Há músicas populares que, apesar da melodia encantadora, pecam, na letra, por deslizes gramaticais ou semânticos que destoam, em parte, de sua beleza.
A música Canção da Criança, de Francisco Alves, da década de 50, e divulgada também pelo palhaço Carequinha, diz, em certa parte:
A música Canção da Criança, de Francisco Alves, da década de 50, e divulgada também pelo palhaço Carequinha, diz, em certa parte:
"Crianças com alegria
qual um bando de andorinhas
viram Jesus que dizia:
‘Vinde a mim as criancinhas’".
Além de Jesus nunca ter falado em “criancinhas”, há um erro sintático que compromete a beleza da letra. Em “Vinde a mim as criancinhas”, o verbo está no imperativo (o sujeito é “vós”, e não “as criancinhas”, que aí está como vocativo, indevidamente articulado). No vocativo, em português, não existe artigo. A frase deveria ser: “Venham a mim as criancinhas” (sujeito: as criancinhas), ou “Vinde a mim, criancinhas” (sujeito vós, e vocativo sem artigo). Aliás, a frase de Jesus, lembrada erroneamente na canção, é a seguinte, segundo se lê em Mt.10.14: “Deixai vir a mim os pequeninos.”
A valsinha Mamãe, de David Nasser e Herivelto Martins, divulgada por Ângela Maria e Agnaldo Timóteo e por Toquinho, entre outros, começa com elogios à mãe (rainha do lar,
"Mamãe, mamãe, mamãe
eu te lembro o chinelo na mão,
o avental todo sujo de ovo
se eu pudesse eu queria, outra vez, mamãe;
começar tudo tudo de novo."
Certamente esse amor filial deve ter algo de masoquismo. A “rainha do lar”, “feita de amor e esperança”, bate no filho com chineladas e, em vez de dedicar-se a ele, passa a vida na cozinha a sujar de ovo o avental, sem tempo para ser “feita de amor”... Não sou poeta, mas talvez fosse melhor cantar assim essa última parte da valsinha:
“Mamãe, mamãe, mamãe,
eu te lembro com amor e afeição,
ao lembrar-me de ti me comovo,
se eu pudesse eu iria outra vez, mamãe,
começar tudo tudo de novo."
GD'Art
A letra de O Velhinho, ou Papai Noel, de Octávio Babo Filho, divulgada por muitos, com sucesso (versão xote com Domiguinhos), diz assim, na parte final:
“Como é que o bom Velhinho
não se esquece de ninguém?
Seja rico ou seja pobre
o Velhinho sempre vem.”
O autor da letra queria dizer que o Velhinho não se esquece do pobre nem do rico, mas o que a letra diz é que o Velhinho, seja pobre, seja rico, não se esquece de ninguém. Se invertermos um pouco os termos do final dessa letra, veremos que o rico e o pobre aí se referem ao Velhinho, e não ao possível objeto de sua “lembrança”: “O Velhinho, seja rico, seja pobre, não se esquece de ninguém.” O texto deveria significar: “Para o rico e para o pobre / o Velhinho sempre vem.”
GD'Art
De qualquer forma, com deslizes ou sem deslizes, essas músicas populares já conquistaram a população brasileira há várias gerações. Mexer na letra é apagar, de certa forma, a tradição já enraizada no nosso folclore...