Não dirijo há sete anos, desde quando, irritado com um trânsito mais complicado a cada amanhecer, dei ao filho mais novo o carro que e...

Os meus xarás

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Não dirijo há sete anos, desde quando, irritado com um trânsito mais complicado a cada amanhecer, dei ao filho mais novo o carro que eu tinha. Agora, com alguma frequência, vejo-me obrigado a responder a motoristas de Uber se Frutuoso é, mesmo, o meu primeiro nome. “Não é sobrenome?”. E eu: “Não. É nome herdado do avô paterno que me levou à pia batismal.
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Frutuoso Chaves: avó e padrinho do autor.
Avô e padrinho, porque assim quis Seu Juca, meu pai”.

Quando o camarada é agradável, a exemplo daquele com quem viajei esta semana, eu estico a conversa: “Você nunca levou ninguém à Rua Frutuoso Barbosa, no centro de João Pessoa, pertinho do Parque da Lagoa?”. Explico que o Barbosa foi um dos fundadores e capitão-mor da Paraíba. Aliás, capitão de mar e terra, como assim o quis Dom Henrique I, no período de 1588 a 1591. Conta-se que voltou pobre a Lisboa e sem o filho que morreu em batalha contra os índios por eles não pacificados. Quem sabe se por isso a rua que o celebra tem o comprimento exato de um quarteirão medido a partir da esquina do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba? Não mais do que isso.

“Levei não, senhor. Passa carro por lá?”. Então, eu dei por mim: “Passa nada. Aquilo é uma travessa, embora bem movimentada. Mas para a Rua Frutuoso Dantas, no bairro do Cabo Branco, a pouca distância do mar, você já conduziu passageiro?”.

Rua Frutuoso Dantas, bairro Cabo Branco, na capital da Paraíba.
Observo que, entre os espantados com meu nome, o Dantas também é um ilustre desconhecido. E confesso: até para mim que pouco sei dele. Não estou certo de que fosse este o adversário que José Américo detestava a ponto de entender seu defeito físico (o homem manquejava) como uma marca imposta por Deus a fim de não o perder de vista. Mas percebamos que Dantas e Almeida não eram vultos da cena política que bem se dessem, por sabidas razões. Inclino-me a gostar do Dantas, contudo, menos pela condição de homônimo e mais por minha inclinação habitual à causa dos mais fracos, coisa manifesta desde a infância nos filmes da cavalaria, quando eu torcia
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Fructuoso Rivera (1784—1854) — conhecido informalmente como Don Frutos —, militar e político uruguaio. ▪ Fonte: Wikimedia
pelos índios, no cineminha de Seu Zé Ribeiro.

Apesar de uruguaio, Rivera, outro Frutuoso, pontificou no exército brasileiro, onde foi de coronel a brigadeiro. Fez história, ainda, lá para as bandas da Argentina dada a luta contra o domínio espanhol. Tinha José como primeiro nome advindo do batismo, na Montevidéu de 1784.

Na década de 1980, quando eu integrava a equipe da Sucursal recifense d’O Globo do Rio de Janeiro, com atuação na Paraíba, um colega de trabalho tratava-me por Frutuoso Gomes. Vim saber que ele assim o fazia em referência ao nome de uma cidade do Rio Grande do Norte, sua terra natal. Custei crer em que um grupo populacional, por pequeno que seja, possa ter "frutuosense" como gentílico.

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Praça da matriz de Frutuoso Gomes, cidade do Rio Grande do Norte. ▪ Fonte: Wikimedia
Com o perdão do meu avô, homem alegre e dado a presepadas (a última delas, a ausência do segundo casamento, posto que se foi num infarto fulminante antes da troca de anéis com a noiva que já o aguardava no altar), o xará de quem mais me orgulho foi um santo. Isso mesmo, existiu um São Frutuoso. A Wikipédia revela que ele nasceu e viveu a maior parte do tempo na Espanha, no Século VII. Por outra leitura, de cuja fonte não lembro, informei-me de que se trata do primeiro mártir católico com
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Frutuoso de Braga, monge e bispo godo do século VII, venerado como santo. ▪ Fonte: Wikimedia
martírio descrito por quem o testemunhou.

