O que Cristo escrevia? As pessoas em redor, em grande burburinho, agitadas, com pedras na mão, apontavam para uma pobre mulher, acusa...

O que Cristo escrevia?

mulher adultera jesus evangelho
O que Cristo escrevia? As pessoas em redor, em grande burburinho, agitadas, com pedras na mão, apontavam para uma pobre mulher, acusada de adultério, caída, coberta pelo opróbrio, e Jesus Cristo, demonstrando uma tranquilidade que não se coadunava com o momento, escrevia na areia. O que ele escrevia? Não se sabe. Ninguém sabe. Não restou uma frase, uma palavra. Não restou uma letra sequer. Por que em momento tão grave,
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Mazzucchelli, S.XVII
Jesus decidiu escrever na areia? Por que não fez um discurso veemente? Por que não escreveu um libelo? Qual seria a importância de escrever alguma coisa que se julgasse relevante para o momento?

São muitas as perguntas, mas nenhuma resposta. Ao menos, respostas óbvias. O evangelista João, no entanto, deixa nas entrelinhas qual o significado de toda aquela cena. Dos quatro evangelistas, João é o que vai ao âmago da palavra de Jesus, tornando-o substancial, substantivo — Pão da vida, Pão que desceu do Céu, Pão vivo, Luz do mundo, Água viva, Porta das ovelhas, Belo Pastor, a Ressurreição e a Vida, Mestre e Senhor, o Caminho, a Verdade e a Vida, Vinha Verdadeira —, principalmente como ser absoluto: Eu Sou.

João sabia e sentia, como o mais amado por Jesus, que nada que se escrevesse naquele instante teria tanta importância, quanto uma atitude tomada, com o sentido de questionar o ato brutal, que estava para se perpetrar. Tanto é que João é o único a apresentar o episódio da mulher acusada de adultério (8: 1-11).

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Mironov, 2011
Escrever impassivelmente na areia, enquanto o clima fervia entre as pessoas que cercava a mulher acusada, leva os Fariseus a tentar comprometer Jesus Cristo, como fizeram outras vezes, com relação ao cumprimento da lei mosaica. Não contavam eles que Jesus não veio para desobedecer a lei, mas para cumpri-la, ainda que parecesse aos olhos e à compreensão limitada dos que seguem a lei, sem qualquer reflexão ou espírito crítico, que ele a estava descumprindo.

Sem sabermos o que escrevia, Jesus, mais do que interrogado para dar um parecer, foi inquirido, para ser igualmente acusado, e devolve a pergunta com um gesto simples e com palavras audíveis e compreensíveis,
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Polenov, 1886
mesmo para uma horda de brutos, que estão instigando e sendo instigados ao apedrejamento da mulher acusada, apedrejamento até a morte como manda a lei, o que atiça ainda mais a sanha dos acusadores, de dedo em riste: “Aquele de vós que não tiver pecados, que atire a primeira pedra”.

As pedras, que deveriam ser lançadas para a morte da acusada, pesaram nas mãos dos acusadores e foram caindo uma a uma, assim como foram se dispersando e desaparecendo os que estavam prestes a apedrejá-la. Quanta pesaria uma pedra, apanhada a esmo, ali no caminho? Duzentos gramas? Trezentos? Qual seria o peso necessário de uma pedra, suficiente a infligir a dor e a matar alguém? Também não importa, porque não foi o peso ou a massa da pedra que a fizeram deslizar das mãos e cair na terra, em lugar de atingir o corpo da mulher. Foi a gravidade. Não a gravidade como lei física universal, mas a gravidade das palavras lançadas por Jesus à multidão, que, embora poucas e simples, pesaram e feriram mais do que a pedra mineral, instrumento de punição legal.

A gravidade das palavras de Jesus reverberou na carne e, muito mais, no espírito de cada um dos presentes, prontos a promover a morte. Suas palavras apenas faladas tiveram o condão de fazer cada um remover o seu
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Polenov, 1886
dedo apontado contra a acusada, direcionando-o contra si próprio. Nesse momento, Jesus planta no seio de cada um a dúvida com relação à lei e a si mesmo. É o momento em que a morte, que precisa do suporte da lei cega, é vencida pela Vida, que exige reflexão. Quantos daqueles que ali se encontravam viram a mulher adulterar? Os escribas e os fariseus a trouxeram, e a acusaram de ter sido apanhada em adultério, jogando-a por terra, como se nada fosse, como se fosse uma coisa. Quem a denunciara, para que o flagrante acontecesse, o marido dela? A mulher do homem que com ela adulterou? Foi-lhe dado algum direito de defesa ou o simples fato de acusar era suficiente para que a pena fosse imposta e a multidão tivesse o direito de acusá-la, julgá-la e condená-la sumariamente, porque se encontrava previsto na lei mosaica?

