi: “Nunca alcancei a graça do ateísmo perfeito”. Quem a escreveu foi Carlinhos Oliveira, cronista do Jornal do Brasil e boêmio carioca. Carlinhos morreu de pancreatite alcoólica e viveu torturado por angústias metafísicas. De dia negava Deus, de noite tinha medo do escuro e O chamava.

A frase dele me marcou por me abrir os olhos para esta verdade profunda: tanto a crença como a descrença em Deus independem da nossa vontade. Nesse delicado terreno do espírito não escolhemos, somos escolhidos. Assim como existe uma “graça” no sentido positivo, que afirma Deus, existe outra no sentido oposto, que O nega.

É tão difícil merecer a primeira como a segunda. Talvez para esta última se necessite até de mais sofrimento e grandeza. Ninguém risca Deus da vida sem substituir a confortável ilusão que ele representa por um senso ético profundo.

Talvez o drama de Carlinhos viesse de ele ainda perseguir tal senso e, ao mesmo tempo, não poder mais regredir às fantasias que lhe alimentavam a crença. Acabou órfão de Deus e de si mesmo.

A minha paixão por João Pessoa faz-me esperar o ano inteiro pela floração dos ipês. Eu os chamo de “nossa árvore de Natal”, pois marca par...



A minha paixão por João Pessoa faz-me esperar o ano inteiro pela floração dos ipês. Eu os chamo de “nossa árvore de Natal”, pois marca para mim a chegada da temporada natalina à nossa cidade.

Mas este ano quem chegou primeiro foi a decoração de Natal. Um primor: a cada ano nossos artistas conseguem superar a decoração do ano anterior.

Nos idos dos anos 1950 o fotógrafo José Lyra, exímio pintor e por muitos considerado o melhor retratista da Paraíba, compôs seu espetacular quadro A Ponta do Cabo Banco, da sua série Hetairas da Penedia. Tudo bem, mas quase todos os grandes pintores paraibanos deixaram as marcas de suas pinceladas naquele promontório que se destaca na nossa paisagem. E que se encontra ameaçado.

O que, então, distingue o quadro de Lyra dos demais? Um detalhe sui generis: a SENSUALIDADE da obra! Pois a falésia e seus acidentes são nada menos que MULHERES NUAS!

Isso mesmo: mulheres sentadas, deitadas, curvadas, em pé. Brancas, pretas, pardas, amarelas. Dezenas, centenas de mulheres nuas. Espetacular! Simplesmente genial.

Pois bem, seis décadas depois, e eis que a nossa querida cidade ganha uma decoração natalina igualmente suis generis. Pois além da imensa beleza decorativa que já é peculiar ao Natal de João Pessoa, as árvores ganharam linhas luminosas belíssimas, que lhe conferem uma sensualidade inusitada.

Venha conferir o que eu digo. Percorra a avenida Beira-Rio à noite. Passeie pela Lagoa e pela praça da Independência. Desça a avenida Epitácio Pessoa. Encontrará nas árvores lindas figuras abraçadas, suas formas sutilmente delineadas pelas luzinhas, formando casais comemorando a beleza da época. São dezenas, centenas de namorados luminosos e sinuosos, enlevados num abraço eletrônico sem fim.

Aguardei ansiosamente a florada dos ipês amarelos, que chegaram completando o clima de sensualidade da nossa cidade, vestindo-a numa belíssima lingèrie dourada. Um lindo presente de Natal!


sapoti! sapoti! sapoti! morcego! morcego! morcego! amor cego por ti! amor cego por ti! amor cego por ti! não escrevi à faca o teu n...



sapoti! sapoti! sapoti!
morcego! morcego! morcego!
amor cego por ti!
amor cego por ti!
amor cego por ti!

não escrevi à faca
o teu nome
no tronco do sapotizeiro,
mas na raiz.

na mais profunda raiz de mim mesmo.

domiciliares

b) chegar em casa
é desatar nós
da gravata
aos
cadarços.

é deixar-me livre
dentro das chinelas
e fora do bridge.

é girar com os dedos
o bico dos teus seios
como um segredo
de caixa-forte.

