Depois que os produtos industrializados começaram a estampar ‘alto em sódio’, ‘alto em açúcar adicionado’, comecei a me perguntar como seria se os humanos também viessem com embalagens rotuladas. Imagine encontrar alguém e, antes de dizer “bom dia”, deparar-se com um selo: “Contém traumas não resolvidos”. Ou aquele vizinho sorridente, rotulado com “ressentimento elevado”.
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Seria mais fácil evitar algumas relações — ou mais difícil não se reconhecer nas prateleiras alheias?
Embora eu concorde com a frase, que já pode ser considerada clichê, “rotular-se é reduzir-se”, também entendo que algumas pessoas se destacam mais por seus sentimentos, faces e facetas do que por suas ações, apesar de a separação ser meramente didática. Ainda que os rótulos ajudem na prevenção de riscos (como nos alimentos), eles não dão conta da complexidade de uma pessoa.
Afinal, ninguém é só “ódio elevado” — talvez contenha também “doses generosas de esperança”, mas com prazo de validade vencido. Ou, se concordarmos com Freud, o ódio é o amor no seu vetor contrário. Essa pessoa, na verdade, está sedenta por/de amor, mas não consegue expressá-lo adequadamente. Seria como uma gasolina adulterada? Move, mas corrói.
As pessoas que se abraçam às suas ideologias políticas a ponto de literalmente matar ou morrer por estas poderiam vir com “contém loucuras saturadas”. Talvez uma grande injustiça para
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com os loucos. Se lucidez demais é loucura, seriam os loucos os sábios?
Quem foi que decidiu pôr rótulos em pessoas talvez tenha se esquecido de que também é humano e suscetível a etiquetarem-no até mesmo com a identificação que mais teme. Projetou no outro os seus medos como uma forma de tentar dissuadi-los e/ou se desfazer deles.
Mais alguns: “Amargura concentrada”, “doçura artificial”, “fibra emocional”. Um casal em crise: “contém orgulho não declarado”? Uma chefe perfeccionista: “alto teor de controle”? Um artista sensível: “pode conter traços de melancolia crônica”? Pensei em um trocadilho metalinguístico, mas deixo ao caro leitor essa liberdade...
Você já refletiu sobre quais ingredientes tem colocado na sua dieta emocional? E mais: com quem você tem compartilhado o alimento? Tem gerado saciedade ou fomentado mais carências? E, se for para sermos o mais honestos possível, qual seria a sua advertência? “Fermentado”? “Frágil”?
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Não somos produtos, somos processo, um constante vir a ser, mesmo que algumas pessoas sejam mais doces, outras mais azedas ou amargas, picantes, algumas agridoces... Indivíduos agridoces agridem docemente?
Talvez sejamos, cada um, uma receita inacabada, feita de acertos, excessos e faltas — temperados pelo tempo. Às vezes, passamos do ponto. E, tal quais os alimentos, não conseguimos agradar a todos. Se não podemos evitar os rótulos, que pelo menos saibamos que eles são apenas a embalagem, nunca o conteúdo.
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Se nem o próprio sujeito consegue acesso a todos os seus ingredientes, quem somos nós nesse caldeirão? As relações afetivas são receitas que se cruzam, combinações diversas em que talvez a entrada pareça promissora, e o prato principal decepcione. Tudo pode acontecer nessa mistura de afetos. Que não nos faltem tempero e temperança.