A Terceira parte de Os miseráveis, denominada Marius (08 Livros, 76 capítulos), enfoca a miséria social, cuja solução se encontraria na revolução política, com base na educação universal. Trata-se de um momento delicado na história francesa, no período imediatamente posterior à restauração dos Bourbon (1814/15-1830), após a derrota de Napoleão em Waterloo, em que se observa um conflito político entre realistas, bonapartistas e republicanos. Nesse contexto, revela-se a Marius o perfil do seu avô, M. Gillenormand; a verdade sobre o seu pai, o coronel George Pontmercy; a descoberta do seu amor por Cosette, uma desconhecida cujo nome ele desconhece; a revelação, para Marius, de Thénardier, como embusteiro e criminoso, e o reencontro Jean Valjean e Javert. Esta parte inicia com a introdução do pequeno Gavroche e se fecha mostrando a irreverência do menino, que será um personagem muito importante na parte seguinte.
Entre a política e o amor, Victor Hugo delineia, nessa Terceira parte, um quadro político-social da França, em que a miséria conduz ao crime. Nesse grande painel, podemos dizer que Gavroche é o símbolo do menino de rua (gamin); Thénardier é o farsante e criminoso; Patron-Minette, o bando a que ele pertence, é a cristalização do próprio crime; Javert é a perseguição implacável, sob o nome de justiça; os amigos da Sociedade do ABC são a revolução republicana; Marius é o jovem em processo de descoberta, a um só tempo, da política, da miséria e do amor; Cosette é a pureza; Éponine é a encarnação da miséria; Jean Valjean é a transformação pelo Amor e pela Caridade, e a Educação Universal é o móvel de toda a mudança social desejada. O romancista faz dessa parte uma espécie de cadinho em que se fundem o amor e a revolução, cujos resultados serão vistos na Quarta parte, O idílio da rua Plumet e a epopeia da rua Saint-Denis.
Criado pelo avô, M. Gillenormand, separado do pai, ainda criança, Marius acata a tendência política realista e favorável aos Bourbon. Morto o pai, ele descobre uma história que nunca conheceu, após realizar vários estudos sobre o período napoleônico. O resultado é a inversão de toda uma situação: ódio ao avô e amor ao pai, com o jovem adotando, inclusive, o título de barão. Declarando-se bonapartista, Marius inverte também a condição política que lhe fora imposta desde criança, o que ocasiona o rompimento com o avô e a sua saída de casa: “Um barão como o senhor e um burguês como eu não podem ficar sob o mesmo teto” (III, 3, 8, p. 510), diz-lhe jocosa e raivosamente o avô.
Marius sai de casa e descobre a Sociedade dos Amigos do ABC, jovens, em sua maioria, estudantes, defensores da república, integrados à preparação de uma revolução contra a monarquia de Louis-Philippe:
“O que eram os amigos do ABC? uma sociedade tendo como objetivo, na aparência, a educação das crianças; na realidade, o soerguimento dos homens” (III, 4, 1, p. 514).
“Todos esses jovens, tão diversos, e dos quais não devemos falar senão com seriedade, tinham uma mesma religião: o Progresso. Todos eram os filhos diretos da revolução francesa” (III, 4, 1, p. 520).
O contato com os jovens revolucionários abala a sua convicção bonapartista, recentemente adquirida com a admiração pelo pai, herói de guerra, em Waterloo, salvo de forma indireta por Thénardier. A descoberta do pai e o culto à sua memória obrigam Marius a tomar para si, como último desejo do pai morto, a proteção de Thénardier, visto pelo coronel como seu salvador e não como um saqueador de mortos em batalha.