é abrir-te
para os nós cegos
do meu amor

domiciliares

e) mergulhas a roupa
no tanque
e desentranhas
os vestígios das ruas,
das ruelas,
dos becos e vias
de muitas mãos
paralelas
à mão única do meu amor.

língua

espada fora da bainha.

crista de galo
na rinha
dos lábios.

fogo chovendo no teu molhado.

nômade

acha que atritas,
o meu falo queima.

somos trogloditas
descobrindo o fogo.

crescem labaredas.

sob a braguilha,
armo uma tenda
com a minha glande.

e o meu falo nômade
rumo à tua fenda
levanta acampamento.

à queima-roupa

nua, ateias fogo
às minhas vestes
e o teu corpo despe-me
em carne viva.

ciúme

deito o meu ouvido no teu peito
e ouço o batuque de uma tribo
no tambor de olvido do teu coração

avenida dos tabajaras (III)

os teus seios
eram frutos
de um jambeiro.

e se os tocava,
o teu rosto
(vermelho)

era o pólen
e a lava

de mil jambeiros
acendendo-me
na avenida dos tabajaras.

Ah, meu amigo Fred... que surpresa foi essa, rapaz? Precisava mesmo ser agora? A gente sabe que esse agora não tem hora, e quem sabe não f...



Ah, meu amigo Fred... que surpresa foi essa, rapaz? Precisava mesmo ser agora? A gente sabe que esse agora não tem hora, e quem sabe não faz a hora, mas você deixou os pobres mortais aqui de bico rachado... Como aquele passarinho que sai pelos ares, serelepe e voejante, e, de repente, se distrai e bate com a cara no tronco. Fica atordoado, zonzo e percebe que rachou o bico. Pois é, ficamos assim.

Mas é isso mesmo. O que vem lá do céu não é somente a nossa vã filosofia incapaz de entender. Tem muita coisa por trás das nuvens, dos trovões, da chuva, da lua, do Sol... E a gente sabe que este mistério está todo abrigado pela Lei Suprema que rege e sustenta um montão de galáxias. Inclusive essas surpresas.

Agora, cá pra nós, amigo Féu (eita, era assim que lhe chamávamos...) que ideia foi essa de partir acima das nuvens, cara? Quanta leveza desejasse ter no momento deste duplo voo!... Parece até que queria aproveitar o embalo das turbinas para se alçar logo à Grande Viagem.

Eu sei que de viagem você entende. Quantas vezes comentamos via WZap sobre os périplos de além-mar, tão familiares a nós também. E como você era atencioso, respondendo, compartilhando, lendo nossos textos, falando do meu amado pai... Aliás, dos nossos amados pais, pois sei que de Dr. Praxedes você também é um grande amigo. E a ida a Austrália, hein? Que delícia!

Essa viagem agora, meu amigo, tenha certeza, possui uma amplitude muito maior. É verdade que por um tempo você estará meio zonzo, sem saber direito o que aconteceu (ou será que sabe?...), mas, logo logo, despertará para um mundo infinitamente belo, leve, sutil e bom como você. Daí a importância de que nós, daqui, não cultivemos por muito tempo essa tristeza amarga, e, como costumo dizer, consigamos transformar você “naquela saudade que eu gosto de ter.”

Foi mais cedo que esperávamos? Sim, claro. Mas o que é o tempo daqui comparado com o tempo dos céus? Em breve partiremos também e no mundo daí veremos que os relógios nem existem. Sigamos.

Prazeres, haverá. Não como os muitos que desfrutasse com esse bom humor inigualável, essa cara de quem está curtindo com a cara da gente, com a cara da vida, das coisas todas. Continuará dando, com certeza, essa risada adorável que todos gostávamos de ouvir.

As festas serão outras, mais sublimes do que os assustados e embalos de sábado à noite no Clube dos Oficiais, na companhia de meu mano, Tuca, seu grande amigo das descobertas adolescentes. Assim como de Juca Jardelino, Virgínia Dantas, Tico Gomes, Torbes Gambarra, Ana Adelaide e tanta gente boa daqueles tempos.

É isso, amigo, que saudade baterá, de vez em quando... Imagine em Adriana, tua doce e meiga companheira, bela como uma flor. Imagine seus filhos amados e amigos. Torço muito para que eles logo possam colocar a gratidão acima da tristeza, pois o privilégio de ter tido e convivido com uma pessoa como você nessa encarnação é imensurável. Eles sabem disso.

