“Aquilo que é acrescentado ou suprimido sem que se produza qualquer consequência apreensível não é parte do todo”. É o que afirma Ari...

Victor Hugo e a Necessidade Aristotélica

victor hugo miseraveis escrita romance
“Aquilo que é acrescentado ou suprimido sem que se produza qualquer consequência apreensível não é parte do todo”.

É o que afirma Aristóteles, na Poética (1451a), quando propõe uma definição mais completa da mímesis, como uma ação singular que forma um todo. A partir daí, compreende-se que o criador – poeta ou prosador –, não tem qualquer compromisso com o fato ocorrido, mas com o que poderia ter ocorrido, de acordo com a verossimilhança e a necessidade (1451a).
victor hugo miseraveis escrita romance
Aristóteles, filósofo e polímata da Grécia Antiga, em pintura atribuída a JJ Dorner, c. 1813
É assim que a mímesis (μίμησις) surge como ação indissociável à criação, póiesis (ποίησις), a ação de criar, enquanto a história liga-se a uma narração de fatos particulares. A poesia, no dizer de Aristóteles, é, portanto, mais nobre que a história, por buscar a universalidade, conforme a verossimilhança e a necessidade, de um certo tipo de homem. A história, por sua vez, se reduz ao indivíduo, ao particular (1451b).

Ao colocar a verossimilhança (εἰκός) e a necessidade (ἀνάγκη) como elementos caracterizadores da criação (1451a, 1451b), Aristóteles define a mímesis como a criação de uma possibilidade, não como uma cópia da realidade, que não pode ter pontos soltos ou ações, que não estejam vinculados ao todo. Numa compreensão mais clara, poderíamos dizer que a apresentação em uma narrativa de um objeto, ação, personagem ou discurso, sem ligação à essência da trama, será vista apenas como ornamento ou excrescência factual, que deveria, portanto, não ter sido mostrado.

Em Os Miseráveis, Victor Hugo dá uma excelente demonstração do entendimento da necessidade aristotélica. Se em “Um justo”, Livro I da primeira parte do romance (14 capítulos), intitulada Fantine, Victor Hugo reserva para a apresentação do Monseigneur Bienvenu,
victor hugo miseraveis escrita romance
Ilustração de Gustave Brion para o livro Os Miseráveis, de Victor Hugo ▪ editores: J. Hetzel et A. Lacroix (Paris), 1862 ▪ Fonte: Biblioteca Nacional da França
como um homem piedoso e justo, conforme nos diz o título, o Livro II (“A queda”, 13 capítulos) é dedicado a um perfil físico e moral de Jean Valjean, culminando com a relação entre ele, um ex-prisioneiro ressentido, amargurado e rejeitado pela sociedade, e o Monseigneur Bienvenu, cuja compreensão, piedade, senso de justiça e capacidade de perdão atuarão como fatores decisivos, que o levam a um exame de consciência, tendo como resultado a sua transformação.

Na continuidade da apresentação de Jean Valjean (Capítulo 7, “O interior do desespero”, p. 75), o personagem, ex-galeriano, nos é mostrado como portador de grande força física, da qual nenhum dos seus companheiros de prisão se aproximava. Hugo não deixa de dar a pista ao leitor, chamando a atenção para o detalhe que não se deve omitir (“Un détail que nous ne devons pas omettre.”). Além da força física, Jean Valjean tinha grande habilidade para grimpar qualquer obstáculo vertical, encontrando pontos de apoio, onde as pessoas não viam senão uma saliência (“Gravir une verticale, et trouver des points d’appui là où l’on voit à peine une saillie, était un jeu pour Jean Valjean.”).

victor hugo miseraveis escrita romance
G. Brion, 1862
Não se trata apenas de descrever o personagem, de modo estático. A informação aqui veiculada, como detalhe a não ser omitido, nos diz da importância actancial do que foi dito, reverberando mais além na narrativa. É a força descomunal de Jean Valjean, na identidade do respeitável Monsieur Madeleine, rico empreendedor e prefeito de Montreuil-sur-Mer, que atiça a curiosidade de Javert, quando de sua intervenção, levantando a carroça, sob a qual se encontrava Fauchelevant, um dos habitantes da cidade, por causa da morte do cavalo que a puxava (Livro 5, “A descida”, Capítulo VI, “O Pai Fauchelevant”, p. 138-140). M. Madeleine/Jean Valjean salva Fauchelevant, compra-lhe a carroça inútil e o cavalo morto, e ainda lhe consegue um emprego como jardineiro, em um convento, no quarteirão Saint-Antoine, em Paris.

Mais uma vez, não se trata de informação descartável. Fauchelevant, tornando-se grato a M. Madeleine/Jean Valjean, vai ajudá-lo, em sua chegada a Paris, com Cosette, na fuga da perseguição canina de Javert. Na segunda parte de
victor hugo miseraveis escrita romance
G. Brion, 1862
Os Miseráveis, intitulada Cosette, constituída de 8 Livros, vemos Jean Valjean, no Livro V (“Para caça sombria, matilha muda”, 9 capítulos), escalar um muro íngreme, puxar Cosette com a ajuda de fios, e penetrar nos jardins do convento do Petit-Picpus, onde se encontra Fauchelevant (Capítulo IX, “O homem do guizo”, p. 370), trabalhando como jardineiro. Se Jean Valjean salva Fauchelevant da morte, em Montreuil-sur-Mer, Fauchelevant salva a sua vida e a de Cosette, acolhendo-os no convento e depois dando uma fuga espetacular a Jean Valjean, que deixarei aos leitores a surpresa e a delícia de descobrir como.

