A edição centenária especial da obra mais importante de José Américo de Almeida, A Paraíba e Seus Problemas, é algo que os antigos chamariam de “oportunosa ensancha” para repor no lugar correto da memória literária brasileira um dos mais depreciados de seus pilares.
O grande escritor e pensador católico sergipano Jackson de Figueiredo encontrou, há 94 anos, razões de sobra para fundamentar a afirmação que pode ser confundida com jactância na abertura deste texto. Ao apoiar outro católico ilustre, o carioca Alceu Amoroso Lima, em texto assinado com o pseudônimo conhecido de Tristão de Athayde, Jackson apoiou-se na entusiástica recepção
um dos melhores, um dos mais bem documentados livros que já publicou brasileiro sobre a terra nordestina, vasto ensaio em que pela primeira vez (um pouco desordenadamente, com muita inteligência e liberdade de espírito, ressaltam de uma publicação mais ou menos oficial, penso eu) afora o mais que contém de geografia, de fisiografia, de geografia histórica, os traços mais característicos da geografia humana do Nordeste, isto é, da mais misteriosa das fisionomias coletivas, que perfazem o Brasil. E será nesta obra do observador, do pensador, do estudioso, que encontrarão os seus críticos a explicação da personalidade, realmente, à primeira vista, desnorteante, desse nortista silencioso e obscuro, sem ligações conhecidas com o que se agita de mais vivo em nossa paisagem cultural, e que, mal se apresenta, em toda a fúlgida nudez de sua alma, exige, impõe, por assim dizer, que se lhe rendam as homenagens devidas unicamente aos que encarnam qualquer coisa de essencial à nossa vida, no que esta já tem de verdadeiramente caracterizado.
Assim continua o sergipano, que li na edição da União Editora, do governo paraibano, com 725 páginas, lançada em março de 1980 (ano em que o autor completou 93 anos e deixou a Paraíba órfã), por iniciativa de Giselda Navarro Dutra, secretária de Educação e Cultura, e de José Octávio de Arruda Mello, então diretor-geral de Cultura no governo de Tarcísio Burity.
PARA JOSÉ HONÓRIO, UM LIVRO EXEMPLAR
Na mesma edição comemorativa, a introdução da lavra do grande historiador carioca, mas que preferia ser caracterizado apenas como brasileiro, José Honório Rodrigues resgatou várias tentativas similares desse gênero literário pouco praticado, e exaltou a presença de nosso pobre e pequeno estado natal. O título de introdução que ele assinou é consagrador: um livro exemplar.
E começou seu texto lembrando a notável contribuição para a historiografia estadual de muito boa qualidade com exemplos das obras de João Francisco Lisboa sobre o Maranhão, Tristão de Alencar Araripe sobre o Ceará, Pizarro
José Honório Rodrigues ▪ Fonte: Arq. Nacional
Este é um livro exemplar pela amplitude da pesquisa, pela correção metodológica, pela capacidade crítica, pela informação bibliográfica, pelo uso das fontes, até mesmo de relatórios de presidentes de províncias e discursos no Parlamento – o que não era usual na sua época –; pela elaboração do plano, sistemático, ordenado, orgânico e pelo resultado obtido, frutífero, cheio de originalidade e novidades, não só fatuais, mas sobretudo interpretativas.
Conforme José Honório também,
como se vê, uma unidade orgânica perfeita que começa com o estudo da terra, da sua fisionomia, passa pelo clima, que é importante na região, examina os acidentes, as secas, conta a história política e administrativa, estuda as distâncias e a questão da água que liga à seca, caracteriza o povo, e analisa a estrutura econômica.
Crianças vítimas da grande seca de 1877/1878 ▪ Fonte: Wikimedia, domínio público
TITÃ CONTRA A FOME EXALTA JOSÉ AMÉRICO
Mas o líder desse grupo não foi o único titã da sociologia brasileira a usar seu prestígio internacional para enaltecer o clássico do estudo estadual no mundo inteiro, que o acolheu como grande, talvez o maior de todos, estudioso da fome. A obra maior desse gênio pernambucano, Geografia da Fome, foi dedicada a “Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, romancistas da fome no Brasil”,
Josué de Castro teve de sair do Brasil para se consagrar pela abordagem de seu conhecimento da maior tragédia brasileira, a da fome nacional, digamos até federal, tratada em partes no livro acima citado pelo desprezo dos homens públicos e mesmo da elite letrada pelo sofrimento agônico de uma população submetida ao flagelo do clima hostil do maior semiárido do mundo.