Fiquei pensando muito na sua partida, de lá do avião. Será que você olhava pela janelinha para aquele tapetão macio de nuvens e resolveu, de repente, que seria agora? Puxa, que ideia. Ao menos a janelinha pudesse ser aberta para que você pudesse acenar de longe, saltitando pelas brancas paragens, dizendo pra gente com o sorriso de sempre: “Desculpem sair assim, sem avisar, galera, mas logo nos veremos e continuaremos a sorrir juntos”.

Até breve, Féu!


O bode o que escrever sobre o bode? compor-lhe uma ode? dizer que o seus chifres despontam na testa como duas raízes brotando da ...



O bode

o que escrever sobre o bode?

compor-lhe uma ode?

dizer que o seus chifres
despontam na testa
como duas raízes
brotando da terra?

que é irmão siamês
dos seixos, da poeira,
das pedras?

que é duro na queda?

que o bode é antes de tudo um forte?

ou que, quando bale,
é todo ternura,
torrão de açúcar
desmanchando-se em candura?



Cemitério de automóveis

não me comovem
as insepultas carcaças
dos automóveis,

mas quão céleres
os passageiros
se precipitam
no despenhadeiro

dos breves dias sem freio.



O caranguejo

elmo de um guerreiro medievo.

estojo de um par
de olhos
em riste

como dois dedos míopes,
quase cegos,
tateando pelo avesso
um mundo destro.

ser dialético, canhoto,
osso e carne,
bicho barroco,

vive entre o ser e o não ser.

em terra firme,
no mangue
ou no mar alto,

radiografia de um esqueleto acuado.


Passamos a vida inventando coisas que não pre- cisamos e depois ficamos dependentes delas. Inven- tamos coisas para poupar nossa energia e ...


Passamos a vida inventando coisas que não pre- cisamos e depois ficamos dependentes delas. Inven- tamos coisas para poupar nossa energia e depois vamos gastar essa energia poupada numa academia.

Juntamos dinheiro ganho à custa de trabalho, para garantir cuidados com a saúde que estraga- mos, trabalhando mais que o necessário, competin- do pelo cargo, em busca de um tal sucesso.

Aprendemos que o corpo é uma máquina. De produzir, de reproduzir, de desempenhar, de representar. O corpo é um brinquedo, como sabem as crianças. Dizia Galeano, “o corpo é uma festa”.

Tirando os tambores, pouca coisa boa inventa- mos, além da capacidade de criar o fogo, e talvez a roda, o princípio da confusão toda.

Tiramos a fruta do pé e botamos na lata. A fruta do pé não faz mal a ninguém. Já a da lata... É bem verdade que o homem das cavernas morria bem novinho. E a gente inventou um jeito de cuidar dos dentes. Dentes que a gente estragou comendo a fruta da lata.

Tá certo que a gente inventou os antidepressivos. Mas a depressão foi inventada primeiro, tá cer- to? Senão como iríamos vender antidepressivos?

A beleza foi a gente quem inventou também. Assim como a feiura. O chato foi dar a essas coisas um lugar de superioridade ou inferioridade. Aliás, a maior das estupidezes, a que confere poder. Não há maior aberração que um homem ter poder sobre outro. Mesmo sobre um bicho. Um cavalo correndo livre sempre será mais belo que um adestrado. Um pássaro será sempre mais bonito voando no céu ou pousado na árvore. Gaiola nunca foi palco.

É sempre mais belo o homem dançando que apertando botões.

Sim, criamos formas fantásticas de comunicação. Eliminamos as distâncias entre as pessoas do planeta. Por que isso não eliminou a epidemia da solidão?

Simplesmente porque não nos reunimos mais na praça da tribo, ao luar, em volta da fogueira, comendo milho assado, contando histórias de deuses imaginários, cantando músicas ao som de palmas.

Estamos tentando inventar uma forma de dar fim à morte, sem saber o que fazer da vida, a não ser driblar a morte, mas não sabemos apreciar o envelhecimento e nem cuidar dos velhos.

Buscamos uma tal de autonomia. A maior das ilusões. E liberdade, a outra grande ilusão. Não há liberdade que não nos escravize a algo.

Entendemos cada vez mais de sexo. Pronuncia- mos corretamente a palavra clitóris, criamos a democracia do orgasmo, descobrimos o ponto “G”, mas continuamos inocentes com relação ao amor. E nos distanciando cada vez mais dele.

Temos instrumentos eficientes para produzir conhecimento, para sair das trevas da ignorância, mas não demos fim ao preconceito, que é a forma mais bruta da ignorância.