Quando se evoca a lei sem o direito de defesa e sem a reflexão necessária sobre o caso exposto, contando com o apoio de uma multidão que quer vingança, o resultado é a lapidação pública, real ou metafórica. Ninguém presente contestou a lei, lei dos homens, vendo-a como um contrassenso com a Lei de Deus. Bastou a razão da autoridade chegar, puxando a mulher, jogá-la por terra e acusá-la de adúltera, para que todos se vissem imbuídos do direito de condená-la e matá-la.
Nem o Estado tem o direito de se vingar, cabe-lhe punir, mas sem se ater a uma visão limitada da lei, porque as leis caducam, e deve haver reflexão e juízo crítico que levem à sua mudança.
Se a Lei Divina diz que não se deve desejar a mulher do próximo — o que deve se aplicar para o homem do próximo —, jamais se refere que a punição para o caso seja a morte. A mesma Lei Divina interdita matar, sem que seja para uma legítima defesa. É o que diz o “Não matarás” do Decálogo, cujo sentido é “Não assassinarás”. A pena que se queria aplicar à mulher expressa a contradição entre o que Deus determina e o que os homens dizem.

Jesus, com a sua placidez, com as poucas palavras pronunciadas, demonstrou a que veio: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham mais abundantemente”, conforme se encontra em João, no belíssimo Capítulo 10, que trata do Belo Pastor. Ao dar o benefício da dúvida à mulher acusada, Jesus semeia a reflexão em cada um dos corações dos que desejavam matá-la. Vida, e não morte, é o que se deve procurar; perdão e não vingança. Nem o Estado tem o direito de se vingar, cabe-lhe punir, mas sem se ater a uma visão limitada da lei, porque as leis caducam, e deve haver reflexão e juízo crítico que levem à sua mudança,
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Signol, 1840
desde que seja para o benefício de todos, não de um grupo, não de alguns, não com o intuito de vingança.

Dispersa a multidão, Jesus demonstra que nada é mais forte do que a capacidade de perdoar: “Vai e não peques mais”, diz ele à mulher. Os erros são para que aprendamos com eles, não para que permaneçamos neles. Novamente, com simples palavras, Jesus dá à mulher acusada e vilipendiada publicamente, a oportunidade de ressuscitar em vida, de ter uma nova vida. De escrever uma nova história para a sua vida. Se não podemos consertar o passado, podemos dar outro final ao nosso futuro, com a segunda chance que nos for concedida.

O que escrevia Jesus? Não, não há como saber, mesmo porque o que foi escrito na areia não resistiu por muito tempo. Com o dispersar da multidão, tudo foi apagado. Mas ficaram as Suas palavras, para toda a eternidade, como prova do perdão e do amor, prova, sobretudo, de que, como diz Paulo, “A letra mata, mas o espírito vivifica” (τὸ γὰρ γράμμα ἀποκτείνει, τὸ δὲ πνεῦμα ζωοποιεῖ, 2 Coríntios, 3, 6).

Quem se diz capaz de amar, deve ser capaz de perdoar.

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  1. Anônimo6/4/24 07:13

    Bravíssimo, Milton, em todos os sentidos. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Mestre Milton, acredite, você explicou essa passagem melhor e com maior clareza do que alguns teólogos. Vou colocar em nossos grupos de relacionamento na Igreja. Quando oportuno, em homilia, usarei estes seus argumentos. Abraço do seu amigo José Nunes.

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  3. Anônimo6/4/24 12:28

    Belo texto. Primorosamente redigido. Redundâncias quando o autor é quem é. Congratulações!
    Por outro lado, permita-me, é necessário saber se lido de um púlpito ou de uma tribuna. Se do primeiro, nada mais apropriado. Se do segundo já não haveria tanta clareza.

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  4. Padre Marcondes Meneses6/4/24 15:03

    Parabéns pelo profundo e excelente texto

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