Em seus componentes físicos a noite é a mesma. Solitária e imensa se vivida numa antiga aldeia rural e quase despercebida no ruge-ruge da ...

A árvore que se larga

Em seus componentes físicos a noite é a mesma. Solitária e imensa se vivida numa antiga aldeia rural e quase despercebida no ruge-ruge da grande avenida.

Vivi as duas situações. E vi a noite encurtar à medida que a opção de vida e de trabalho foi me atraindo para outras compulsões. A quantas madrugadas cheguei, o sol se anunciando pelos vitrais da redação, sem perceber que a noite sumira quase inteira no fechamento das últimas páginas. Os jornais, nesse tempo, não encerravam antes da meia-noite. Fechávamos cedo o noticiário local, as resenhas da assembleia, do governo, da polícia, mas ficávamos na dependência das agências de notícias, que se comunicavam pela radiotelegrafia. E os conspiradores daquele tempo, os malfeitores da vida social sempre escolhiam a noite para agir.

Iphaep
Metade da vida ativa nisso, atravessando a noite sem tempo de perceber sua disponibilidade de paz, seus instantes de prazer ou a suas tristes surpresas. Mas não dava para ter medo. O sono, o enfado, não deixavam.

Aposentado, custei a me adaptar. No início, o dia ainda me reservava as cadeiras do clube, as rodas do café, que foram fechando ou mudando de endereço. Mas a noite…

Bem, há anos tem a televisão com seu noticiário fugidio, as imagens chegando a nos isentar do texto. Ou a novela inverossímil, rica de belas mulheres e até de suas intimidades.

Mas quede o sono? O sono já tem se dissipado em cochilos intermitentes. E você terá de aguentar a noite de olhos abertos. E começa a ter medo, a pingar colírio, a se perguntar se amanhece. O dia amanhecerá com certeza. Daqui a mais um pouco. E eu? Que poderei exigir de um músculo miraculoso que pulsa e pulsa e pulsa...

Toca assombrosamente o telefone: “Soubesse?!”

Mark D
E penso em mim.

Nesse ponto acode-me a poesia que Paulo de Campos Barros morreu sem escrever. Um seu tio velho já vinha esperando o dia ou a noite desde que o câncer roubara-lhe o apetite das benesses da mesa e do corpo. A casa ficava no alto da serra, ali por Teixeira, com uma janela ao lado do leito, dando para as terras da lavoura e do gado a que empregara a razão e a força de sua vida, que a cada dia o velho sentia minguar, menos em consciência do que em força. E pedia a Deus que não o entregasse à morte durante a noite, nas trevas.

E Deus o atendeu.

Numa manhã que retiniu nos olhos mortiços, sentiu que a hora era chegada e ainda pôde acenar para que o aproximassem da janela de sol muito bem aberta para o cenário do seu convívio com a natureza. Pareceu-lhe mais próximo da árvore velha que larga as raízes.

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  1. Ah, que saudades de tempos agora revividos por essas fotografias e a memorização que o nosso Gonzaga nos traz.
    Entrar pela porta que marcava, também, o início da saudosa Praça 1817, subir sua escadaria de madeira rangente que permitia o acesso noturno à redação era um ritual, de certo forma semelhante ao ingressar em uma Igreja.
    Lá em cima, no amplo salão a que ela dava acesso, a vida pulsava.
    Hoje só nos resta reconhecer que "foram tempos idos e vividos".

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