Dois meninos de engenho, embora diferentes. Um revela as suas memórias de modo copioso, seja na ficção (Menino de engenho, Doidinho, Banguê), seja na autobiografia (Meus verdes anos), de que se alimenta a sua ficção. O outro mostra apenas alguns flashs da memória, transfigurados pela sua poesia estonteante e desconcertante (“Debaixo do Tamarindo”, “Vozes da Morte”, “As Cismas do Destino”, “Os Doentes”, “Gemidos de Arte”, a Trilogia dos sonetos ao Pai, “Noite de um Visionário”, “Insônia”, “Tristezas de um Quarto Minguante”, e o soneto “Ricordanza Della Mia Gioventú”, que reputamos ser a memória mais substancial).
A aproximação e o afastamento, no entanto, não se fazem apenas pela vida que viveram, mas também pelo que escreveram, ainda que um tenha sido romancista memorialista e o outro poeta de uma dimensão
Vamos, inicialmente, ao trecho de Banguê (21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002, Parte II – Maria Alice – Capítulo VII, p. 119):
“Um boi urrava na beira do rio. E depois ouviam-se mais urros. Enchiam o areal branco de berros agoniados. Levantamo-nos para ver. Havia uma rês morta, estendida. Mordida de cobra, na certa. Precisava enterrar, senão o povo viria cortar-lhe as carnes para comer. Só se aproveitava o couro. Por um pedaço de carne verde aquela gente arriscava a vida. Era preciso tomar cuidado, enterrando o animal mordido, como se fazia com os bois de carbúnculo.”
O que nos chama a atenção, no trecho acima, é a referência ao carbúnculo matando os bois, assim como Augusto dos Anjos alude, em “As Cismas do Destino” (Parte II, estrofe 56, versos 221-224):
“Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no ‘Engenho’ também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!”
Jean Bernard
Jean Bernard
A miséria do engenho Santa Rosa não é apenas a da fome, provocada pela exploração do trabalho, num sistema fundiário e agrário atrasados, é a da ignorância que mantém o povo pobre nesta eterna condição e sujeição; é a da posse à força e, depois, a da prostituição, que submete as moças e as mulheres aos senhores, sem que haja qualquer consequência para eles, detentores da força de mando, emulando o que Dagoberto Marçal, em A bagaceira, afirma, ao expulsar um cabra do eito de seu engenho, sem deixar que leve nada do que plantou: “O que está na terra é da terra!” (34. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, Capítulo “Duas Almas num só Corpo”, p.13). E isto inclui, certamente, a honra das mulheres, violadas ao bel-prazer do senhor de engenho e de seus filhos.
A estrofe do Eu, citada acima, integrando a segunda parte de “As Cismas do Destino”, como já dissemos, refere-se ao momento em que o eu-lírico, na agudização do seu delírio, mostra a sua aflição, nas trevas que o envolvem, diante da percepção de que a evolução da espécie chegou ao humano, mas não ao humanismo. A pergunta com quem se inicia a estrofe já nos diz muito, na antecipação da miséria humana
Jean Bernard
Se o ser humano evoluiu materialmente, espiritualmente encontra-se estagnado, tendo em vista a degradação em que mergulhou, entregue aos vícios, dentre eles o alcoolismo e a luxúria, contribuindo para a prostituição e para as mortes precoces e degradadas. Daí a motivação do eu-lírico de um desejo de a alma, separando-se do corpo, “Fazer da parte abstrata do Universo,” a sua “morada equilibrada e firme” (estrofe 61, versos 243-244).
A referência às mortes e à prostituição, resultados da degradação vivenciada pelo eu-lírico, leva a uma reflexão, sobre a vida no “Engenho” (a palavra já se encontra aspeada na estrofe), onde “A sociedade infante dos bezerros” é morta pelo “malvado carbúnculo”. A estrofe vem em meio a duas outras (55, versos 217-220, e 57, versos 225-228), que lhe dão um grande significado:
“Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite,
É que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pai morrem de fome!”
“Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos espojando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama!”
Embora o romance de José Lins nos revele a consciência da exploração e da miséria humana, o personagem-narrador, Carlos de Melo, se apresenta, a maior parte do tempo, como indiferente ou apenas tocado por ela,
Jean Bernard
Em Augusto dos Anjos, dá-se o contrário. O eu-lírico vê-se envolvido, na situação degradante, estando no “Engenho” ou não. A consciência do sofrimento e da dor dos degradados toca-o agudamente, por ele fazer parte inseparável dessa condição dolorosa. É sutil como o poeta associa o homem ao animal, na sua condição frágil de miserável, não lhe dando sequer voz. Se os bezerros fazem parte de uma “sociedade infante”, tomando o termo à letra, como os que não são capazes de falar, os homens são silenciados por uma condição miserável que lhes nega a fala, a maior das condições humanas, como se foram bichos. No engenho Santa Rosa, o gado ainda berra, no “Engenho” do eu-lírico, são infantes, assim como “os meninos sem pai” que “morrem de fome”
Jean Bernard
O carbúnculo para Carlos de Melo é apenas um dos agentes da morte, sem muita complexidade ou muita reflexão porque isso acontece. Já para o eu-lírico, é impossível dissociar a ação letal do carbúnculo com a situação de degradação que envolve o fato. Daí a sua antropomorfização como “malvado carbúnculo”, como se um bacilo pudesse ser bom ou mau, não respondesse apenas ao que lhe dita a sua natureza bacteriológica. Bons ou maus são os homens, que agem mais danosamente que o carbúnculo, de modo consciente, para a satisfação de suas necessidades e de seus instintos. Do mesmo modo, a morte aparece com “ingrata” como se ela pudesse, em algum momento, ser uma persona grata. Parece-nos claro que a antropomorfização do carbúnculo ou da morte é uma maneira sutil de revelar a miséria da degradação humana. O homem mostra-se um grande mal que infecta como o carbúnculo e provoca mortes injustas. O destino de todos é a morte, mas a morte provocada pela pior das misérias, a prostituição, não pode ser vista como algo natural, principalmente quando atinge inocentes. Daí a homologia existente entre “a sociedade infante dos bezerros” e “os meninos sem pai” que “morrem de fome”.
Jean Bernard
Já o ser humano precisa aprender o quanto ele é ruinoso para os outros a quem infecta com seus vícios, como se poderá ver na sequência do poema “As Cismas do Destino”, com a fala da consciência revelando-se ao eu-lírico, num diálogo claro com “Monólogo de uma Sombra”.
Eis aqui uma das maneiras de fazer o enfrentamento da poesia de Augusto dos Anjos: não basta ir ao dicionário e dizer o que é carbúnculo. É necessário que se dê, sobretudo ao léxico científico, um tratamento crítico, que vá além do seu significado denotativo, buscando a significação que ele tem no poema, decisiva para que possamos alcançar a sua significância.
* As informações sobre o carbúnculo foram retiradas do artigo científico “Carbúnculo hemático”, da autoria de Luana Maria Santos et alii, publicado na Revista científica eletrônica de medicina veterinária. Garça: Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia de Garça FAMED/FAEF e Editora FAEF, Ano VI, nº 10, Janeiro de 2008 (ISSN: 1679-7353).