O episódio da Esfinge de Tebas surgiu contado por Hesíodo, poeta grego que viveu no final do século VIII a. C. Hesíodo era um aedo, um “cantor”, um poeta oral, em uma época em que o alfabeto ainda não havia aparecido. A deusa Hera punira Tebas colocando nas imediações
Édipo e a Esfinge ▪ Gustave Moreau, 1864 ▪ Met Museum, NY
da cidade a Esfinge que era um monstro com rosto e busto de mulher, corpo de leão, cauda de dragão e asas e que apresentava aos que se aproximavam do lugar o seguinte enigma: ‘Qual o ser que anda com quatro pernas de manhã, duas pernas ao meio-dia e três pernas à noite?’. Aqueles que não conseguiam decifrar o enigma eram devorados pela Esfinge.
Três séculos depois, Sófocles utilizou o episódio da Esfinge na trama da sua tragédia Édipo rei. Ao chegar ao local onde se encontrava a Esfinge, Édipo conseguiu resolver o enigma afirmando que a resposta à pergunta feita pela Esfinge era o homem, que no início, na sua manhã, engatinha com quatro pernas, depois passa a caminhar com duas e, por fim, na noite, na velhice, precisa de uma bengala, como terceira perna, para se locomover. A Esfinge, ao ver resolvido o enigma, se lançou de um penhasco e morreu. Édipo tornou-se rei de Tebas, casou com Jocasta, a rainha que estava viúva, e novos fatos surgiram com os desdobramentos que foram dados por Sófocles na sua magistral peça teatral.
Em razão da narrativa mitológica de Hesíodo, se passou a designar como esfinges pessoas de comportamentos indecifráveis, misteriosos e imprevisíveis.
Revista Illustrada, Rio, edição de março/1892 ▪ Fonte: Biblioteca Nacional
Uma das personalidades mais enigmáticas na História do Brasil é o marechal Floriano Peixoto que é considerado o consolidador do regime republicano no país. Teria sido o escritor Euclides da Cunha, em um artigo de jornal depois publicado em livro, quem primeiro apelidou de esfinge o chamado “marechal de ferro”. Euclides, que conhecera Floriano Peixoto, o considerava “um impassível, um desconfiado e um cético [...] O herói, que foi um enigma para os seus contemporâneos pela circunstância claríssima de ser um excêntrico entre eles. Será para a posteridade um problema insolúvel pela inópia completa de atos que justifiquem tão elevado renome”.
O historiador Leôncio Basbaum fez um pequeno perfil de Floriano Peixoto:
“Floriano é quase um enigma para o historiador. De aparência insignificante, magro, franzino, pálido, feições de caboclo, mais parecia um sargento escriturário que um marechal [...] Frio, impassível, de aparência apática,
Floriano Peixoto (1839—1895), militar e político alagoano que serviu como segundo presidente do Brasil (1891 a 1894).
indiferente ao luxo e às pequenas comodidades materiais da vida, sua mente era impenetrável.
Era também desses raros tipos de homens que nas épocas normais da vida quotidiana, passam quase despercebidos, mas que, no fragor da luta, nos postos de combate, e nos momentos decisivos, sem perder a impassibilidade, sabem dominar os acontecimentos, quando todos em seu redor já perderam a serenidade.”
José Maria Bello, político e historiador pernambucano, escreveu sobre Floriano Peixoto na sua História da República:
“Nenhuma figura da história brasileira tem sido mais discutida que a sua. Inspirou aos seus coevos ardentes fanatismos e tremendos ódios [...] Não se distinguia Floriano por nenhum dom exterior de fascínio e de domínio. Descuidado de si mesmo, máscara medíocre,
de traços inexpressivos e adoentados [...] Escassa a sua cultura, quase reduzida aos vulgares conhecimentos técnicos da profissão. Não revela curiosidades intelectuais, dúvidas, aflições de vida interior. Desdenha o dinheiro; deixam-no completamente indiferentes as comodidades materiais da vida [...]
