Há uma completa desolação. O silêncio do mundo. Apenas os pequenos ruídos, quando anda pela sua casa, quando veste ou tira uma roupa. ...

O segredo é seguir…

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Há uma completa desolação. O silêncio do mundo. Apenas os pequenos ruídos, quando anda pela sua casa, quando veste ou tira uma roupa. Quando come, quando bebe, todos os sons se agigantam porque talvez não haja uma humanidade lá fora. O vento, sim, talvez o vento que sopra pela janela. Um vento que traz suas mensagens codificadas, como notícias de algo que não aconteceu, vazias de ocorrências.

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Celyn Kang
Está sem ânimo naquele dia. Reina a impressão de que algo está para acontecer, até mesmo um fim. Ou algum imprevisível começo. Aquela música, que tantas vezes já ouviu, está ali, há tempos. “Adeus, meu amigo, adeus”. Sim, “Break”, do Aphrodite's Child: “com uma mentira, você esquece e encerra isso”. Break. Quebra. Interrompe. Uma música que se repete ao infinito e cobra, com suas notas, uma resposta que não poderia ser outra.

Sente como há uma imensurável quantidade de infelicidade em sua vida. “Felicidade é tudo o que você perdeu quando nasceu, porque bastou nascer para perder, e então você passa o resto da vida procurando de volta”. Jiny voltou. E segue em notas monocórdias, em clave lenta: “Não pense que é só você que é infeliz, meu amigo.”

Cilgin indaga:
— Então, qual o sentido da vida, afinal?
Jiny ri:
— Não há qualquer sentido.
Cilgin:
— Então, por que viver?
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Celyn Kang
Jiny:
— Ora, viver é um imperativo, da mesma matéria dos sonhos, e não sabemos se estamos vivos ou apenas vivos num sonho. O segredo é seguir.
Cilgin:
— Sem fazer sentido?
Jiny:
— E por que teria de ter um sentido? É apenas uma lógica diferente para a mesma coisa. Você precisa entender como não fazer sentido não significa que não vale a pena viver.

Confuso. “Para mim, tudo só existe porque estou aqui; quando eu não estiver mais, deixará de existir.”

Voltou a lembrar de um texto curioso. Falava algo como: se uma árvore cai na floresta e não há ninguém para testemunhar, para ouvir o barulho, então aquela queda não existiu realmente. Porque não existe ninguém para perceber e dar o verdadeiro sentido de existir. Acho que foi um sujeito chamado Berkeley quem propôs essa possibilidade. Nesse sentido, pode-se imaginar: se um sujeito está só no mundo e não há ninguém para testemunhar o que ele faz, sente, pensa, ou tudo o mais que um humano faz, então esse sujeito realmente não existe, não é?

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Celyn Kang
Jiny pensa:
— Bem, de fato, se não há ouvidos para ouvir, evidentemente não há sons, no sentido da existência. Mas veja como isso é tão inconsequente. O que virá depois, se não há quem possa testemunhar?

Cilgin já não sabe se foi ele ou Jiny quem pensou aquilo. Podem ter sido os dois. Uma alucinação, sem dúvida, que põe em xeque a existência como valor universal.

A dúvida sobre sua própria existência, questionando se, de fato, estava verdadeiramente vivo ou imerso em alguma realidade imaginária, era algo sedutor, mas ao mesmo tempo como a porta de um abismo para o ignoto. Todas essas referências, por mais que soassem bizarras, pareciam indicar uma busca desesperada por lógica em meio ao caos.

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Celyn Kang
A insana profundeza do ser se manifestava não apenas nos eventos extraordinários ao seu redor, mas nas profundezas de seu próprio oceano interior, onde se agitavam os demônios e os seus afetos mais bem guardados. Era quase um imperativo continuar a explorar os recantos desconhecidos de sua própria existência, percorrendo os círculos cada vez mais fundos e, de alguma forma, distanciando-se cada vez mais da realidade que conhecia.

Jiny volta a provocar com seu riso sardônico:
— Você está buscando respostas onde não há perguntas — e completa: — A verdade está além da compreensão humana.

Então acrescentou:
— Talvez você esteja procurando demais por algo e tão fixado nisso, que não consegue enxergar tudo o que está ao lado, as árvores que estão caindo bem por ali. E, afinal, pode ser que você realmente não queira respostas, porque suspeita lá no íntimo como poderão ser ainda mais dolorosas.

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Celyn Kang
Cilgin sente o impacto das palavras. Jiny prossegue:
— Quem sabe você não tenha percebido como a vida, antes de precisar ter um sentido, é muito mais uma transformação entre o que você foi e o que você deve ser, para seguir com alguma sanidade?

Então completou:
— As respostas podem magoar mais do que as perguntas…

E, antes que Cilgin pudesse dizer qualquer coisa, ainda perplexo, Jiny desapareceu da mesma forma como antes apareceu.

Sem qualquer motivação aparente, eis que vem à memória a trágica história do escritor uruguaio Horácio Quiroga. O pai se suicidou quando ele tinha apenas quatro anos. Depois, o padrasto se matou também com um tiro. Já adulto, Quiroga mata um amigo com um tiro acidental de escopeta. Sua esposa, Maria Cires, também se suicidou ingerindo água sanitária. Por fim, cercado de tantas mortes, Horácio desistiu de viver também, tomando uma dose letal de cianeto.

Lembra de um trecho de seu livro Decálogo do Perfeito Contista, quando proclama que a narrativa tem interesse apenas no universo de seus personagens, ele próprio um. Seria, talvez, a única forma de se obter a vida. Dentro de uma narrativa apenas. Então, Jiny provavelmente tinha razão…

* Excerto do livro de Hélder Moura, 'A insana lucidez do ser', publicado recentemente (Editora Ideia), disponível na 👉🏽 Livraria do Luiz.

"O texto de Hélder Moura é forte, denso e carregado de curiosas referências literárias e musicais. Nele há também espaço para especu-lações filosóficas quanto ao sentido da vida e ao nosso propósito no mundo." (Chico Viana)


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