Em meio a toda essa vasta e complexa Humanidade existe um tipo de indivíduo cuja predominante característica existencial é o despojamento das coisas materiais. De tal despojamento — posto que fator primordial — derivam outros traços, daí que sejam também dotados de — generosidade, solidariedade e simplicidade extraordinárias, e que sejam poupados dos defeitos de inveja, avareza ou cobiça. O seu arquétipo é, sem dúvida, São Francisco de Assis, o notável santo italiano que abandonou suas raízes ilustres e renunciou às riquezas para livremente servir à coletividade.
S. Francisco de Assis Neri Di Bicci
Aqui e acolá podemos identificar um desses tipos "franciscanos", possuidores em maior ou menor grau destas citadas características, se bem que com certa raridade, parecendo que o Criador os distribui mui criteriosamente — em ''doses homeopáticas", podemos dizer — para que sua presença sirva de alento e lenitivo aos demais, certamente mais apegados à matéria e à posse. Todavia, a generosidade e solidariedade desses seres não impedem que sejam justos, honestos ou combativos, assim como a sua simplicidade não significa que sejam simplórios. É de se destacar, ademais, que, longe de se refugiar em mosteiros ou congêneres, tais indivíduos costumam aceitar e — importante — amar a condição humana com todas suas grandezas e misérias, participando ativamente da vida social, no que dão vazão às suas qualidades em proveito do cotidiano de seus semelhantes. Vale lembrar que São Francisco de Assis atuou intensamente junto à sociedade italiana de sua época e se destacou pela ajuda aos necessitados e pela defesa de uma igreja católica mais participante e menos próxima do poder e dos poderosos.
Francisco Espínola Acervo de família
Bem recentemente morreu Francisco Espínola, que em sua relativamente longa existência destacou-se publicamente, no Estado da Paraíba, como respeitável magistrado e emérito professor de Ciências Jurídicas, na cátedra de Direito Penal. Os que o conheceram mais de perto puderam também aquilatar o pai de família exemplar, o amigo prestimoso, e o cidadão preocupado com as desigualdades sociais, sempre pronto a ajudar os mais desamparados. Profissionalmente, chegou aos píncaros de sua carreira com o mesmo jeito simples de ser que possuía quando, no início, perambulava pelas comarcas sertanejas, como juiz. Há mesmo um consenso sobre a sua reputação ilibada como juiz ou desembargador, e não foram poucas as referências de que se constituíam em uma das "reservas morais" da comunidade paraibana.
Pois bem, para mim Francisco Espínola, ou simplesmente "Chico" para os íntimos, foi um autêntico "franciscano" ' desses "de carteirinha e sandálias de couro" (como poderia ter dito Nelson Rodrigues) e nunca o nome "francisco" foi tão apropriado! No meu entender, essa é a condição chave para compreender sua atuação existencial, conforme tentarei demonstrar em seguida.
Geraldo Joffily TRE-DF
Assim é que em sua juventude foi ele provavelmente o precursor, o primeiro teórico do marxismo na Paraíba, no respeitável testemunho do inesquecível Geraldo Joffily. Ora, o marxismo prega a igualdade econômica entre os indivíduos e, em última forma, a eliminação da propriedade individual, no que se aproxima ou mesmo se identifica com a filosofia franciscana! É verdade que o nosso personagem não chegou à militância no Partido Comunista, pois logo veio o ingresso na magistratura e a precoce união com a sua Nair, formando prole mais do que generosa: oito filhos! Mesmo assim, ficaram alguns "cacoetes" dessa crença filosófica, como a distribuição de donativos ou de "empréstimos" (que jamais seriam pagos) ou o hábito de pagar as suas contas em bares ou locais públicos de natureza modesta sempre indo mais além das despesas efetuadas (que o digam os garçons e os taxistas). Essas suas ações — de "informal distribuição de renda" , como diriam os economistas — eram feitas sempre na maior discrição, como, aliás, tudo o mais que fazia.