Deve-se a São Valério, monge copista e escritor, a história da vida e das obras do moço. Esse biógrafo – conta minha fonte de pesquisa – ateve-se, quase exclusivamente, à vida monástica do biografado. Ou seja, omitiu sua atuação como bispo e sua intervenção civil e religiosa de enorme importância no seio dos godos hispânicos.

Seu corpo ganhou jazigo perpétuo, com honras de altar, na Catedral de Compostela, para onde foi trasladado a mando do arcebispo Diego Geimires, em 1102. Fora roubado e desviado da portuguesa Braga, para o endereço definitivo, em Santiago, território espanhol. Informa, ainda, a Wikipédia que a Catedral de Compostela celebra essa trasladação em ato litúrgico descrito como “Pio Latrocínio”.

Padre no monastício hispânico, este santo, viajante infatigável, bateu pernas, mundo a fora, para fundar inúmeros mosteiros celebrantes de duas regras monásticas: a Monachorum e a Monastica Comunis. Braga ainda o venera na Capela de São Frutuoso e na Sé Católica. Queridíssimo, o moço.

Capela de São Frutuoso, em Braga, Portugal.
Em São Frutuoso eu só observo uma falha: era bem feinho. Mas não duvido de que a culpa recaia sobre quem o retratou. Minha pesquisa levou-me a um pintor de nome Joseolgon (êpa!) e à informação de que o retrato compõe a Galeria de Arcebispos de Braga. O quadro, se fiel à imagem do retratado, demonstra, indiscutivelmente, que quem vê cara não vê coração.

Batíamos nossas portas quando alguém chamou do pátio da Estação: “Frutuosooo!”. Respondemos em uníssono: “Sim?”. E caímos na risada. Não era todo dia que encontrávamos um xará.
Meu avô foi o primeiro xará em quem pus as vistas ao olhar para além do próprio umbigo. Por uma questão de honestidade, devo revelar que escondia essa fatalidade das primeiras namoradinhas. Culpe-se, porém, o bullying escolar. Isso, mais no Recife e menos no Pilar da minha infância, onde prevalecia o apelido “Tuta”. Soubesse eu da existência de homônimos tão importantes, jamais teria, em momento nenhum, escondido de ninguém a graça batismal.

Casei-me com a bela moça que detesta “Tuta”, mas não por isso, evidentemente. Divirto-me quando ela ainda hoje retifica a irmã e os dois irmãos pelos quais sou assim tratado desde o tempo dos nossos velocípedes.
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Acervo: Frutuoso Chaves
“Tuta, não. Ele é Frutuoso”. Acha que tenho um nome bonito e imponente.

Em 1994, por aí assim, eu saía da Estação do Metrô, no centro do Recife, para apanhar um táxi ali baseado. Recorri ao primeiro motorista da fila e indiquei-lhe o endereço: “Jornal do Commercio, por favor”. Batíamos nossas portas quando alguém chamou do pátio da Estação: “Frutuosooo!”. Respondemos em uníssono: “Sim?”. E caímos na risada. Não era todo dia que encontrávamos um xará. Ele me identificou de pronto: “O senhor é Frutuoso Chaves e está vindo de João Pessoa”. Era leitor assíduo do Jornal e, obviamente, decorara meu nome e o lugar de onde eu despachava meus textos. Ah, sim, o chamamento era para ele.

Eu e meus oitenta anos saímos, há pouco, revigorados de uma visita a Serrinha, núcleo urbano formado por Juripiranga (Paraíba) e Ibiranga (Pernambuco), com divisa no meio da rua e calçadas nos dois Estados. Nem ali, nem na vizinha Camutanga, berços dos meus ancestrais, as pessoas estranham o nome que recebi, porquanto o associam ao meu avô. Sou de uma família de longevos. Ouvi, então, a pergunta de uma prima nonagenária: “Você é o menino de Juca?”. Deus a abençoe.

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  1. Frutuoso é o que dá muitos frutos. No seu caso, cronista, a produção é ótima. Por tudo, o avô incluído, é um nome para se orgulhar. A patroa tem razão. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Um abraço forte, Gil. E sempre grato. - Frutuoso, o Chaves.

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  3. Samuel Amaral3/10/25 17:20

    Beleza de crônica!!

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