Para exemplificar o ritmo e o lúdico, seguem alguns poemas de José Paulo Paes e Elias José. A escolha destes poetas não foi aleatória. Escolhemos Paes e Elias, porque são poetas nos quais se evidencia, de forma acentuada e assídua, o trabalho com o lúdico a partir dos jogos de linguagem. Ambos adaptam a linguagem para o sentido conotativo sem empobrecê-la, utilizando-se do humor e da surpresa como forma de “desarmamento” no processo da leitura para que assim, como afirmou Pavan (1998) abrir a cabeça para que o senso de diversidade, a sensibilidade [...] sejam aprimorados por meio da poesia, desenvolvendo a inteligência do leitor-mirim. Aos poemas:
Grilo Grilado
de Elias José
O grilo
coitado
anda grilado
e eu sei
o que há.
Salta pra aqui,
Salta pra ali.
Cri-Cri pra cá
Cri-cri pra lá.
O grilo
coitado
anda grilado
e não quer contar.
No fundo,
Não ilude,
É só reparar
Em sua atitude
Pra se desconfiar.
O grilo
Coitado
Anda grilado
E quer um analista
E quer um doutor.
Seu grilo,
Eu sei:
O seu grilo
É um grilo
De amor.O jogo verbal desse poema inicia-se a partir do título que possuí aproximações sonoras (paronomásia). O poeta parte de um animal, recurso muito frequente na poesia infantil, depois insere a gíria “grilado”, que significa “preocupado, cismado, desconfiado”. O grilo está inquieto por se sentir incomodado por algo que não quer dizer. Isso expresso no poema ativa uma série de inferências no leitor, para o qual é despertado o interesse em saber o que ocorre com o inseto.
Richard Malo
Segundo PINHEIRO (2012) algumas perguntas poderiam nos guiar para a investigação de como a temática envolvendo animais pode ser produtiva, a saber:
✒️ Como os nossos poetas fizeram uso da imagem dos animais para compor seus poemas?
✒️ Os poemas apresentam um aspecto mais fabular, conforme a tradição secular de utilizar a imagem dos animais para transmitir mensagens ao público infantil?
✒️ A abordagem explora a animização dos animais com vistas à ludicidade?
Sabe-se que os animais na literatura ganharam popularidade a partir das fábulas, principalmente as escritas por Esopo, a exemplo de “A tartaruga e a lebre”, “O lobo e o carneiro”, entre outras.
Nathan Anderson
A linguagem coloquial de “Grilo grilado” é marcada pelo verbo “andar” que comumente é um verbo de ação, mas que nesse contexto desempenha o papel de verbo de estado (ou de ligação). Além da preposição “para” que se apresenta de forma abreviada; “pra”. Por esses e outros fatores o poema tende a atrair o público infantil.
Em José Paulo Paes, o leitor é convidado a “brincar de poesia”
Poesia
José Paulo Paes
Convite
É brincar com palavras
Como se brinca
Com bola, papagaio, pião.
Só que
Bola, papagaio, pião
De tanto brincar
Se gastam.
As palavras não:
Quanto mais se brinca
Com elas
Mais novas ficam.
Como a água do rio
Que é água sempre nova.
Como cada dia
Que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia?Vê-se agora que o lúdico parte de algo muito próprio da infância – a brincadeira, os brinquedos (bola, papagaio, pião) e, numa espécie de antítese, o eu lírico apresenta na terceira estrofe uma vantagem em brincar com as palavras “quanto mais se brinca/com elas/ mais novas ficam” em contraponto aos objetos usuais da vida infantil. Na quarta estrofe, a poesia é comparada à água do rio que sempre se renova, uma espécie de alusão à filosofia de Heráclito “Não se banha no mesmo rio duas vezes”, revelando o poder inovador das palavras. Mais: compara a poesia ao dia, intuindo-se de que esta é um elemento importante no cotidiano.
Alberto Adán
O papel importante que o ludismo exerce, no estímulo à expressão verbal, ocorre, seja no momento em que se brinca com a união dos fonemas, seja quando se considera o efeito de dos significados considerados simultaneamente, alterando-se partes das palavras para conseguir novos efeitos ou, ainda, em jogos mais elaborados com a formação e a transformação das palavras.