Sem ter onde morar, Marius aceita o convite de Courfeyrac, espécie de figura central dos Amigos do ABC, entre Enjolras, o chefe, e Combeferre, o guia. Do Quartier Latin, Marius, vivendo a indigência, vai morar na mansarda Gorbeau, 50-52, boulevard de l’Hôpital, administrada por mame Bougon, primeiro endereço de Jean Valjean e Cosette, bem como de Javert, que para lá se mudara, seguindo a pista daquele. Com muito esforço, Marius consegue se formar advogado. É aí que se dão as duas maiores descobertas do jovem criado em uma vida sem dificuldades e desconfortos: o amor e a miséria.
Nessa nova situação, Marius encontra, pela primeira vez, em seus passeios diários no Jardin du Luxembourg, Cosette e Jean Valjean, cujos nomes desconhece. Courfeyrac é quem denomina Jean Valjean de M. Leblanc e Cosette de Mademoiselle Lanoire. Depois, por causa do lenço, deixado propositadamente por Jean Valjean, sobre o banco do jardim, em que se encontram grafadas as iniciais UF, Marius passa a chamá-la Ursule. Na realidade, desde que Jean Valjean foi admitido no convento, após ser reconhecido por Fauchelevant, que ainda o chamava M. Madeleine, ele recebeu o nome de Ultime, o mais novo dos irmãos do Jardineiro Fauchelevant. É o amor que aflora e que passa a dominar o seu pensamento, induzindo à confusão.
Em sua permanência na mansarda Gorbeau, a miséria se revela aos olhos de Marius, que não a conhecia de tão perto, em Éponine e Azelma, as filhas de Thénardier. Essa descoberta lhe traria a oportunidade de cumprir a vontade pai, mas as ações de Thénardier o revelam um criminoso, cuja vítima é M. Leblanc, o pai de sua amada desconhecida. O conflito se estabelece no espírito do rapaz: se ele salva M. Leblanc da extorsão e do possível assassinato, chamando a polícia para prender Thénardier, ele se torna um infiel à memória do pai; se ele é fiel à memória do pai, fará de M. Leblanc uma vítima de Thénardier, tornando-se ele próprio cúmplice de um bandido.
Nesse intrincado episódio, que consome todo o Livro VIII, O mau pobre (Le mauvais pauvre), revela-se a Marius não só a personalidade de Thénardier, como perigoso bandido, junto com os seus asseclas, que compõem o bando Patron-Minette, governante do submundo de Paris: Guelemer, Babet, Claquesous e Montparnasse. Revela-se também que Ursule não é Ursule, pois Fabantou/Jondrette/Thénardier a chama de Alouette (Cotovia), dando a entender que M. Leblanc/Jean Valjean e sua filha, Lanoire/Ursule/Alouette/Cosette, já eram conhecidos do bandido, desde os tempos do seu albergue, Le Sergent de Waterloo, em Montfermeil. É também o momento em que Javert renasce, frustrando a execução do plano de Thénardier e seus comparsas, na extorsão a M. Leblanc/Jean Valjean. Por sua vez, Jean Valjean empreende mais uma fuga espetacular no seu reencontro com Javert.
O Livro VIII é o mais longo dessa parte, com 22 capítulos, trazendo a mais importante das revelações a Marius. Pela proximidade com os vizinhos do pardieiro em que habita, Marius se dá conta de que a miséria está além de si próprio. É quando se estabelece a diferença entre pobreza e miséria. Essa diferença opõe Marius e os Thénardier, sobretudo com relação aos filhos deste. Marius tornou-se pobre e chegou às raias da indigência, depois do rompimento com o avô, cuja casa ele deixa:
“Havia cinco anos que Marius vivia na pobreza, no despojamento, na desgraça mesmo, mas ele percebera que não havia ainda conhecido a verdadeira miséria. Ele acabava de ver a verdadeira miséria. Era essa larva que acabava de passar sob seus olhos. É que, com efeito, quem não viu senão a miséria do homem, nada viu; é preciso ver a miséria da mulher; quem não viu senão a miséria da mulher, nada viu; é preciso ver a miséria da criança. [...] Ó os infortunados! como eles são pálidos! como eles têm frio! parece que eles estão em um planeta bem mais longe do sol do que nós” (III, 8, 5, p. 589).
