Sempre gostei de biografias, diários, correspondências de escritores, pintores, artistas. Suas vidas me fascinam, conhecer seus hábitos, seus instrumentos, seus recursos de criação contribuem para compreensão da obra. Também tenho predileção por romances sobre histórias que envolvem a pintura, um quadro, um pintor, falsários, histórias de certas telas quando tiveram que ser salvas e escondidas durante a II Guerra mundial como o acervo dos Rothschild. Pierre Assouline, ex-cronista do Le Monde e da Magazine Littéraire escreveu um belo romance em que a protagonista é uma tela pintada por Ingres, Le Portrait, retrato a óleo da sra. Betty Rothschild. É o próprio retrato que narra os faustos e tormentos dessa dinastia financeira das mais lendárias da Europa.
Os Goncourt escreveram as biografias dos pintores, gravadores e desenhistas do século XVIII. Um tempo de esplendor artístico que declinara e se apagara. No século XIX já não se sabia quem tinha sido um Watteau, Boucher, Greuse, Saint-Aubin, La Tour, Chardin. Os irmãos acabaram por constituir o mais completo acervo da época e restaurar a memória do grande século francês. Esse fora o século das cartas, das vinhetas, do desenho, dos primeiros retratos a óleo, da gravura e da litografia. Foi a leitura das biografias desses pintores que me fez aprofundar o conhecimento de certas telas que visitara tantas vezes no Louvre. Que prazer descobrir como vivera o pintor, quem encomendara o quadro, conhecer a recepção da obra em vida, a luta pela existência. Se ao observar um quadro não dispomos de informações suplementares, se não conhecemos a história da pintura, se nada sabemos sobre a sua época, como perceber toda a grandeza que a obra encerra? Goncourt narra humanizando o gênio, ao descortinar os bastidores do mundo da arte nos faz compreender que a obra-prima é fruto não só da genialidade, mas de obstinação para alcançar a perfeição, trabalho diário em um meio muitas vezes adverso. São as obras destes homens que viriam a constituir parte do acervo do Louvre que, hoje, o Ocidente conhece e venera.
Essa introdução para expor o que penso sobre o gênero já que muitos desdenham de sua leitura. Quanto mais rica a obra e mais plena a vida, mais interesse tem uma biografia. São seres extraordinários cuja obra embeleza e eleva a natureza humana. Pois é do homem que se trata.
Descobri a AUTOB/I/OGRAFIA de Solha na página do Face da escritora Marilia Arnaud, sua apresentação logo me seduziu. Fiquei interessada em conhecer esse autor e ele gentilmente me enviou um exemplar. Vi que ele falava sobre seu começo profissional em Pombal, Sertão da Paraíba. Isso coincidia com as minhas origens, Pombal foi onde nasceu meu pai. O autor originário de Sorocaba, São Paulo, nos seus vinte anos fora assumir um cargo numa agência do Banco do Brasil em Pombal.
Solha pauta a história-de-sua vida de um jeito cativante, de modo que comecei a ler e não o larguei até terminar. O autor constrói sua memória pontuando suas atividades artísticas que são tão variadas, que logo me fez pensar no homem renascentista que se consagrava a vários tipos de arte. O tempo de Solha parece ser outro, diferenciado daquele do homem moderno que mal dá conta de executar uma única tarefa. O tempo do artista me intriga. Pinta grande telas, painéis Homenagem a Shakespeare, retratos a óleo, escreve poemas, romances, roteiros, peças de teatro, letras para réquiem, e ainda há tempo para viver papeis como ator em alguns filmes. Tudo isso lhe valendo prêmios valiosos e reconhecimento nacional. Como foi o prêmio Fernando Chinaglia para o seu 1º romance, Israel Rêmora publicado pela Record. Seu longo poema Trigal com corvos ganhou o prêmio João Cabral de Melo Neto da UBE/União Brasileira de Escritores, Rio 2005 foi também um dos cinco finalistas de poesia do prêmio Jabuti em 2020, sua História Universal da Angústia foi finalista do Jabuti de 2006, prêmio Graciliano Ramos, Rio, 2006. E não menos importante, melhor ator coadjuvante em alguns filmes.
Israel Rêmora, livro de WJ Solha que recebeu o prêmio nacional "Fernando Chinaglia"/Carta de José Américo ao autor Acervo pessoal
Paulista de Sorocaba acaba por se radicar na Paraíba, chegara com seus vinte anos, hoje com oitenta anos. Fez dela o palco da sua extensa e diversificada obra. Embora a Wikipedia não o classifique como poeta paraibano já que não nasceu lá, me pergunto o quanto um lugar contribui para uma atividade artística se desenvolver e amadurecer a despeito da falta de recursos.
Seus relatos não seguem uma cronologia linear com início meio e fim, eles valsam conforme a lembrança, mas são suas atividades artísticas que o nortearão. De modo que o leitor segue um vai e vem no tempo de forma natural. Ora, em Pombal, quando fez seu primeiro filme O salário da morte, ora em João Pessoa a partir dos anos 1970 quando passa a residir ali. Em 2013 fez o papel de um coronel em Um som ao redor, filme de Kleber Mendonça, que valeu uma observação do poeta Affonso Romano de Santanna:
“Você estava magnífico fazendo o seu antípoda. Você romancista, teatrólogo, pintor, e o diabo a quatro, que tem olhar crítico sobre o Brasil e Nordeste, ali, representando o seu contrário.”
Affonso também faria a apresentação do seu primeiro longo poema Trigal com corvos e ao ler o seu romance A verdadeira história de Jesus chegou a indicá-lo para uma editora francesa, a Stock, que não o publicou por achar que o assunto não interessaria aos franceses. É em Sorocaba que vive quando ali começa seu curso de pintura, a lembrança de seu primeiro alumbramento com a arte se dá quando seu pai o presenteia com o livro “Primeiro encontro com a arte” da Melhoramentos e ele se depara com o autorretrato de Rembrandt, cuja tela pertencia ao MASP. (sua autoria seria posteriormente desautorizada) É com graça e estilo que o autor rememora sobre sua rica vida ativa. Sua atividade artística é fruto da uma vasta cultura e de grande inquietação intelectual.
“A história da arte me ensinou tudo que sei sobre a Arte da História”, diz Solha. Solha também faz reflexões sobre suas leituras, suas visitas a museus, detém-se diante das obras de arte e examina-as. Não deixa de refletir sobre as artes e filosofias que dominaram o século XX e nortearam comportamentos, a evolução da ciência, como quem tenta abarcar o tempo de sua existência expondo sua visão de mundo. Sua leitura da Bíblia é matéria de reflexão e de criação literária.
É do seu “eu intelectual” que o leitor se aproxima mais. Um quadro amplo do Brasil remoto até os dias de hoje perpassa seus relatos quando se detém nas lembranças de menino, a vida em Sorocaba com seus pais e irmãos. Que fôlego!
Waldemar José Solha Acervo pessoal
Um pequeno detalhe faz sua história se mesclar à minha quando conta sobre um primo do meu pai Dr. Atêncio Wanderlei também médico, residente em Pombal com quem ele tece uma longa amizade e com cuja sobrinha, Ione, ele se casa.
Suas perdas são narradas de forma comovente e sóbria. Os perrengues da vida com graça, e leveza. É com humor que relata episódios de sua vida. Diz que tem poucos leitores, e que escreve para melhor se conhecer.
Resta ao leitor (a), como eu, procurar ler seus romances e poemas.
O livro "Autob/i/ografia", de WJ Solha, está disponível em formato impressoal\ na Arribaçã e em formato Kindle na Amazon