A etimologia tem sido má conselheira dos que pretendem explicar fatos atuais da língua. O uso leva com frequência ao esquecimento de como determinada palavra ou expressão se formou. E pode ocorrer o que em linguística se chama hipercaracterização, que é uma redundância incorporada
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à língua e que não é mais sentida como redundância. Assim, pretender que suicidar-se ou meio ambiente sejam incorreções por serem originalmente pleonasmos (redundâncias de sentido) é pretender que se recomende dizer nosco ou migo por conosco ou comigo, em que a preposição com se repete. A alteração de mecum para migo levou o falante a esquecer a preposição embutida, e repetiu-a: comigo. Da mesma forma, o futuro irei ver, por exemplo, se forma a partir do esquecimento de que a perífrase com o presente de ir já indica o futuro: vou ver; o falante, então, conjuga o auxiliar no futuro, por hipercaracterização, o que, na verdade, não constitui um erro, mas um recurso legítimo de expressividade.
Não há redundância em suicidar-se, porque o sui se descaracterizou como pronome, tornando-se parte da raiz verbal. Afinal, dizemos “nós nos suicidamos”, “vós vos suicidais”, em que o sui ocorre sem referência à 3ª pessoa, distanciando-se, portanto, de sua origem etimológica.
Walter Porzig cita um caso interessante em seu livro Das Wunder der Sprache (de 1957). O particípio alemão é formado com a partícula {-ge} anteposta ao verbo. Assim, o verbo kommen (vir) forma gekommen (vindo), no particípio.
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Trinken (beber) forma getrunken (bebido); haben (ter) forma gehabt (tido), etc. O verbo essen (comer) tinha a forma arcaica regular gessen (comido), no particípio, mas o povo achou que a partícula faltava e colocou-a de novo. Hoje, o particípio de essen é gegessen, por hipercaracterização. É como se, em inglês, disséssemos loveded por loved (particípio de to love, amar), ou como se disséssemos camed por came (vindo), que já é forma pretérita em inglês.
É por hipercaracterização que dizemos “milharal”. De café se origina cafezal; de bambu, bambuzal; de algodão, algodoal; de laranja, laranjal, etc. De milho deveria originar-se milhal. Mas o sufixo repetiu-se: milhalal, que deu milharal por dissimilação (uma forma de diferenciação) do l do primeiro prefixo.
Condenar ou justificar os usos atuais da língua pela etimologia não me parece um atitude científica ou linguisticamente válida. Do contrário, estaríamos proibidos de usar músculo (que significa “ratinho”) ou hidrofobia (que significa “horror à água”), ou rival (do latim rivus, rio, designativo etimológico de ribeirinho, isto é, do habitante das margens do rio) por exemplo, com o sentido que atribuímos hoje a tais formas.
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Os tropos também contribuem para afastar a etimologia das explicações de fatos linguísticos atuais, como a metonímia e a catacrese (que é uma metáfora cristalizada), por exemplo. É por catacrese que dizemos pé de mesa, barriga da perna, braço de poltrona, céu da boca, ou expressões como andar a cavalo num burro, embarcar num ônibus, enterrar uma agulha no dedo (não há portanto incoerência em se dizer “enterrar no mar”, posto que enterrar signifique “enfiar na terra”, originalmente). É por metonímia que usamos nomes de marcas registradas para produtos similares de outras marcas, como chiclete, gilete, modess, etc.
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A etimologia apenas indica e explica a origem das palavras, sem implicações semânticas. Assim, pela etimologia, sabemos que Lúcifer, de origem latina, significa “o que leva (ferre) a luz (lux)”, equivalente ao grego fósforo. Ora, se formos usar a etimologia, Lúcifer poderia designar Jesus Cristo, mas passou a designar o diabo por um erro de interpretação dos doutores da Igreja, em duas passagens de Isaías, cap. XIV: o versículo 4, em que Isaías fala do rei da Babilônia, e o versículo 12, em que o rei caiu do céu e é chamado Lúcifer, tradução latina do hebraico ben-xabar (filho da aurora), designativo da estrela da manhã ou estrela d’alva. Os doutores da Igreja viram semelhança entre o que Isaías dizia a respeito do rei da Babilônia e a queda do anjo mau na mitologia cristã. E Lúcifer passou a ter um significado ruim, apesar da etimologia.
Um caso mais recente de hipercaracterização em português é a expressão canja de galinha. Originalmente, canja é caldo de galinha com arroz. O falante esqueceu a significação primitiva e reforçou-a: canja de galinha, o que me parece construção legítima, ou, pelo menos, legitimada pelos usuários cultos da língua, uma vez que, se existe canja musical, como a que terminava, na televisão, os programas de entrevista de Jô Soares, se torna necessário especificar a canja de que se fala.
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Portanto, embora meio e ambiente sejam sinônimos isoladamente, a expressão meio ambiente está bem formada, por hipercaracterização, abonada pelo uso corrente.