Mesmo morando de favor com Courfeyrac ou alugando um quarto na mansarda Gorbeau, Marius, como se vê, não é miserável, ele está com um pé na miséria, mas esta nunca será pisada por ele. A pobreza indigente em que ele se encontra foi uma decisão sua. Ele sempre poderá contar com a opção do dinheiro do avô, que ele recusa. Jamais lhe foi negado o acesso aos estudos, ministrados desde criança. Já as filhas de Thénardier nunca conheceram alternativa, não tiveram outra opção que não fosse a miséria, resultante de uma certa injustiça social, de que não se pode omitir o desleixo dos pais, cuja situação chega a um ponto tal que nada mais as atinge, nem o mal, nem o bem. É a situação da aporia, situação trágica que a miséria desencadeia:
“[...] dois miseráveis seres que não eram nem crianças, nem moças, nem mulheres, espécies de monstros impuros e inocentes, produzidos pela miséria. Tristes criaturas sem nome, sem idade, sem sexo, às quais nem o bem, nem o mal são mais possíveis, e que, saindo da infância, não têm nada mais no mundo, nem a liberdade, nem a virtude, nem a responsabilidade. Almas desabrochadas ontem, fanadas hoje, iguais a essas flores caídas na rua, que todas as lamas conspurcam, esperando que uma roda as esmague” (III, 8, 4, p. 585).
Não se trata, portanto, apenas de uma miséria revelada pela carência material, miséria das necessidades básicas de que “os dois miseráveis seres”, Éponine e Azelma, foram excluídas. Trata-se de miséria pior, aquela resultante do caráter perverso, da aversão à lei e ao trabalho honesto, optando pelo atalho da bandidagem sórdida, como é o caso específico do casal Thénardier.
É didática a oposição que se pode fazer entre Cosette, a casta Vênus do Jardin du Luxembourg, e Éponine, a esquelética do pardieiro Gorbeau, vistas em momentos diferentes por Marius:
“A pessoa que ele via agora era uma grande e bela criatura, tendo todas as formas mais encantadoras da mulher, nesse momento preciso em que elas se combinam ainda com todas as graças mais ingênuas da criança; momento fugitivo e puro que só estas duas palavras podem traduzir: quinze anos. Eram admiráveis cabelos castanhos, com uma nuance de veios dourados, uma fronte que parecia feita de mármore, faces que pareciam feitas de uma pétala de rosa, um encarnado pálido, uma brancura terna, uma boca adorável, de onde o sorriso saía como uma claridade e a palavra como uma música, uma cabeça que Rafael teria dado a Maria, posta sobre um pescoço que Jean Goujon teria dado a Vênus” (III, 6, 2, p. 555-556).
“Era uma criatura emaciada, raquítica, descarnada; nada, a não ser uma camisa e uma saia, sobre uma nudez trêmula e gelada. [...] as formas de uma menina abortada e o olhar de uma velha mulher corrompida; cinquenta anos misturados a 15 anos” (III, 8, 4, p. 583).
O melhor de tudo é que, na construção da narrativa, Victor Hugo tira do narrador a responsabilidade dos fatos e a desloca para o ponto de vista do personagem. É, em suma, Marius que descobre, não o narrador que simplesmente apresenta a situação. Com isso, em lugar do distanciamento, há a presentificação, em relação ao fato, aproximando o leitor do acontecimento.
