Jorjão foi só Jorjinho, das fraldas aos primeiros fios de barba. Aí virou Jorjão porque passou de um e noventa e ficou parrudo como um búfalo. Já o “Capivara” ganhou desde o curso primário, pois os incisivos centrais, aqueles do maxilar superior, na dentição permanente, deram-lhe ares do bicho em questão. Nunca se incomodou com o apodo.
Casou-se com Heleninha, da mesma idade que ele e filha do Juca do cartório. Aos trinta, já tinham completado a prole com duas maricotas puxadas à mãe e um machinho que diziam ser a cara do pai.
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A cidade em questão era de porte médio e ficava (ou fica) ali na região de Ribeirão Preto, mas julgo ser de bom alvitre não revelar o nome. Vamos aqui chamá-la de Princesa do Norte. Cidadão participativo, Jorjão tentou a vereança, mas, a despeito do que gastava nas campanhas, nunca se elegeu. Pegava aquela suplência ali pela rabeira, sem chance de assumir uma cadeira.
Embora a política não fosse sua praia, Jorjão Capivara era, antes de tudo, um benfeitor. Foi de seu bolso a reforma do posto de saúde, pagou muita consulta em médico da capital a uns e outros que não tinham recursos. Quanta gente procurou Jorjão para aviar receita de óculos, comprar dentadura, par de sapatos para menino ir à escola e outras demandas muito comuns na prática do clientelismo. Mas nosso camarada fazia o bem pelo bem, sem exigir troca. O destaque era o sopão todo começo de noite na praça da matriz, por conta desse filantropo. Assim de gente para forrar o estômago com aquela gororoba feita no capricho, com a supervisão de Dona Heleninha.
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Dia da outorga. Jorjão colocou a melhor beca; Dona Heleninha, muito elegante, com as crianças na primeira fila do plenário, para prestigiar a diplomação. O presidente da casa pronunciou as falas protocolares, saudou a plateia (assim de gente), a família, o protagonista e deu a palavra para o autor da propositura, Betinho da Farmácia, que, após o lero-lero inicial, começou o discurso:
— Lá em priscas eras, no alvorecer do primeiro dia da primavera de 1950, o mundo foi presenteado com o surgimento de um lindo rebento, filho de...
Falou uns cinco minutos da infância do amigo. Depois, mais uns dez dos tempos de ginásio, quando foram contemporâneos. Foi quando aquele mocotó que Jorjão ingerira horas antes começou a dar sinal da graça. O pobre começou a suar frio. O intestino brigando com o estômago, o esôfago com a faringe e outras altercações com a turma do aparelho digestivo.
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Jorjão suando, passando o lenço pelo rosto. A plateia começou a perceber a agonia da criatura, que se levantou aos brados:
— Para, Betinho!
Betinho, assustado, se calou. Mas o tempo não foi generoso, e a tragédia aconteceu ali, no salão nobre da Câmara Municipal. Pobre Jorjão, o intestino o traiu. Então, deu no pé por uma saída lateral até os sanitários. Mas o estrago estava feito. Feito e malcheiroso. Como se ajeitou não vem ao caso. O vexame foi de lascar.
Jorjão morreu dois anos depois. Nas exéquias, adivinhem quem estava lá para as palavras de despedida. Ele mesmo. Então, Dona Heleninha chegou ao ouvido de Betinho:
— Hoje pode falar à vontade. Defunto não borra as calças na frente dos convidados.