Habituado à discriminação pela origem da naturalidade, agravada pelos preconceitos racial e social, esse fanático pela leitura das obras capitais para a literatura brasileira, e não apenas regional, encontrou nas citações dos textos apropriadamente escolhidos pelos apresentadores da edição que me propiciou o acesso à obra do grande mestre o pretexto para enfrentar esses óbices. Já na 2ª edição do compêndio, 14 anos após a primeira e publicada no ano em que o autor foi covardemente golpeado,
Obra amplamente documentada, elaborada com amor por um homem que observa e que pensa, e por isso conhece admiravelmente a sua terra e a sua gente, A Paraíba e Seus Problemas constitui o primeiro estudo sólido, de conjunto, sobre a estrutura física e cultural desta região do Brasil, ainda tão mal conhecida cientificamente. Ademais, por suas diretrizes científicas, pelos processos de indagação utilizados e pelas tentativas de interpretação de certos fenômenos nitidamente regionais, este livro veio abrir horizontes novos à Geografia Humana entre nós, inaugurando o método profícuo dos estudos monográficos, tão de gosto de geógrafos da envergadura de um Jean Brunhes, de um Pierre Deffontaines.
O FRÁGIL GUARDA-COSTAS DE JOÃO PESSOA
Com um pedido de desculpas pelo abuso das citações de gigantes das ciências sociais e da crítica literária, sente-se este articulista nutrido o suficiente para apresentar a seu paciente leitor que essas frases consagradoras, e não apenas gentis, devem conduzir, nessa leitura impregnada de ousadia, a caminhos ásperos que nos levam a novos destinos. A Bagaceira, romance merecedor da recepção entusiástica do grande Tristão de Athayde, saiu do prelo em 28 de fevereiro de 1928.
O tempo exigido de Jacó para conviver com a amada bela serrana Raquel separou José Américo do lançamento deste tratado de estreia: de 1923 a 1930. E, dois anos depois da consagração do romancista, este teve interrompida sua trajetória de ficcionista pela participação na Revolução de 1930 na condição de secretário e homem de confiança de João Pessoa, que, assassinado por uma rixa provinciana, foi derrotado na eleição presidencial que disputou como vice de Getúlio Vargas, tornando-se uma espécie de cadáver de herói itinerante, que permitiu o sucesso da derrubada da República Velha e a retirada de cena do ocupante da xícara do café com leite, um paulista nascido em Macaé, no estado do Rio, Washington Luís Pereira de Souza.
Novembro/1930: Getulio Vargas alguns de seus ministros no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, após a Revolução de 1930: Isaias Noronha, José Américo, Afrânio de Melo, Getúlio Vargas, Assis Brasil, Francisco Campos, Lindolfo Collor e José Fernandes ▪ Fonte: Biblioteca Nacional.
Casa de José Américo, Praia do Cabo Branco, Parahyba do Norte ▪ Fonte: FCJA
Eu, quase cego, desarmado e inepto para qualquer desforço físico, passei a noite inteira sentado numa cadeira de palha, à porta do quarto do chefe, para impedir um eventual atentado contra o chefe do Executivo Estadual numa casa apinhada de capangas armados até os dentes.
E comandava a gargalhada geral.
EPITÁCIO PESSOA E A AÇUDAGEM CONTRA A SECA
O nada temível guarda-costas já era, então, o autor da maior defesa que o presidente Epitácio, tio e patrono de João Pessoa, obteve de sua célebre política da açudagem (construção de açudes na política de obras contra as secas). Presidente da República por acaso, justamente na celebração do centenário da Independência, o chefe político paraibano, magistrado de carreira, servia na Corte de Haia quando foi chamado às pressas para voltar ao Brasil para resolver uma questão ainda mais intrincada do que a incapacidade do guarda-costas do sobrinho na casa do coronel inimigo. Reeleito presidente da República, o paulista Rodrigues Alves morrera subitamente e foi substituído pelo vice mineiro, Delfim Moreira; com evidentes sinais de debilidade mental, este fora substituído informalmente pelo ministro também mineiro Virgílio de Mello Franco, pai de Affonso Arinos de Mello Franco, que conviveria anos depois com o paraibano na Academia Brasileira de Letras (IBL) e contaria tudo em seu livraço de memórias A Alma do Tempo.
