“Ele vive supostamente recluso em um apartamento na cidade do Rio de Janeiro”, escreveu, há três meses, o jornalista carioca Mauro Ferreira...

O desconhecido grande artista paraibano

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“Ele vive supostamente recluso em um apartamento na cidade do Rio de Janeiro”, escreveu, há três meses, o jornalista carioca Mauro Ferreira, especializado em música popular, referindo-se ao artista paraibano Genival Cassiano dos Santos, que, embora seja atualmente desconhecido pelo público, tem o seu nome cultuado por intérpretes como Djavan, Marisa Monte, Sandra de Sá e Ed Motta.

Nascido há 77 anos no bairro de José Pinheiro, um dos mais antigos da cidade de Campina Grande, Cassiano foi o único sobrevivente dos dezenove filhos da sua mãe. Conforme as suas próprias palavras, em um dos seus raros depoimentos, os outros “todos morreram aos três meses de desidratação ou epidemia”.

Filho de um pequeno empreiteiro de construções prediais, que era também músico amador, Cassiano recebeu do pai os rudimentos do bandolim, violão e percussão. Frequentava a sua casa, em Campina Grande, um auxiliar do seu pai, de nome José Gomes Filho, que também era envolvido com a música e viria, anos depois, a se tornar um dos grandes artistas brasileiros, com o nome de Jackson do Pandeiro. Segundo Cassiano:

[Jackson] “era amigo da nossa família e trabalhava para o meu pai, que fazia reformas. Me pegou muito no colo, dizem que uma vez eu dei uma urinada nele”.

Os escassos dados biográficos sobre Genival Cassiano disponibilizados por autores de renome, como Ricardo Cravo Albin, Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, indicam que ele teria se mudado de Campina Grande para o Rio de Janeiro, aos seis anos de idade. Essa informação carece de exatidão ao ser confrontada com uma matéria publicada em 1965, na “Revista do Rádio”. A partir de declarações dadas à publicação pelo próprio Cassiano, consta que “Genival é rubro-negro, tendo inclusive jogado no time do Flamengo de Campina Grande, de onde saiu há oito anos”. O Flamengo referido é um antigo clube amador da cidade paraibana e, pelo teor da reportagem, conclui-se que Cassiano se mudou para o Rio de Janeiro no final de sua adolescência.

Ao chegar à então capital federal, Cassiano trabalhou como ajudante de pedreiro e pintor de paredes, mas sempre pensando em viver de música. Influenciado pelo nascente movimento da bossa nova, formou, com um amigo e um meio-irmão, um grupo vocal chamado Bossa Trio, que se apresentava, de forma amadora, em clubes suburbanos. Algum tempo depois, com o grupo já profissionalizado, o nome foi alterado para Os Diagonais.


Na segunda metade da década de 1960, Os Diagonais também atuavam como grupo de apoio vocal em apresentações de outros artistas, como o sambista Zé Keti e o cantor Agostinho dos Santos. O primeiro álbum gravado pela banda teve pouca repercussão, apesar de incluir algumas músicas de apelo popular. O disco trazia duas composições de Cassiano que, por essa época, tinha as suas primeiras músicas gravadas por outros cantores, como Wilson Simonal.

Uma informação incorreta que sempre se encontra com relação à formação dos Diagonais é a de que o cantor e compositor baiano Hyldon (o autor das músicas “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda” e “Dores do Mundo”) teria feito parte do grupo. “Eu nunca cantei nos Diagonais, isso é informação errada, é lenda!” — é o próprio Hyldon quem afirma em uma entrevista, acrescentando que apenas participou de shows do grupo como guitarrista.

Naqueles anos em que Os Diagonais tentavam se firmar no meio musical brasileiro estava em curso uma revolução na música popular dos Estados Unidos. Havia surgido um tipo de música que era uma mistura de blues, jazz e gospel, denominada pela revista Billboard, desde a segunda metade da década de 1940, pelo nome comercial de rhythm and blues (ou R&B). Da matriz do rhythm'n'blues saíram, nos anos 1950, duas grandes vertentes musicais: o rock and roll e o soul.

A partir de meados dos anos 1950, a música "soul" passou a ser utilizada contra a discriminação racial e tornou-se importante fator de integração étnica nos Estados Unidos. Na fase inicial, destacaram-se como figuras mais expressivas os cantores Sam Cooke ("You Send Me"), James Brown ("Try Me) e, principalmente, o pianista, compositor e cantor Ray Charles ("What'd I Say"), um dos maiores nomes da música popular no século XX.


Inicialmente circunscrita aos Estados Unidos, a música soul teve sua grande expansão, a partir da década de 1960, através da gravadora Motown, criada em 1959, na cidade de Detroit. Fundada por Berry Gordin Jr., um ex-empregado da fábrica de veículos Ford que era, também, compositor, a Motown funcionava nos moldes da linha de montagem de uma fábrica. Havia uma banda fixa para todas as gravações e os artistas da gravadora eram contratados como se fossem empregados em uma atividade econômica convencional.

Berry Gordin tinha uma extrema capacidade para descobrir artistas talentosos, alguns ainda na adolescência, como foram os casos de Little Stevie Wonder — que aos 13 anos já ocupava o topo da parada de sucessos — e de Michael Jackson — que ingressou na gravadora aos 10 anos de idade, integrando o grupo The Jackson Five.

