Em que medida o elemento autobiográfico se insere na poesia de Augusto, autor de um único livro sintomaticamente intitulado Eu? Para res...

Autobiografia e lirismo em Augusto dos Anjos

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Em que medida o elemento autobiográfico se insere na poesia de Augusto, autor de um único livro sintomaticamente intitulado Eu? Para responder a essa pergunta, tecerei breves considerações sobre a autobiografia, onde se conta a história de um eu, e sobre o gênero lírico, que também diz respeito à entidade subjetiva. Nosso propósito é apontar e discutir algumas passagens, ligadas à vivência do indivíduo Augusto dos Anjos, que de alguma forma se integram ao seu lirismo – fundado, como se sabe, numa visão muito particular da própria subjetividade e do mundo.

É necessário fazer, de início, uma breve distinção entre a autobiografia e a poesia lírica quanto ao tratamento e à manifestação do eu. Na autobiografia, que se define, segundo Philippe Lejeune, como “o relato retrospectivo de uma vida, acentuando particularmente a transformação da personalidade”, o indivíduo se revela na sua dimensão histórica; é concebido como o assunto principal, mas não o único, de uma narrativa que o incorpora privilegiadamente. Na narrativa autobiográfica o eu, sendo tema, aparece como algo objetivo e exterior ao próprio agente da narração, que fala de si como de outrem, ou seja, como de alguém que ele foi nos vários estágios do tempo. Como é próprio do gênero narrativo, o assunto narrado (no caso, a vida do narrador) se coloca diante dele como objeto, efeito de um desdobramento da personalidade que possibilita ao eu, inclusive, uma apreensão crítica de si mesmo.

Na poesia lírica, ao contrário, o eu se revela como totalidade, imerso num presente que não comporta desdobramentos temporais. Em lugar da história da vida com suas transformações o que prevalece no lirismo é a revelação, ou antes, a expressão de uma personalidade por estados de alma, sentimentos, eventualmente conceitos (na chamada logopeia).

É preciso, pois, não confundir a autobiografia, atividade centrada no eu como tema e objeto da sua própria história, com a poesia lírica, em cuja tessitura o eu aparece como uma totalidade que desconhece limitações de tempo e espaço. Nela, a entidade subjetiva enlaça os objetos exteriores, o não eu, com eles se fundindo e suplantando-os em proveito da autoexpressão.

Intitulando seu livro de Eu, Augusto dos Anjos sugere uma percepção muito particular e intensa de si, da própria vida, conjugada a uma visão muito particular do mundo. Fatos, indivíduos, registros ligados à sua vida pessoal adentram o universo lírico e nele se revelam ora de forma indireta, influenciando a confecção das imagens, ora de forma direta, figurando a circunstância “real” do poeta, que se mostra sem maiores disfarces. Esses elementos acabam se constituindo em artifícios retórico-poéticos cujo papel é o de traduzir as obsessões do eu lírico. Eles se transfiguram em recursos de poetização, concorrendo para caracterizar, ou reforçar, a visão de mundo do autor. Cabe ao crítico apontar como essa poesia sobre o eu transforma-se em poesia do eu, ou seja, como no paraibano a incorporação de marcas vivenciais vem a compor a sua expressão lírica.

Consideremos, a título de exemplo, a doença do Dr. Alexandre dos Anjos, pai do poeta. Devido a uma possível trombose cerebral, segundo Humberto Nóbrega, o Dr. Alexandre ficou impossibilitado de mover a língua e falar, embora pudesse compreender o que lhe diziam. Não é impossível que esse evento, havendo marcado profundamente a sensibilidade do filho, tenha-se transplantado para a sua lírica sob a forma de uma imagem obsessiva, ligada à impotência da língua para articular as palavras. O melhor revestimento intelectual dessa obsessão, que aparece em vários poemas de Augusto, encontra-se no soneto “A Ideia”, no qual o eu lírico lamenta a pobreza do ser humano para expressar os conceitos que, brotando do cérebro, esbarram “no molambo da língua paralítica”. O teor genérico desse lamento não nos deve desviar da ocorrência que lhe deu origem, a qual está ligada – como em tantos outros passos do poeta – à sua experiência pessoal.

Também se liga à experiência do poeta o episódio que envolveu a sua ama de leite Guilhermina, que furtava as moedas dadas ao menino pelo Doutor. Aqui o episódio não se configura como imagem obsessiva, ingrediente retórico, mas como um dado que vai servir ao protesto contra as desigualdades sociais – particularmente, no caso, a escravatura. Guilhermina em confronto com o poeta sai absolvida, pois o seu roubo – a não ser pelo mau exemplo de que os pais queriam proteger o menino – foi bem menor. Conforme reconhece o eu lírico, num rasgo que hoje chamaríamos de politicamente correto, “Eu furtei mais, porque furtei o peito/ Que dava leite para a tua filha.”.

