Comunidade tradicional e riberinha do Porto do Capim:
Patrimônio histórico e cultural paraibano
Patrimônio histórico e cultural paraibano
As questões de como se define patrimônio histórico-cultural e como, em consequência, se chega à delimitação do tombamento pelos órgãos responsáveis — a nível federal o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/IPHAN, e a nível estadual o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba/IPHAEP —, têm sido objeto de muitas discussões entre especialistas e os responsáveis pela administração pública ao longo das últimas décadas, especialmente a partir dos anos 1990. Na Paraíba, alguns sítios e algumas edificações isoladas, receberam oficialmente esse título e, dentre eles, está o caso da cidade de João Pessoa, cujo centro histórico é tombado como patrimônio histórico nacional desde 2007.
Vista parcial do centro histórico da capital do Estado da Paraíba ▪ Gov. PB
E como isso acontece? Há vários mecanismos que produzem essa “amnésia social”, um esquecimento que pode ser inconsciente, mas na maior parte das vezes é deliberado.
Um dos principais mecanismos para promover tais esquecimentos é o ensino de História. De forma geral, o principal contato da população com ela é feito na escola. E, nesse espaço frequentemente a História continua a ser ensinada
R. Maciel Pinheiro ▪ Centro Histórico ▪ Parahyba do Norte ▪ Zelma Brito
Apesar da profissionalização dos historiadores e da riqueza incontestável da historiografia brasileira nos últimos 50 anos, quase sempre e majoritariamente a História é entendida de forma elitista, factual e linear. Nessa perspectiva, a participação dos agentes sociais não-dominantes é silenciada, bem como os conflitos presentes nas formações e nas construções humanas.
Essa forma de se aproximar do real também está presente na concepção tradicional de “patrimônio”, assentada nesta História factual e elitista. O patrimônio também é entendido como reflexo do passado, como algo que acaba em si mesmo, que nada tem a ver com o tempo presente.
Nas políticas patrimoniais pautadas segundo esta lógica, torna-se evidente, entre outros aspectos, a ideia de que o patrimônio da cidade se localiza justamente e tão somente nos chamados “centros históricos”, afinal são esses os repositórios do patrimônio de pedra e cal, do patrimônio arquitetônico, dos antigos espaços políticos dos homens “ilustres” e, segundo essa concepção, é a história e a memória destes que devem ser preservadas.
Paço Municipal, no centro histórico da capital da Paraíba ▪ Matheus Jampa da Silva ▪ Wikipedia
Essas políticas “preservacionistas” pretendem promover novos usos dos espaços ancoradas à sombra de um discurso que ressalta o seu “abandono” e “degradação”. Tais discursos criminalizam a pobreza, estigmatizam os grupos sociais com menor poder aquisitivo e reduzem as suas riquíssimas relações com os espaços a práticas ilícitas e de violência.
Tal interferência acaba por resultar em processos de espetacularização imobiliária e em transformações do valor histórico e cultural desses espaços para
Ruy Carvalho ▪ Wikipedia
Justifica-se, através desses argumentos e desse estigma, a retirada das “comunidades marginalizadas” do local que deve ser “patrimonializado” e/ou “revitalizado”. Ignora-se, é claro, os bens patrimoniais materiais e imateriais, as memórias e a história desses agentes sociais não-dominantes que também precisam ser preservadas.
Essa é a situação enfrentada pelas pessoas da comunidade do Porto do Capim, que se defrontam cotidianamente com a possibilidade de remoção, já que seu território tem sido alvo, desde a segunda metade da década de 1980, de discussões quanto à aplicação de políticas públicas higienistas que se assentam, entre outros aspectos, na noção de que o patrimônio a ser preservado é o de pedra e cal.
DG'Art + Alphabet
Pois bem, ali no centro da cidade, atravessando a linha do trem, existe a Comunidade do Porto do Capim, reconhecida, desde 2015, pelo Ministério Público Federal como uma Comunidade Tradicional e Ribeirinha. Destacamos que ela está situada no Bairro do Varadouro, no entorno do chamado Centro Histórico da cidade de João Pessoa que, desde 2007, foi definido como patrimônio histórico nacional pelo IPHAN e que também é tombado, com algumas variações, pelo IPHAEP. Ou seja, o centro histórico da cidade é duplamente reconhecido pelos órgãos responsáveis e por diversos motivos, como área relevante para a memória nacional, contendo patrimônios que devem ser preservados.
