Na sua Vida dos Césares , Suetônio fala de doze homens notáveis, pois o “eu” que interessava na Antiguidade Clássic...

Sobre a escrita autobiográfica em Manoel Camilo dos Santos

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Na sua Vida dos Césares, Suetônio fala de doze homens notáveis, pois o “eu” que interessava na Antiguidade Clássica não era o de um indivíduo qualquer. Este não tinha uma história pessoal que merecesse narração. A literatura de memórias e de confissões liga-se historicamente às classes superiores, centrando-se quer nos feitos heroicos, quer na atuação pública. Philippe Lejeune, por seu turno, acentua a

“correlação entre o desenvolvimento da literatura autobiográfica e a ascensão de uma nova classe dominante, a burguesia, da mesma maneira que o gênero literário das memórias esteve legado ao sistema feudal” (LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris, Seuil, 1975, p. 76).
. Philippe Lejeune Mathieu Zazzo
A inclusão do homem comum na autoria de textos autobiográficos correspondeu à ascensão da classe média no cenário da História. Rousseau iniciou o percurso, procurando destacar o valor de cada indivíduo, sua importância por ser quem é. Não se tratava mais de acentuar o mérito individual em função de casta, classe, ou de um fundo transcendente – mas como efeito de sua configuração pessoal. “Se eu não valho mais, pelo menos sou outro” – escreve Rousseau nas Confissões, sugerindo a valorização do indivíduo pelo que ele tem de único em relação ao grupo. Esse modo de ver contrastava com o que ocorria na Antiguidade, em que a grandeza de alguém residia em corporificar os ideais da pólis.

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Cabe então a pergunta: qual o significado, qual o efeito e qual a novidade, para o estudo do gênero autobiográfico, do relato da própria vida feito por um poeta popular? Importa isso em consequências que influam na sua caracterização? Esse tipo de autobiografia importa à caracterização do gênero, primeiro, por ser de um poeta popular. Há nesse dado um elemento que enriquece o debate sobre os textos confessionais de modo geral. O impulso de contar a sua história na “Autobiografia do poeta” (João Pessoa: Editora Universitária /UFPb, 1979. 180 p.) vem do fato de ser alguém destacado, vate e intérprete das aspirações e das reações do povo. Ele possui algum tipo de mérito, alguma particularidade distintiva que torna sua história digna de registro.

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O poeta em nenhum momento esquece suas origens sociais humildes, às quais contrapõe as qualidades morais, que a seu ver efetivamente contam. Em mais de uma parte do texto observa-se o autoelogio, o gabo às virtudes éticas bem como à perícia artística – motivo de orgulho e principal fator da sua diferença. É sintomático que ele feche a autobiografia com um texto em prosa intitulado “Com referência a minha humildade” (p. 177), no qual alinha as suas virtudes em confronto com as nódoas da sociedade:

“Tenho grande defeito para a ‘sociedade’ que é não compartilhar com o vício , com a falça (sic) lisonja e com tudo que se faz oposto ao meu caráter probo e irrepreensível (modéstia a parte)...”. (Ibidem)

É preciso entender a autoatribuição de grandeza como uma tentativa de harmonizar, na consciência do poeta, a postura moral com a dotação artística. Procedendo assim, ele consubstancia valores que são os da sua classe e os do seu mundo, afirmando uma diferença que, ao mesmo tempo, constitui-se em argumento abonador da sua arte. O poeta tem grande preocupação com a totalidade ética da sua pessoa. Seu comportamento moral é quase sempre invocado nas pelejas e cantorias, e como que “se transmuta” em argumento estético.

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Considerando-se a autobiografia como texto, organização linguística, é importante estabelecer como nela se revela a identidade do autor/personagem. Quanto a esse ponto, é importante destacar que:

“tudo que o autobiógrafo realiza, quando cria a estrutura de sua obra (suas escolhas conscientes, inconscientes, e mesmo convencionais), pode ser visto por seu público como fazendo parte de sua identidade” (BRUSS, Elisabeth. L’autobiographie considérée comme acte littéraire. Poétique, 17:14-26, 1974, p.86).

Com efeito, a identidade do poeta não se manifesta apenas no corpus narrativo ou nas crônicas com que ele pontua a narração; disso emerge apenas o lembrado, o escolhido voluntariamente, o consciente. São também elementos semânticos, significativos, os agradecimentos aos seus “grandes amigos e benfeitores”, pessoas ligadas ao mundo intelectual e cultural sobretudo de Campina Grande; a mensagem
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destinada em acróstico à Dra. Isolda Bezerra de Carvalho; e todos os recursos que acabam refletindo as relações do poeta com estratos sociais diversos do seu. Importam sobretudo as suas relações com pessoas de outro nível intelectual. Em função delas tornou-se possível, por exemplo, a publicação da autobiografia pela UFPB, o que concorreu para ampliar o circuito comunicativo do texto popular. Essas pessoas estavam conscientes de que o livro se constituiria num importante subsídio para o estudo das relações entre a literatura popular e a erudita, o universo do cordel e a academia, o leitor comum e a crítica literária. Os vários depoimentos que se agregam ao texto, apresentados em cartas e versos de homenagem, concorrem para traçar um perfil global do poeta. Sendo juízos referendados pelo autobiografado, reforçam a pintura que ele faz de si mesmo.

Tendo isso em vista, manda o rigor da caracterização que se considere o relato de Manoel Camilo dos Santos menos uma autobiografia do que um autorretrato – assunto que pede um texto autônomo e de que tratarei na próxima semana.

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