Confundindo-se de bom grado nas multidões humildes das ruas, conserva-se, entretanto, impenetrável a qualquer intimidade. A família, de pequeno estilo burguês, esgota-lhe, porventura, a capacidade afetiva. Como os de sua raça cabocla, é um irredutível desconfiado. Simples e acessível, embora é incapaz de intempestivas familiaridades [...] No fundo um triste
Apesar de todas estas qualidades negativas de êxito, soube todavia, como nenhum outro brasileiro, conquistar entusiasmos vibrantes, coloridos, muitas vezes, de misticismo [...] para a maior parte das elites brasileiras, Floriano pôde ser uma expressão das forças mais bárbaras da alma do País, uma espécie de retardado na crosta da civilização litorânea [...]
A personalidade enigmática de Floriano Peixoto pode ser avaliada pela sua participação no golpe militar que depôs o imperador Pedro II e instalou a República no país. Naquela ocasião Floriano ocupava o cargo mais importante do Exército e, poucas horas antes da deflagração do movimento golpista, não se sabia de qual lado ele estava, se do lado do imperador ou dos revoltosos. Euclides da Cunha, participante
Euclides da Cunha (1866—1909), escritor e jornalista fluminense, autor de Os Sertões.
do episódio, dá o seu depoimento sobre a importância de Floriano naquele momento histórico:
“Diante da sua figura insolúvel e dúbia, os revolucionários apreensivos traçavam na tarde de 14 de novembro o ponto de interrogação das dúvidas mais cruéis, e ao meio-dia de 15 de novembro os pontos de admiração dos máximos entusiasmos”
Segundo José Maria Bello, “até o advento da República, nada tinha de extraordinário a carreira de Floriano”. Participara do Governo Provisório e, após o encerramento da Assembleia que elaborara a primeira Constituição republicana, foi eleito pelo Congresso vice-presidente da República, com mais votos (153) do que os que foram dados (129) ao próprio presidente. Deodoro da Fonseca, acostumado a comandar militares, não conseguia conviver com a oposição do legislativo e, em 3 de novembro de 1891, fechou o Congresso e decretou o estado de sítio no Rio de Janeiro e Niterói. Mas, o golpe de Estado dado pelo primeiro presidente republicano não resistiu por muito tempo e, vinte dias depois, Deodoro renunciava ao governo. Iniciava-se a Era de Floriano.
Manuel Deodoro da Fonseca (1827—1892), militar e político alagoano, primeiro presidente da República do Brasil. À esquerda, a sua carta de renúncia à presidência do país.
Ao assumir o governo, Floriano Peixoto reabriu o Congresso, acabou com o estado de sítio e procedeu à derrubada de praticamente todos os governadores dos Estados (a exceção do Pará) que haviam se solidarizado com o golpe de Deodoro. Alguns políticos e militares, acreditando na aparente passividade de Floriano, começaram a articular o seu afastamento da Presidência com a alegação de que um dispositivo constitucional determinava uma nova eleição presidencial porque Deodoro havia renunciado com menos de um ano de mandato. Treze militares de alta patente assinaram um manifesto,
Almeida Barreto, militar e senador paraibano, reformado por Floriano Peixoto após ter assinado o Manifesto dos 13 Generais. ▪ Fonte: STM
cujo primeiro signatário era o marechal paraibano Almeida Barreto, defendendo a realização da eleição. Floriano agiu rápido determinando a reforma dos militares que haviam assinado o documento. Dias depois, uma homenagem a Deodoro se transformou em agitações de rua contra o governo. Floriano, que chegara de trem vindo da sua casa no subúrbio, prendeu pessoalmente alguns dos agitadores. No dia seguinte, determinou a prisão de vários oposicionistas deportando-os para regiões longínquas do Amazonas, dentre eles, José do Patrocínio, Olavo Bilac e os senadores paraibanos Almeida Barreto e João Neiva. Segundo Leôncio Basbaum, enquanto o Congresso discutia sobre a legalidade da prisão de parlamentares, Floriano teria comentado: “Vão discutindo que eu vou mandando prender”.
Durante todo o período de três anos de governo de Floriano Peixoto aconteceram vários movimentos revoltosos, sendo os principais a revolta da Armada e a revolução federalista no Rio Grande do Sul. Todos foram reprimidos com o máximo rigor. Floriano utilizava a força desmedidamente. Mesmo sem ter sido um defensor do regime republicano, Floriano Peixoto conseguiu consolidar a República no país entregando o governo ao primeiro presidente civil. Floriano Peixoto morreu aos 56 anos de idade, seis meses após deixar a presidência da República, em razão de sequelas de uma enfermidade contraída durante a Guerra do Paraguai.