Lutamos para ter privacidade e expomos a nos- sa intimidade nas redes sociais.

Reagimos com “emojis” quando alguém posta o vídeo do cãozinho que foi resgatado, da árvore cortada, da criança abandonada. Mas passamos apáticos pelo cãozinho de rua ou pelo menino dormindo na calçada. E reclamamos do calor, sem lembrar da árvore que não está mais ali, dando sombra fresquinha.

Sabemos e não fazemos. Casas de ferreiro, es- petos de pau.

Pelo menos temos o vinho. E a medicina que permite tomar uma (ou duas) taças por dia.

E temos a arte, que dá sentido a tudo. Que salva da aridez, que conecta, que revela.



Inferno choca os modernos Que país é esse ó minha gente? País de “Morte e Vida Severina” Que João Cabral de Melo Neto assina Mas tre...



Inferno choca os modernos

Que país é esse ó minha gente?
País de “Morte e Vida Severina”
Que João Cabral de Melo Neto assina
Mas treme ante à justiça indecente

Brasil que deu à luz Mário de Andrade
Pra ver uma corte de macunaímas
Vendendo entre conchavos e vindimas
A preço vil a tal dignidade

Que fez Bandeira fugir pra “Passárgada”
Ao ver a roubalheira desbragada
Da pátria de destino tão mesquinho

E viu Drumond perder de vez a fé
Monologando o “E agora José”
Com “A Pedra” gigantesca em seu caminho

(Para o colega, e grande sonetista, heliojsilva e seus “Milhões de Transatlânticos Falidos



A (quase) morte do Português

Carinho trocado por carinha
Léxicos que viram cumprimento
Curtir a vida em movimento
Tuitar quem segue é ladainha

Latim língua morta era única
Camões revira-se ao túmulo
Pessoa reclama: é o cúmulo!
Romanos querem nova guerra púnica

Somente sobrevive a poesia
Diante de tamanha heresia
Assassinam diuturno os idiomas
"Emotions" são apenas os sintomas

O mal só piora a cada dia
Ainda quero o Português que houve um dia

(Para a "Emotion" da poetisa Auglure Martins)


Nem sempre as homenagens referendam um merecimento. Com muita frequência, a motivação para que elas se efetivem é tão exterior, tão circun...



Nem sempre as homenagens referendam um merecimento. Com muita frequência, a motivação para que elas se efetivem é tão exterior, tão circunstancial, que fica difícil estabelecer o nexo entre a distinção e a história de quem a recebe. Assim, algumas homenagens tornam-se gestos desfigurados pela impossibilidade do convencimento e da emoção.



Quando o tema são homens de letras, existe um lugar-comum que parece não ser possível evitar. A constatação de um largo descompasso entre o valor que eles representam para a sociedade e os gestos que exprimem a consciência e o reconhecimento desse valor.

O grande silêncio da Paraíba em relação à memória do professor Juarez da Gama Batista é mais um exemplo a confirmar esta generalidade. Tem a mesma natureza do abandono a que está exposto Augusto dos Anjos, esculpido em bronze, mas afogado no lixo, atropelado pelos camelôs da Lagoa. São aspectos ostensivos do permanente descaso pelo essencial, a refletir a inversão das hierarquias verdadeiras. O velho "desconserto do mundo".



De que outra maneira é possível compreender que instituições, cujos objetivos incluem a preservação da memória cultural, sejam completamente omissas em relação a nomes fundadores de sua própria História, senão admitindo a predominância de uma ordem valorativa equivocada?



Ao estilo e à erudição é preciso acrescentar ainda a ousadia, característica indispensável a todo criador, atitude sem a qual deixariam de existir o novo e o original.



Odilon Ribeiro Coutinho dedicava-se habitualmente a elaboração de textos que eram trabalhados com rigoroso perfeccionismo, em busca da sintaxe, da imagem, do ritmo, da palavra cabível, enfim, dos recursos de expressão que correspondessem ao apurado conceito de forma, que orientava sua consciência crítica. Sem nenhuma dúvida, é de um escritor que estou falando. Do verdadeiro escritor, "que põe o pulsar e o calor de suas veias nas palavras com que fia a túnica diáfana e inconsútil de seu pensamento; e instila, no verbo que se faz carne literária, o seu próprio sangue e as emoções, delírios e fantasias que jorram das fontes interiores de sua vida."

(excertos de "Um certo modo de ler")