Poucas cidades no mundo souberam cultivar a alquimia entre vida social e criação artística como Paris. No coração da capital francesa, os cafés foram muito mais do que simples estabelecimentos para servir café ou vinho: tornaram-se verdadeiros laboratórios de ideias, palcos de debates apaixonados e pontos de encontro para escritores, filósofos, jornalistas e artistas. Percorrer a história dos cafés literários parisienses é revisitar um patrimônio imaterial que ajudou a moldar não apenas a literatura, mas também a política e o pensamento moderno.
Cour de Commerce-Saint-André, viela no Quartier Latin, Paris ▪ Acervo: Jô Drummond
Café Procope (Restaurant Le Procope), em Paris ▪ Entrada principal (na Rue de l'Ancienne Comédie) e segundo acesso (na Cour du Commerce-Saint-André). ▪ ImagensSerge Melki
Além de receber os grandes escritores do século XVIII, o Café Procope também foi um quartel-general literário e revolucionário. Durante a Revolução Francesa, era um local onde Danton, Marat e Robespierre realizavam seus encontros políticos. Foi lá que Marat publicou seus primeiros boletins informativos. Era um lugar onde as pessoas podiam conversar livremente e discutir suas teorias e ideias, quaisquer que fossem. Eram discutidos artigos da Encyclopédie, elaboravam-se projetos de reformas políticas e se afiava a sátira contra as instituições
1916: os pintores Moïse Kisling (ESQ) e Pablo Picasso (DIR) com a atriz Pâquerette no Café La Rotonde, situado no cruzamento do Boulevard du Montparnasse com o Boulevard Raspail ▪ Imagens: Wikimedia.
No século XIX, Paris consolidou sua fama como capital cultural da Europa. Os cafés do Boulevard Saint-Michel e do Quartier Latin recebiam estudantes, poetas e jornalistas, muitos deles sonhadores que ainda buscavam reconhecimento. O Café de la Rotonde e o Café du Dôme, por exemplo, tornaram-se redutos de jovens escritores e artistas plásticos que tentavam sobreviver entre debates e copos de absinto.
A dois passos da Opéra Garnier, o Café de la Paix chama a atenção de todos os transeuntes, com o seu vistoso estilo Napoleão III. Inaugurado em 1862, era frequentado pela alta sociedade parisiense e também por pessoas ilustres como o músico Tchaikovsky e os escritores Émile Zola, Maupassant, Proust, Gide e Hemingway, que escreveu seu romance Le soleil se lève aussi (1926) dentro de tal café.
Café de la Paix, na Place de l'Opéra ▪ Imagens: Wikimedia
Os românticos, liderados por Victor Hugo, Alexandre Dumas e Théophile Gautier, também encontraram nos cafés um espaço fértil para a troca de impressões. Mais tarde, os simbolistas — como Verlaine e Mallarmé — transformaram certos estabelecimentos em pequenas academias da experimentação literária. A boemia parisiense nasceu e floresceu nesses ambientes, misturando arte, música e discussões sobre política.No século XX, sobretudo após a Primeira Guerra Mundial, os cafés literários viveram uma nova fase de esplendor. Paris tornou-se destino de escritores e artistas estrangeiros — os chamados “expatriados” — como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Ezra Pound e Gertrude Stein. Muitos deles se encontravam no Café de Flore e no Les Deux Magots, ambos localizados em Saint-Germain-des-Prés, bairro que se transformou em um verdadeiro epicentro cultural.
Cafés de Flore e Les Deux Magots, no Boulevard Saint-Germain ▪ Acervo: Jô Drumond
Mas foi com os filósofos existencialistas que os cafés parisienses atingiram um apogeu quase mítico. Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir instalaram-se no Flore e no Deux Magots, discutindo obras, elaborando conceitos e, ao mesmo tempo, vivendo a atmosfera vibrante do pós-guerra. Esses cafés tornaram-se sinônimo de liberdade intelectual e de engajamento político.Jean-Paul Sarte e Simone de Beauvoir no Café de Flore ▪ Imagens: Substack
A proximidade com editoras, livrarias e universidades reforçava a função dos cafés como espaços de produção cultural. Não eram apenas pontos de encontro, mas verdadeiros escritórios improvisados. Sartre chegou a declarar que escrevia parte de suas obras no Café de Flore, em meio ao burburinho das conversas e ao aroma de café recém-preparado.O fascínio dos cafés literários não reside apenas em sua ligação com grandes nomes da literatura. Eles simbolizam um modelo de sociabilidade urbana que favorece a troca espontânea, o debate público e a circulação de ideias.
Café Procope, Paris ▪ Acervo: Jô Drumond
Hoje, a Paris globalizada e turística conserva ainda alguns desses templos literários. O Procope, o Flore e o Deux Magots continuam funcionando, em parte como atrações para visitantes, em parte como pontos de encontro para intelectuais e estudantes. Outros cafés menores, espalhados pelo Marais, Montparnasse ou Canal Saint-Martin, mantêm viva a tradição de unir xícaras de café com páginas de manuscritos.
Paris ▪ Fonte: GMaps
Acervo: Jô Drumond
Os cafés literários encarnam o espírito da própria Paris: mistura de tradição e modernidade, de elegância e rebeldia, de cotidiano e genialidade. Cada xícara servida traz consigo uma herança de debates acalorados, amizades improváveis e obras que atravessaram séculos.