Por que Gavroche abre e fecha a Terceira parte de Os miseráveis? Porque ele é o representante-símbolo do gamin (criança de rua) de Paris; porque, construindo uma narrativa cíclica, Victor Hugo retoma os princípios engendrados desde o início do romance, como se pode ver abaixo, nas falas do bispo Bienvenu e de Comberre; princípios fundamentados na necessidade da educação pública universal, única luz capaz de quebrar a inércia da injustiça, da miséria, do banditismo e da prostituição. Note-se que os amigos do ABC são os amigos do abaissé, abaixado, rebaixado, numa alusão ao povo sempre rebaixado ao sofrimento e à miséria pelas classes dominantes. O ABC é também a alusão à alfabetização. A ausência de um acesso à educação leva à ignorância e facilita a exploração que conduz à miséria. O Estado tem a obrigação de cuidar disso:
“Os dois primeiros funcionários do Estado são a merendeira e o mestre-escola” (I, 5, 2, p. 129).
“Ele [Combeferre] declarava que o futuro está na mão do mestre-escola, e se preocupava com as questões de educação” (III, 4, 1, p. 516).
Só a educação é capaz de transformar o insolente e livre menino de rua, em criança que precisa de cuidados, seja de uma formação educacional, seja da proteção do lar e dos pais:
“As crianças errantes abundavam em Paris. [...] Todos os crimes do homem começam na vagabundagem da criança. [...] Ora, a criança errante é o corolário da criança ignorante” (III, 1, VI, p. 462).
“O menino de rua é uma graça para a nação e, ao mesmo tempo, uma doença. Doença que é preciso curar. Como? Pela luz.
A luz saneia.
A luz clareia.
Todas as generosas irradiações sociais saem da ciência, das letras, das artes, do ensino. Fazei homens, fazei homens. Aclarai-os para que eles vos aqueçam. Cedo ou tarde a esplêndida questão da instrução universal se postará com a irresistível autoridade da verdade absoluta; e então os que governarão sob a vigilância da ideia francesa terão de fazer esta escolha: as crianças da França, ou os meninos de rua de Paris; chamas na luz ou fogos-fátuos nas trevas” (III, 1, 10, p. 466).
Vetor principal da transformação social, a educação é a luz que iluminará a sombra, em cujas trevas o mal e os maus se escondem:
“As silhuetas ferozes que transitam nesse fosso, quase bestas, quase fantasmas [...] têm duas mães, as duas madrastas, a ignorância e a miséria. Elas têm um guia, a necessidade; e, por todas as formas de satisfação, o apetite. [...] Do sofrimento essas larvas passam ao crime. [...]. O homem ali torna-se dragão. Ter fome, ter sede, é o ponto de partida; ser Satã é o ponto de chegada” (III, 7, 2, p. 571).
“Esse porão tem por objetivo o desmoronamento de tudo. [...] Ela se chama simplesmente roubo, prostituição, crime e assassinato. Ela é trevas, e quer o caos. Sua abóbada é feita de ignorância. [...] Destruam o porão Ignorância, destruirão a toupeira Crime. [...] O único perigo social é a Sombra” (III, 7, 2, p. 571-572).
“O que é necessário para fazer desaparecer essas larvas? Luz. Luz em vagas. Nenhum morcego resiste à aurora. Aclaremos a sociedade que está embaixo” (III, 7, 4, p. 576).
É assim que o encontro amoroso dos que têm se prolonga na ação revolucionária, em favor dos que não têm e mais precisam. O idílio encontra a epopeia. Não existem atalhos, quando a vida reclama, com audácia, a ação da justiça:
“O grito: Audácia! é um Fiat lux. É necessário, para a marcha à frente do gênero humano, que existam sobre os cumes, em permanência, altivas lições de coragem. As temeridades maravilham a história e são uma das grandes claridades do homem. A aurora ousa, quando se levanta. Tentar, desafiar, persistir, perseverar, ser fiel a si mesmo, tomar o destino corpo a corpo, espantar a catástrofe pelo pouco de medo que ela nos faz; às vezes, afrontar o poder injusto; às vezes, insultar a vitória ébria, aguentar, levantar a cabeça; eis o exemplo de que os povos têm necessidade, e a luz que os eletriza. O mesmo clarão formidável vai da tocha de Prometeu ao palavrão de Cambronne” (III, 1, 11, p. 469).