Eleito e empossado, Epitácio Pessoa, um grande intelectual como os dois acima citados, fez um governo que mereceu, em A Paraíba e Seus Problemas, aqui comentado, a definição de Redenção, denominação do palácio do governo paraibano, onde nasceu Ariano Suassuna, filho do maior inimigo dos Pessoa, o também João dessas cenas trágicas. Em tempo hábil voltaremos a essa particularidade desse livro, para não levar o leitor a perder-se no novelo e perder a vontade de continuar a leitura.
Agora é hora de prosseguir na saga, não da redenção do sertão seco, mas da desgraceira generalizada de um semiárido fustigado pelo sol e pelo coronelismo. Animado pelos textos de Jackson de Figueiredo, Josué de Castro e José Honório Rodrigues, cheguei ao momento de situar
Canudos, Bahia, 1897 Flávio de Barros, Museu da República
Militar republicano, o genial fluminense de Cantagalo, que se consagrou como repórter de um jornal paulistano, O Estado de S. Paulo, cobrindo a tragédia dos pobres desvalidos numa República sedenta de sangue monarquista, escreveu uma obra-prima inquestionável e que jamais seria diminuída por um leitor fanático de seu texto fantástico. Nem mesmo o injusto esquecimento do clássico de José Américo poderia justificar isso. Não obstante, o fato de não estar à altura, como literatura e interesse nacional, do clássico em questão, publicado 21 anos antes, tempo suficiente para o amadurecimento até para imberbes,
Não há sinais de que o autor do livro aqui citado tenha sequer lido, embora não haja indícios de que não o tenha feito. Pois há judiciosa e farta citação de Euclides no volumoso ensaio, só que de outro livro, também relevante, mas não tanto quando o relato de Canudos. Não pode ter sido por inveja ou submissão, pois, afinal, Contrastes e Confrontos, outra obra de altíssimo valor de Euclides, ofereceu muitas citações a este livro. Publicado cinco anos depois de Os Sertões, e 16 antes de vir a lume o clássico paraibano, a presença testemunha o conhecimento e o respeito do segundo pelo primeiro.
O SERTÃO RUMOU PARA O BREJO
Essa afirmação animou este resenhista a lembrar que basta dar a este livro centenário o mérito que ele deveria ter pelo simples fato de ter como tema o sertão – e não os sertões, cenário da genial epopeia euclidiana. Embora já tenha merecido cada milímetro do quilométrico mérito literário de sua prosa, o primeiro ainda tem muito a revelar sobre o absurdo dos militares republicanos, que cometeram genocídio óbvio contra flagelados foragidos da seca, da miséria e da fome consequente, atirando-se nos braços de um beato, figura muito presente em todos os sertões.
Canudos, Bahia, 1897 Flávio de Barros, Museu da República
Euclides da Cunha
José Américo, como ele mesmo narrou no livro aqui republicado e homenageado, foi promotor em Sousa, urbe que, mesmo plantada em pleno semiárido, foi beneficiada pela açudagem de Epitácio Pessoa, com Pilões, São Gonçalo e, ali perto, Coremas e Mãe d’Água.
José Américo de Almeida
Registrou, por exemplo, notícia trágica e chocante publicada no periódico O Publicador:
A 27 de março próximo findo a retirante Dyonísia dos Anjos encontrou na casa de mercado da cidade de Pombal a menor Maria de 5 anos de idade, levou-a com o maior carinho para sua casa, próxima ao cemitério; ahi chegando, decapitou a mesma menor, enterrou a cabeça e comeu a carne do corpo de sua victima. Presa, Dyionísia confessou este horroroso crime. Está sendo processada pelas autoridades daquella cidade.
O choque e o nojo da cena entraram neste relato como uma das diferenças capitais entre a experiência que levou José Américo de Almeida a escrever o relato sobre a tragédia da seca no maior semiárido do mundo, por ele testemunhado ou lido, e o massacre também horrendo dos miseráveis sertanejos pelo Exército brasileiro, denunciado por Euclides nos sertões do interior baiano.
Este flagrou o morticínio de sertanejos miseráveis por um bando fardado, mas desorganizado, de soldados incompetentes, cujos comandantes covardes, cruéis e ineptos traíram o imperador e inauguraram uma sequência absurda de ditaduras forjadas a golpes, praticando barbaridades numa república indigna da própria denominação. José Américo chorou em sua belíssima prosa, anunciada sobre cadáveres de bebês de retirantes famintos, a cujos assassinos não restava opção para matar a própria fome.
Estado da Paraíba, no início do século XX ▪ Wikimedia, domínio público.
Continua na Parte 2. Em breve...