Porto do Capim ▪ Parahyba do Norte
Por outro lado, precisamos entender as razões pelas quais ela é considerada uma Comunidade Tradicional e Ribeirinha.
Vista aérea parcial do bairro do Varadouro (centro histórico) e do Porto do Campim ▪ Parahyba do Norte ▪ Fonte: ResearchGate
O fato é que, através dos séculos, ela se transformou numa área que concentrava o trânsito de mercadorias e de pessoas que não apenas trabalhavam no porto, mas também nas casas comerciais, nas cantinas, botecos, feiras, oficinas de diferentes tipos de artesãos, entre outros.
Desse porto eram enviadas mercadorias para Portugal (travessia do Oceano Atlântico), para Pernambuco e para outras localidades. Mas não era só isso, além desse porto comercial havia também os portos comunitários, os trapiches,
L. Fuego ▪ Wikipedia
Para que a cidade crescesse e o porto funcionasse, entre outras coisas, a paisagem natural, tal como existia antes da conquista europeia, foi duramente transformada ao longo dos séculos. Por exemplo, para a construção de edificações como igrejas e sobrados, na área que hoje conhecemos como Roger e suas adjacências foram destruídos morros para extrair pedra calcárea cujas jazidas continuam sendo exploradas (é o que acontece na Ilha do Bispo ainda hoje). Para facilitar o atracamento de embarcações e abrir espaço para as instalações do porto, os manguezais do rio Sanhauá foram derrubados.
Tal situação se intensificou a partir da década de 1920 quando se iniciaram obras que visavam a transformação do modesto porto da Paraíba em um porto internacional. Por vários motivos, dentre eles as dificuldades técnicas e as denúncias de corrupção que envolviam a obra, isso não aconteceu e o que restou na área foi um rastro de destruição, lama, capim e nada de manguezais.
Gimp CC0
Com a mudança do porto comercial iniciou-se, então, a decadência econômica dessa área da cidade. O comércio e a prestação de serviços mudaram-se para outros espaços e o casario que os abrigava começou a arruinar-se num processo lamentável que pode ser visto a olho nu nos dias de hoje. Legiões de trabalhadores que por ali circulavam ficaram sem ter do que viver. As instalações do antigo porto e os galpões construídos para a sua reforma foram abandonados pelo poder público.
Vista parcial do Varadouro, Porto do Capim e estuário do Rio ParaíbaALCR
Todos esses trabalhadores do rio e do mangue, mantiveram vivos os modos de vida dos povos indígenas que eram senhores da terra desde antes da ocupação europeia; eles são herdeiros da cultura dos povos Potiguara. E, ao longo dos séculos, tal como acontece com todas as sociedades humanas sem exceção, foram se transformando, incorporando e produzindo outros hábitos, outros valores, outros saberes, ou seja, foram produzindo outros mundos.
Comunidade ribeirinha do Porto do CapimAlphabet
Por outro lado, a vida cotidiana da população e suas relações com o rio, com a maré e com os manguezais resultaram na preservação dos mesmos e na coesão da vida comunitária através do compartilhamento de experiências comuns.
Camila Senna de Araújo
Significa que a comunidade do Porto do Capim foi institucionalmente reconhecida pelo Estado brasileiro como uma comunidade que mantém vínculos sólidos com um modo de vida, um patrimônio cultural que se enraíza há séculos nessa região e, nesse sentido, ela também deve ser compreendida como um patrimônio cultural da cidade de João Pessoa, da Paraíba e do Brasil. É uma comunidade formada por uma rede complexa de famílias e parentes que, entre outras coisas, mantém sua interação cotidiana e seus laços de solidariedade. E é ribeirinha porque mantém uma relação íntima e indispensável com o rio e os manguezais não só no que se refere à sobrevivência de vários de seus indivíduos, mas também porque, a partir deles, produz e reproduz todos os dias elementos da sua cultura material e da sua cultura simbólica.
Pôr do sol no estatuário do Rio Paraíba ▪ Porto do CapimCamila S. Araújo
Se você ainda não a conhece, é tempo de fazê-lo. É tempo de passear de canoa, de observar o rio no trapiche comunitário, de assistir um pôr do sol espetacular, de talvez encontrar o Pai do Mangue e a Cumade Fulozinha, de conhecer os moradores através do Projeto Vivenciando o Porto (turismo de base comunitária), de comer mariscada, de tomar um gole de café e conversar...
Há muito o que conhecer nesta e sobre essa comunidade que mantém viva a memória de nossos tempos passados e de nosso tempo presente!