Charge satirizando a violência do governo de Floriano Peixoto, conhecido como o "marechal de ferro" ▪ Fonte: Charges históricas
Um fato que poucos paraibanos sabem é que Floriano Peixoto viveu cerca de um ano na Paraíba. O então coronel de artilharia Floriano Peixoto chegou à Capital da Província em novembro de 1882, designado pelo ministro da Guerra para fazer uma inspeção no batalhão do Exército local, que fora objeto de várias denúncias de irregularidades. Foi na Paraíba que, em janeiro de 1883, Floriano Peixoto recebeu a sua promoção para brigadeiro, o que equivalente ao atual general de brigada.
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No relatório de conclusão da sua inspeção, encaminhado ao presidente da Província, Floriano Peixoto elencava algumas irregularidades que foram constatadas no batalhão de infantaria da Paraíba:
“Muitos são os abusos que aqui vim encontrar, officiaes a negociarem com praças a ponto de emprestar-lhes dinheiro com lucro de vinte por cento e de, perante a thesouraria de fazenda, se apresentarem como seus procuradores; extravio de grande porção de fardamento, premeditado de papeis que eram necessarios a inspecção, escripturação viciada e atrazada, etc., etc...”
O futuro “marechal de ferro” relatava que começara a inspeção ouvindo “secretamente os praças da companhia” e, a partir daí, se convenceu de que as irregularidades que haviam ocorrido eram de responsabilidade dos oficiais do batalhão:
“à proporção que hia conhecendo o gráo de culpabilidade de cada um hia propondo ao governo a sua transferência. Comecei pelos menos graduados, deixando mui propositalmente, o commandante capitão Joaquim Pedro do Rego Barros para o fim, porque cabendo-lhe maior responsabilidade era com relação a elle que eu devia colligir maior número de provas. Quando as tive, quando me pareceram bastantes, pedi a sua transferência”
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Como resultado da inspeção realizada por Floriano Peixoto, foram transferidos da Paraíba todos os oficiais do comando do batalhão. Essa medida desagradou aos políticos paraibanos vinculados ao Partido Conservador aos quais os militares afastados provavelmente eram ligados. Em pronunciamento na Câmara dos Deputados, Anísio Salatiel Carneiro da Cunha (irmão do barão de Abiaí) vociferou contra Floriano:
“O ministério passado mandou o brigadeiro Floriano inspecionar a companhia fixa da Parahyba; o resultado da commissão foi removerem-se todos os officiaes, desde o commandante até o ultimo alferes, que haviam votado no candidato conservador. O commandante dessa companhia, que era estranho á província, que não tinha lá nenhum interesse politico, foi substituído por outro official ligado a um dos grupos políticos dalli. Terminada a comissão do brigadeiro Floriano [...] continua elle, comtudo na província [...] e não tem outra cousa que fazer senão dirigir um grupo politico, em cujos conselhos exerce preponderancia”
Um mês depois das denúncias de Carneiro da Cunha e com a sua presença no plenário, coube ao deputado pelo Amazonas Adriano Pimentel fazer a defesa de Floriano Peixoto, que teve o apoio de alguns deputados, dentre eles o tribuno pernambucano José Mariano, que em um aparte afirmou que Floriano tinha “dados excelentes provas de si em todas as commissões de que tem sido encarregado”. O que mereceu o comentário do deputado conservador paraibano Manoel Carlos de Gouveia de que Floriano Peixoto na Paraíba não havia sido “mais do que um instrumento cégo de uma camarilha”.
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A permanência de Floriano Peixoto na Paraíba, por quase um ano, fez com que ele firmasse algumas amizades na Província. Com o advento do regime republicano e com a sua ascensão à Presidência da República, uma daquelas amizades paraibanas do “marechal de ferro” influenciaria a escolha de um dos primeiros presidentes do Estado no período republicano e que, por cerca de duas décadas, dominaria a política da Paraíba. Mas, essa história fica para depois.