Outro elemento vivencial integrado à lírica de Augusto dos Anjos é a atividade do estudo. Com ela o poeta confessa que procura “iludir a própria desgraça” – mas foi a partir dela que, pelo mergulho no entrançado de conceitos científicos e filosóficos, ele consolidou a sua linguagem poética. Como bem observa Ferreira Gullar, o cientificismo filosófico não é expediente acessório na poesia de Augusto dos Anjos, mas um dos elementos constitutivos dela. Segundo o poeta e crítico maranhense, “esse universo vocabular de pólipos, neuroplasmas, infusórios e aneurismas, se não é todo o ‘mundo’ do poeta, é parte integrante dele”. E assim constitui, enquanto acervo terminológico, “um dos polos de sua linguagem” – sendo o outro representado pelas pessoas e objetos que lhe estão próximos. Afinal de contas, “é na realidade doméstica, familiar e provinciana, que a imaginação do poeta encontra o material que transfigura”.

Como ingredientes vivenciais, marcas de uma escolha alternativa que privilegia a racionalização, os conceitos filosóficos têm de início uma influência negativa. São o testemunho de uma busca condenada ao fracasso, já que não será pela via intelectual que o eu lírico vencerá os dualismos e chegará à apreensão da coisa em si. Num nível posterior, de reação espiritual a partir da realização artística, tanto os conceitos quanto a nomenclatura filosófico-científica aparecem desfocados da sua referência original. Valem antes como símbolos a partir dos quais se erige um novo e assombroso universo.

Palavras como “monera”, “carbono”, “verme”, “embriões”, “mônada”, “noumenalidade” e tantas outras adquirem um valor metafórico ou metonímico, veiculando sentidos que pouco têm a ver com os conceitos que primitivamente elas traduziam. Em razão desse desvio ou dessa amplificação, que valoriza a dimensão fônica das palavras, a primazia se desloca da instância científico-racional para a esfera do emocional e do afetivo. Instaura-se um universo cujo fulcro não é mais a realidade objetiva e os meios técnicos e lógicos de aferi-la e dominá-la, mas o espírito e a sensibilidade do homem com as suas limitações e perplexidades.

A poesia de Augusto dos Anjos, com efeito, é toda animada pela busca de infundir espírito no vazio mecanicista representado pelo cientificismo do final do Séc. XIX. Profundamente moralista, dolorosamente influenciado pelos preceitos da doutrina cristã, o poeta vê nas formulações materialistas uma ameaça ao seu credo, base de sustentação do seu mundo. E procura, utilizando-se transgressivamente do acervo conceitual e linguístico da filosofia e da ciência, espiritualizar esse universo ateu.

Essa ânsia de espiritualização, e sobretudo de contestação ao racional e ao abstrato, leva-o a observar o que está em volta e, consequentemente, a inserir dados da realidade concreta e circundante no tecido poemático. Observe-se, quanto a isso, o rigor confessional e descritivo presente no poema “Tristezas de um quarto minguante”. Nele o processo de transfiguração linguística parece quase nenhum, e o efeito poético acentua-se, paradoxalmente, com a enumeração sincera e crua de sentimentos, impressões, percepções: “Diabo! Não ser mais tempo de milagre!/ Para que esta opressão desapareça/ Vou amarrar um pano na cabeça/ Molhar a minha fronte com vinagre.”. A franqueza do poeta nem lhe permite disfarçar as suspeitas de distúrbio mental, conforme se lê nos versos seguintes: “A lâmpada a estirar línguas vermelhas/ Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,/ Como um degenerado psicopata/ Eis-me a contar o número das telhas!”. No referido poema, a ligação entre o poético e o vivencial transparece inclusive numa indicação de ordem metalinguística e extradiegética, quando o eu lírico, angustiado, se pergunta: “Quem sabe se não é porque não saio/ Desde que 6a. feira, 3 de Maio,/ Eu escrevi o meus Gemidos de Arte?!”. Observe-se nessa passagem que tanto o uso do verbo sair, com o sentido de espairecer, quanto a menção à data em que outro poema fora composto concorrem para introduzir no espaço textual o cotidiano do poeta, aproximando a poesia da vida.

Por via dessa concretização da experiência ocorre, aparentemente, um prejuízo do poético em prol do prosaico ou confessional. Há passagens em que os recursos de poetização se limitam ao ritmo, à metrificação e à rima, tal a “objetividade” com que o artista, sem qualquer desvio ou acréscimo, refere as suas angústias existenciais. No entanto, é sempre poesia o que se lê. No caso de “Tristezas de um quarto minguante, o inusitado da experiência prosaica, alternando-se com a paulatina emergência do delírio, cria uma antítese cujo efeito é instaurar a poesia – que nunca esteve tão próxima da vida, dos sentidos, do real.

A inserção de elementos vivenciais no espaço lírico é um procedimento que se tem inscrito na evolução do próprio gênero. Se não o inaugurou, Augusto dos Anjos foi um dos nossos poetas que o praticaram com mais arrojo, e tal postura concorreu para que a sua lírica antecipasse a modernidade poética brasileira.

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