(CADERMATORI, 2010, p. 59)
(CADERMATORI, 2010, p. 59)
Com boa reputação na “poesia adulta”, José Paulo Paes começou a publicar assumidamente poesia infantil em 1984, com É isso ali, consciente de que é um tipo de poesia essencialmente lúdica:
Com Monteiro Lobato, a quem tive o privilégio de conhecer pessoalmente pouco antes de sua morte, aprendi que o principal ingrediente da literatura infanto-juvenil é o humor. Isso porque a alegria de viver e o gosto pelo jogo são inatos nessa fase da vida humana. Utilizo em minha poesia vários recursos de humor, como trocadilhos, falsas etimologias, paradoxos, simetrias e ecos verbais, rimas estapafúrdias etc. Isso fala de perto ao sentido lúdico da criança, a quem as brincadeiras verbais podem divertir tanto quanto as físicas. (Proleitura, 1995, p.2)
Qito Guur
Já em “Paraíso”, Paes nos apresenta uma poesia de caráter mais social. E por que não dizer até panfletário? Contrapondo-se à filosofia empregada em poemas como “Convite”, aqui já trabalhado, e “Inutilidades”, que se verá mais à frente.
Paraíso
(Paes, 1991)
Se esta rua fosse minha
Eu mandava ladrilhar
Não para automóvel matar gente,
Mas para criança brincar.
Se esta mata fosse minha
Eu não deixava derrubar.
Se cortarem todas as árvores,
Onde é que os pássaros vão morar?
Se este rio fosse meu,
Eu não deixava poluir.
Joguem esgotos noutra parte,
Que os peixes moram aqui.
Se este mundo fosse meu,
Eu fazia tantas mudanças
Que ele seria um paraíso
De bichos, plantas e crianças.A intertextualidade com a cantiga de roda “Se esta rua fosse minha” é explícita a partir dos dois primeiros versos da primeira estrofe. Agora o poeta se apresenta não meramente utilizando-se de jogos de palavras, mas entremeando nos versos uma série de ideologias ecologicamente corretas para que os automóveis não matem gente, que ninguém derrube as árvores ou poluam o rio, matando os peixes. E compara o mundo a um paraíso dando-lhe um tom um tanto clichê, reforçado pela ideia de “querer mudar o mundo, proteger os bichos, plantas e animais.”
Holly Landkammer
Já em “Inutilidades”, o poeta questiona a língua, o que costumeiramente a criança o faz, quando reflete sobre a arbitrariedade do signo linguístico.
Inutilidades
(Paes, 1993)
Ninguém coça as costas da cadeira.
Ninguém chupa a manga da camisa.
O piano jamais abana a cauda.
Tem asa, porém não voa, a xícara.
De que serve o pé da mesa se não anda?
E a boca da calça se não fala nunca?
Nem sempre o botão está na sua casa.
O dente de alho não morde coisa alguma.
Ah, Se trotassem os cavalos do motor...
Ah! Se fosse de circo o macaco do carro...
Então a menina dos olhos comeria
Até o bolo esportivo e a bala de revólver.Em “Inutilidades” alguns substantivos são postos à prova e levados à xeque, porque são incoerentes nesses contextos. Nota-se que o efeito de contradição dá-se pela catacrese (metáfora morta). Na ausência de um termo adequado, utilizamos signos linguísticos para suprir essa lacuna. Para tanto, partimos do
Celyn Kang
Dig_Art
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A poesia é uma linguagem muito mais condensada, que exige muita concentração e atenção. Você tem de ir educando a criança para aspectos lúdicos e musicais da língua, algo a que ela está naturalmente aberta. Esse contato precoce com a poesia pode despertar a sensibilidade da criança para esse sortilégio do ritmo e da música das palavras.
Depois, na mesma entrevista, Paes faz uma explanação sobre a função da poesia infantil.
