As origens da sátira remontam à Antiguidade Clássica. Ela nasceu como uma vertente da comédia e tem o riso como seu principal instrumento. Representou desde cedo uma arma poderosa para criticar os costumes mediante a exposição do que há de ridículo e pretensioso nos homens e nas instituições.
Manipulação eleitoral: o diabo transforma os votos do candidato oposicionista Ruy Barbosa em votos para Epitácio Pessoa, candidato governista e vitorioso nas eleições para Presidente da República. A fraude era prática comum e sempre satirizada pelos caricaturistas. Revista Careta, 1919 ▪ Fonte: Ensinar História /// Blog Joelza Domingues.
A máxima Ridendo castigat mores, formulada por Horácio, mostra que o seu efeito é o de um látego que visa punir. O riso que ela provoca não traz alívio; pelo contrário, leva primeiro à inquietação, depois à reflexão e por fim ao desejo de mudança.
Um veio importante desse gênero é o da sátira política. Uma vez que o comportamento da maior parte de nossos políticos nem sempre é pautado pelo respeito ao bem público, e vem disfarçado em virtudes opostas (como o sacrifício e o desprendimento), o satirista se aproveita disso para apontar a inconsequência, o engodo e a má-fé comumente acondicionados numa retórica vazia.
Ele se apropria dessa linguagem para fazer, como se diz, o feitiço virar contra o feiticeiro. Utiliza-se por vezes de um vocabulário pretensioso ou de conceitos cuja “nobreza” visa denunciar a hipocrisia de um discurso que não se reflete nas ações. A sátira ironiza uma grandeza apregoada, porém muito longe de se verificar na realidade.
Rogério Guedes nos dá um bom exemplo do uso da linguagem para efeito satírico neste “Mais homo, mais sapiens, ou nada disso?!” O título já diz a que o livro vem: ironizar as
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pretensões de um grupo que se proclama superior, mas pratica ações que o rebaixam.
O autor elabora uma paródia zoológica partindo da designação latina da nossa espécie. Seu alvo são figuras públicas de todos bem conhecidas e cujo comportamento em nada confirma a grandeza desse que se pretende “o rei dos animais”. Com a liberdade que lhe concede o gênero, elabora uma zoologia moral, caracterizando pessoas que se distinguem por traços nada abonadores do caráter.
Seu objetivo é proceder a “uma correção ampliadora” da classificação zoológica, de modo a destacar os “elementos dissidentes”. Incluem-se nessa dissidência figuras reconhecíveis pela forma como concorreram, e concorrem, para apagar a pretensa distinção do Homo Sapiens.
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Um dos fortes do livro é o apelo à intertextualidade, conforme se vê neste exemplo: “há mais conveniência entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã zoologia”. Ou a definições que parecem se esgotar no malabarismo vazio do significante, quando o autor explica o sentido do pronome “algo”: “aquilo que alguém só sabe o que é quando encontra; mas que faz uma falta danada, antes”. Mas o melhor é a descrição dos tipos que constituem “a dissidência malfazeja” (pois há um grupo bom, embora diminuto, que “ultrapassa o Homo Sapiens em sabedoria e bondade”; esse, evidentemente, não nos faz rir).
Em sua classificação o autor parodia o discurso da ciência, detalhando critérios, metodologia, e dividindo grupos e subgrupos. O efeito disso é assegurar uma verossimilhança que, pelo contraste com o conteúdo que ele traz, acentua o efeito humorístico.O riso vem da distância entre a forma científica, marcada por certa pompa terminológica, e os atributos nada apreciáveis dos indivíduos descritos; entre a roupagem erudita e a vulgaridade daqueles que ela veste.
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Alguns dos mais interessantes são Fideuls Castus, “orador compulsivo (...) que foi perdendo o prestígio à medida que se perpetuou no poder e ao entender-se no direito de criar a dinastia Castus”; Borestis quercius, “que luta para ser reconhecido como forma inteligente de vida”; Sujus naias, pertencente ao grupo dos “políticos obscuros que (...) fazem fortuna nos setores de hotelaria e construção civil; gabam-se de enganar os incautos em ambos os setores; no primeiro, vendem gato por lebre; no segundo, castelo de areia por edifício”; Marmota suplicius, “cujo discurso não combina muito com a prática; em matéria de política, prefere explorar o filão das decantadas minorias sociais”.
Outros animais compõem essa fauna que todos conhecemos bem. O autor os peculiariza com base nas atitudes, nas qualidades ou nas palavras que lhes trouxeram nefasta notoriedade. Ao designá-los com a nomenclatura científica, parece querer destacar que não são apenas indivíduos, mas tipos que proliferam em nossa vida pública.
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O sentido da classificação zoológica é mostrar que exemplificam um comportamento, constituem uma amostragem de espécimes semelhantes que um bom zoólogo não terá dificuldade em encontrar na selva moral deste infortunado Brasil.
O livro de Rogério Guedes é um bom exemplo da associação entre uso criativo da linguagem e crítica social. Destaca-se pela precisão das definições e pela criatividade nas deformações homonímicas e paronímicas com que nomeia os personagens, bem como no uso do non sense e do duplo sentido. Esses atributos tornam fácil vincular as designações zoológicas às figuras a que elas se referem. A obra mostra, enfim, um autor antenado com a realidade do País e, sobretudo, capaz de expressá-la com inteligência e humor.