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A Motown formou o mais brilhante elenco de artistas da música soul. Além de Stevie Wonder e Michael Jackson, contava com Marvin Gaye, Smokey Robinson, Otis Redding, Gladys Knight, Jackie Wilson, Isley Brothers, Barret Strong, Mary Wells, os grupos Four Tops, Lionel Richie e Commodores, Temptations, Miracles, Jackson Five e vários “Girls Groups”, entre eles Diana Ross & Supremes, Vandellas e Marvelettes.

O “som da Motown” alastrou-se por todo o mundo, a tal ponto que os dois primeiros álbuns dos Beatles traziam versões de sucessos da Motown, como “Please Mr. Postman, “You Really Got A Hold On Me e “Money. Ao final dos anos 1960, o “som da Motown” também já tinha chegado ao Brasil e influenciado a música do paraibano Genival Cassiano.

Por essa época, Cassiano teve contato com um carioca da Tijuca, que chegara dos Estados Unidos, onde passara cinco anos tentando, sem sucesso, a carreira de cantor e também fazendo estripulias, que lhe acarretaram prisões e a expulsão do país. Ao final de 1969, o cantor conseguira, afinal, gravar um disco compacto com uma música de cada lado, uma delas composta por Cassiano e Sílvio Rochael. Nas palavras do compositor paraibano:

"O disco ficou engavetado. Quem o descobriu, um compacto simples, foi o Nelson Motta. Ouviu em 69 e disse: nossa, é muito bom".

O compacto somente foi lançado no ano seguinte (faz meio século), e a música composta por Cassiano tornou-se, de imediato, um grande sucesso. “Com os Diagonais arrepiando nos vocais como os Four Tops”, como escreveu Nelson Motta, o vozeirão do cantor era ouvido em todas as rádios do país:


“Quando o inverno chegar Eu quero estar junto a ti Pode o outono voltar Que eu quero estar junto a ti Porque (é Primavera) Te amo (é Primavera) Te amo, meu amor”.

A canção "Primavera", o compositor Cassiano e o intérprete Tim Maia entravam para a história da música popular brasileira. Naquele mesmo ano, Tim Maia gravava seu primeiro álbum. Cassiano participava do disco como guitarrista, vocalista e com três composições, além da inclusão de uma música do repertório dos Diagonais (“Matuto Transviado, de Luiz Wanderley e João do Vale, a qual ficou conhecida como “Coroné Antonio Bento”). Com o sucesso do disco, Tim Maia, perguntado “Quem é o Cassiano?", em entrevista dada ao jornal “O Pasquim”, respondeu:

“O Cassiano, pra mim, é um dos melhores compositores que existem no Brasil”.

A partir daí, Cassiano foi entronizado como o pioneiro e a figura mais importante da música soul brasileira. Para o respeitado crítico musical Tárik de Sousa:

“Entre os adeptos do soul Brasil o nome do paraibano (de Campina Grande) Genival Cassiano provoca frisson semelhante ao de João Gilberto para os adoradores da bossa nova”.

Após o estouro de "Primavera", Cassiano gravou álbuns individuais, mas somente em 1976 conseguiu um novo grande sucesso popular, interpretando uma balada de sua autoria "A Lua e Eu" ("Mais um ano se passou / E nem sequer ouvi falar seu nome / A lua e eu"), o que voltou a ocorrer no ano seguinte, com a música "Coleção" ("Sei que você gosta de brincar / De amores / Mas, ó, comigo não"). As duas canções fizeram parte de trilhas sonoras de novelas da TV Globo.


A carreira de Cassiano sofreu uma interrupção motivada por problemas de saúde do compositor, que passou quase quinze anos sem gravar. Em 1991, ele voltaria a fazer um novo álbum, "Cedo ou Tarde", com regravações dos seus sucessos. O disco teve a participação dos seus “discípulos” Luiz Melodia, Djavan , Marisa Monte , Ed Mota e Sandra de Sá .

Também em 1991 Cassiano interpretou "Pra Que Mentir" no álbum produzido em homenagem a Noel Rosa, do qual participaram grandes nomes da música brasileira, como Tom Jobim, Chico Buarque, Gal Costa, João Bosco, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Djavan e Maria Bethânia.

De personalidade considerada “difícil”, e avesso às novas práticas que começaram a vigorar no mercado da música, Cassiano foi, gradualmente, dele alijado. Para o jornalista Mauro Ferreira:

[Cassiano] “virou lenda do soul brasileiro. Um mestre que precisa ser apresentado às novas gerações”.

A produção de Cassiano pode ser ouvida nas plataformas streaming, como o Spotify , onde estão disponíveis cinco álbuns do cantor, instrumentista e compositor paraibano. Embora sempre tenha ressaltado ter nascido em Campina Grande, na Paraíba, Genival Cassiano é um nome praticamente desconhecido por seus conterrâneos.

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  1. Mais um belo artigo. Dessa vez sobre o genial Cassiano, que merecia bem mais reconhecimento pela sua obra. Somos um país que despreza o seu melhor e parece cultivar o lixo.

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  2. Muito completo seu texto, Flavio Ramalho Brito. Cheios de detalhes e informações biográficas preciosas sobre esse rei negro da black-soul brasileira desconhecido das novas gerações!! Parabéns!

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