Não se deve atribuir função à poesia. Ela existe e basta, como a vida existe e basta. Esse é, aliás, o encanto da poesia. É uma coisa absolutamente inútil. Tanto quanto um passarinho, uma borboleta. Mas a poesia ajuda a fruir a vida. Já se disse que o poeta deve ver o mundo como se tivesse acabado de nascer. Deve ver o mundo como uma perene novidade, entender que as coisas nunca envelhecem, o que envelheceu é o olhar sobre as coisas. As crianças entendem como mais facilidade isso, porque tudo para elas é naturalmente uma novidade.
Jo Cortez
Raridade
José Paulo Paes
A arara
é uma ave rara
pois o homem não para
de ir ao mato caçá-la
para a pôr na sala
em cima de um poleiro
onde ela fica o dia inteiro
fazendo escarcéu
porque já não pode
voar pelo céu.
E se o homem não para
de caçar arara,
hoje uma ave rara,
ou a arara some
ou então muda seu nome
para arrara.O quinto poema, “Raridade”, aborda a figura da arara, animal bem peculiar dentre outras árvores, por sua beleza, cor, sonoridade e por ser símbolo da floresta tropical. Paes explana sobre a extinção da espécie sem soar panfletário, ou seja, sem o apelo explícito e prosaico. Para tal efeito, constrói o poema com a presença frequente de assonâncias e rimas externas “arara – rara”, “Caçá-la – sala”, “poleiro – inteiro”, “escarcéu – céu”, “para – arara,” “some – nome”. Nota-se a frequência da vogal “a” para conduzir ao som emitido pela ave, pois a sílaba tônica da palavra “arara” é equivalente à longa do canto da ave.
Christina Victoria Craft
A explicação se dá pela conjunção “porque” referente ao fato de a ave ficar no poleiro “não pode voar pelo céu”. E vem a conclusão de forma gradativa marcada pela conjunção “e” – “E se o homem não para / de caçar arara, / hoje uma ave rara, / ou a arara some / ou então muda seu nome / para arrara.” Essa brincadeira com “arara” e “arrara” para denotar a raridade da ave é um processo muito produtivo de composição semelhante a construções do tipo “paitrocinío” (patrocínio do pai), “boadrasta x madrasta”, “abreijo” (abraço + beijo), “showmício” (show + comício). Em “arrara” a associação ocorre também pelo nível sonoro Arara, A rara, Arrara, que passa a simbolizar sua condição no mundo: rara.
Sharkolot
O RELÓGIO
Vinicius de Moraes
Passa, tempo, tic-tac
Tic-tac, passa, hora
Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora
Passa, tempo
Bem depressa
Não atrasa
Não demora
Que já estou
Muito cansado
Já perdi
Toda a alegria
De fazer
Meu tic-tac
Dia e noite
Noite e dia
Tic-tac
Tic-tac
Dia e noite
Noite e diaEm “O relógio” destaca-se a figura da onomatopeia para reproduzir o som do relógio. Em versos curtos e ritmados de forma alusiva ao movimento dos ponteiros – rápidos e precisos. É possível sentir as badaladas à medida que lemos o poema – efeito obtido também graças ao uso da vírgula nos quatro primeiros versos.
Dig_Art
Espera-se que essas análises tenham sido suficientes para ilustrar a importância de reconhecer os aspectos que promovem a ludicidade dos poemas infantis. Esse caráter lúdico que compõe os poemas é fundamental no que condiz ao senso de diversidade, à sensibilização e ao desenvolvimento da inteligência.
Recorda-se que quando se fala em lúdico na poesia não se reduz apenas à sonoridade, mas há também outros elementos no nível do conteúdo e das personagens que compõem o poema: o uso da figura dos animais, como visto em “O Grilo”, de Elias José e em “Raridade”, de Paes constituem a fabulação por meio da personificação dos animais. Além disso, o uso de gírias, a transformação de palavras, a correlação de fonemas, o humor, a exploração semântica, a onomatopeia, entre outros fatores, são importantes para construção do ludismo, que é um recurso basilar para o estímulo à expressão verbal, logo ao desenvolvimento do ser criança.