O mesmo procedimento se pode aplicar a Fantine, nome da personagem e da denominação da primeira parte de Os Miseráveis, dividida em 8 Livros, com um total de 70 capítulos. Jovem, bela, alegre, ingênua e doce, com ares e perfil de castidade, Fantine deixa-se enganar pelo estudante de medicina Félix Tholomyès, com quem tem uma filha, Cosette. Além de sua beleza natural, Fantine se orgulha e se envaidece com os seus cabelos e,
victor hugo miseraveis escrita romance
G. Brion, 1862
principalmente, com os seus dentes, belos e brancos como pérolas. Diga-se que Victor Hugo cogitava chamar a personagem de Marguerite Louet, tendo em vista que margarita é “pérola”, em latim. Segundo as notas de Guy e Annette Rosa ao livro, o nome Fantine pode ser “o eco ‘decapitado’ de enfantine”, o que é próprio da criança (nota 34, ao Livro III da primeira parte, “No ano de 1817”, p. 1176).

É esplêndido o perfil que Victor Hugo faz da jovem, importante para entender a situação aflitiva e conflitante que ela vai enfrentar, na tentativa de cuidar da filha (Capítulo III, “Quatro a quatro”, p. 101-102, sempre em tradução nossa):

“Fantine era a alegria. Seus dentes esplêndidos tinham evidentemente recebido de Deus, uma função, o riso.”
“Fantine era também o pudor.”
“O casto espanto [que ela demonstrava com a embriaguez da idade de que as três amigas e os quatro amigos, que a acompanhavam em uma tarde de domingo a Saint-Cloud, estavam tomados] é a nuance que separa Psiquê de Vênus. Fantine tinha os longos dedos brancos e finos da vestal que mexe as cinzas do fogo sagrado com um estilete de ouro.”
“O amor é um erro; seja. Fantine era a inocência sobrenadando acima do erro.”

Abandonada por Félix Tholomyès, Fantine deixa Paris e retorna para a sua cidade natal, Montreuil-sur-Mer, na região do Pas-de-Calais. Caluniada por Madame Victurnien, Fantine é demitida da fábrica do Père Madeleine (Jean Valjean),
victor hugo miseraveis escrita romance
G. Brion, 1862
em que trabalha, não tendo mais como sustentar Cosette, entregue aos cuidados dos Thénardier, casal de bandidos, em Montfermeil, que a exploram sem parar, tratando a criança como um bicho, ao ponto de fazê-la escrava.

Endividada, Fantine vai caindo aos poucos, para além da queda que a tornou mãe solteira. Se Jean Valjean tem uma queda (“La chute”, Livro 2), Fantine tem uma descida (“La descente”, Livro 5). Da queda, representada pelo roubo da prataria do bispo de Digne, Monseigneur Myriel Bienvenu, Jean Valjean se levanta com o perdão do religioso, que lhe compra a consciência. Do ex-presidiário de Toulon, ele se transforma em Père Madeleine, dono de uma fábrica, que adquire um grande respeito de toda a cidade de Montreuil-sur-Mer, chegando a se tornar prefeito, nomeado pelo rei Charles X.

victor hugo miseraveis escrita romance
G. Brion, 1862
Já Fantine vê-se em queda livre. Até que ela tentou se levantar da queda, da falta cometida ao confiar e se entregar a Tholomyès, buscando trabalho decente. Mas tudo concorre para que a queda se transforme em uma descida e em decadência, sem que haja meio de ela ser interrompida. Fantine é vítima da inércia. A força externa que seria necessária para interromper o seu movimento de descida não existe. O estado inercial em que ela se encontra, só aumenta o grau de profundidade da queda: pressionada pela mentira dos Thérnadier, seus cabelos e dentes tornam-se moeda de troca, em busca da sobrevivência dela e da filha. Ela vende os cabelos (Livro V, Capítulo X, “Sequência do êxito”, p. 146), vende os incisivos centrais superiores (“les palettes”, idem, p. 148) e, não havendo mais bens que possam ser vendidos sem que atinjam a sua consciência, ela vende o corpo.
victor hugo miseraveis escrita romance
G. Brion, 1862
Fantine se prostitui (“L’infortunée se fit fille publique”, idem, p. 149). Ela já não é mais Fantine, a jovem que trabalha 17 horas por dia, para ganhar o mínimo para a sobrevivência da filha, Cosette, relegando a um segundo plano a sua própria sobrevivência. Ela se torna La Fantine, a prostituta. O revide à agressão de Bamatabois, um boçal desrespeitoso, leva-a a ser presa por Javert.

Apesar da intervenção de M. Madeleine, que desconhecia completamente a trama maléfica de Mme. Victurnien, salvando Fantine dos seis meses de prisão decretados por Javert, ele não pode salvá-la da tuberculose que a mata. Fantine morre, mas com a certeza de que a filha, Cosette, estará sob os cuidados de M. Madeleine.

Como vimos, a trama ficcional tecida por Victor Hugo não tem ponto sem nó. Conhecedor profundo do mundo clássico e da sua importância, em qualquer época, o escritor segue à risca as duas condições básicas do engendramento da boa ficção, da boa poíesis: a verossimilhança, na criação de personagens que simbolizam tudo o que existe na sociedade, de bom e de mau, e a necessidade, como amarração de uma fabulação, que não pode e não deve ter pontas soltas.

Leiam Hugo.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Anônimo2/8/25 07:02

    Uma aula de escrita criativa. Parabéns, Milton. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Anônimo2/8/25 12:43

      Obrigado, meu amigo e confrade Gil!

      Excluir

leia também