Francisco Espínola Acervo de família
Como magistrado, Espínola caracterizou-se por buscar a equidade em suas decisões, aproximando, assim, a fria letra da lei e as razões de "dever ser" do Direito, às limitações da condição humana. Ao assumir a presidência do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba propugnou, logo em seu discurso de posse, pela adoção do "Direito Social", cuja concepção considera o fator social como condição preponderante, presidindo toda a dogmática (conceitos e categorias jurídicas) e o Direito positivo, e influindo, pois, em todas as manifestações jurídicas. Ora, pregar o "Direito Social" na Paraíba e no Brasil não foi, e não é, uma tarefa tranquila, mas é precisamente disto o que necessita o Judiciário brasileiro para afirmar-se como poder e cumprir suas finalidades. Essa postura lhe valeria muitos problemas ao iniciar-se o regime ditatorial em 1964, quando foi constantemente ameaçado de cassação dos direitos públicos e políticos. Foi um período difícil, em que afinal conseguiu ele preservar e impor a sua dignidade e a do poder que representava.
Lembro-me de inúmeros fatos ilustrativos dessa comentada "condição franciscana". Por exemplo, o de jamais ter manifestado ódio por alguém. Às vezes o provocávamos com referências a pessoas que reconhecidamente lhe eram adversas no momento, ou fora do seu círculo de
Francisco Espínola Acervo de família
simpatia. Mas, incrivelmente, ele sempre tinha um argumento, uma palavra em defesa dessa pessoa e, se insistíamos, pronto descobria até um elogio!
Contudo, o humor não se situava fora de sua personalidade, muito pelo contrário. Ao lado do gosto pelo conhaque, pelos livros policiais e pelo jogo de xadrez, a condição "franciscana" despertava em Francisco Espínola manifestações peculiares de graça e de presença de espírito. Um fato bem pitoresco era lembrado pelo saudoso Humberto Nóbrega. Contava Humberto que numa reunião lítero-social apresentou-o à esposa do grande sociólogo Gilberto Freyre, a qual era parente de ambos: "Madalena, quero apresentar-lhe o nosso primo Chico Espínola. "Muito prazer", teria respondido vaga e protocolarmente a consorte do "gênio de Apipucos". "O prazer é meu, pela quinta vez", retrucou, rindo, Espínola. É que já tinham sido apresentados quatro vezes antes, e Madalena Freyre sempre reagia como se fosse a primeira vez.
Outro fato, que presenciei, um serventuário da justiça, veio pedir-lhe um "empréstimo" alegando, a exemplo de outros pedidos anteriores, uma situação dramática. Dessa vez era a sua esposa que estava no hospital "há quinze dias". "Feito o empréstimo, perguntei a ele se não achava que era mentira aquela história. Ele respondeu-me, às gargalhadas : "Eu sei, é um trapalhão, vi sua mulher na rua, ontem."
Já em sua agonia final conseguiu balbuciar para os médicos que o assistiam que "estava constrangido por incomodar tanto"!
Francisco Espínola com os filhos Acervo de família
Assim era o nosso Francisco Espínola. Poderia continuar recordando fatos e passagens evidenciadores de sua grande dimensão existencial, mas a memória só agudiza a minha saudade imensa e a sensação de enorme vazio pela ausência dessa figura tão bondosa e terna, ao mesmo tempo tão espiritualmente forte e fisicamente frágil, que foi o meu maior Amigo e meu Pai. O epíteto, lembrado, "foi um homem simples, mas não um simples homem" lhe cai como uma luva, e devo dizer, para finalizar, que a sua morte reforça a certeza de que todo ser humano é absolutamente insubstituível.
Texto escrito em setembro de 1993, em Barcelona, em homenagem ao pai do autor, Francisco Espínola (1914-1993), que hoje completaria 111 anos de idade.