Fugindo de Javert, Jean Valjean invade o terreno do convento do Petit-Picpus-Saint-Antoine, em Paris, onde viviam enclausuradas as bern...

''Quem foge não tosse, nem espirra''

miseraveis victor hugo
Fugindo de Javert, Jean Valjean invade o terreno do convento do Petit-Picpus-Saint-Antoine, em Paris, onde viviam enclausuradas as bernardinas da adoração perpétua. Lá, ele encontra Fauchelevant, por ele ajudado em uma ocasião anterior (Parte I, Fantine, Livro 5, Capítulos 6 e 7), trabalhando como jardineiro
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G. Brion, 1862
(Parte II, Cosette, Livros 5-6). Salvo momentaneamente da perseguição, Jean Valjean precisa arranjar um jeito de sair do convento, entrar novamente, passando-se pelo irmão do jardineiro, com o nome de Ultime Fauchelevant, para tentar deixar Cosette como aluna interna, e ali trabalhar como ajudante do falso irmão. A única forma é sair dentro de um caixão de defunto, que deveria levar o corpo da madre Crucifixion, morta ao raiar do dia. A madre Innocente, superiora do convento, quer enterrá-la por baixo do altar, contrariando a lei. Para isso, ela pede a ajuda de Fauchelevant, que, além de jardineiro, é também, ocasionalmente, coveiro. Para que a morta pareça estar dentro do caixão, o plano é enchê-lo de terra. Assim, ficcionalmente, cria-se uma situação que permite a Jean Valjean se evadir do convento. Se a madre Innocente decide burlar a lei, Fauchelevant decide burlar a madre, preenchendo o caixão, não com terra, mas com Jean Valjean, seu salvador de outrora, que lhe conseguira, inclusive, aquele emprego de jardineiro.

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G. Brion, 1862
Há risco de Jean Valjean morrer sufocado, pois ele deve ser enterrado, com a ajuda do coveiro do cemitério Vaugirard, e depois desenterrado pelo amigo. Não há outra solução. Fauchelevant, preocupado com a situação, pergunta a Jean Valjean o que aconteceria se ele tossisse ou espirrasse, quando estivesse dentro do caixão. Nosso herói, sempre determinado, responde-lhe com segurança e clareza: “Quem foge não tosse, nem espirra” (“Celui qui s’évade ne tousse pas et n’éternue pas.”, Parte II, Livro 8, Capítulo 4, p. 433).

A contextualização é necessária para que se entenda a nossa crítica à série Les Misérables (França, Itália, Estados Unidos, Alemanha e Espanha, 2000), em 4 capítulos, adaptada do romance de Victor Hugo por Didier Decoin e dirigida por Josée Dayan, tendo no elenco Gérard Depardieu (Jean Valjean), John Malkovich (Javert) e Christian Clavier (Thénardier).

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Os Miseráveis (2000), minissérie para TV em 4 episódios, baseada no romance de Victor Hugo ▪ Direção: Josée Dayan ▪ Imagem: Imdb
Consideramos essa série uma das melhores adaptações da obra, tendo em vista que o tempo de duração, 6 horas, dá uma boa margem para se contar a história de um romance copioso, como é o caso de Os miseráveis. Reconhecemos a dificuldade das adaptações e, mais ainda, o fato de que as linguagens romanesca e cinematográfica são diferentes. Por outro lado, seria purismo de nossa parte esperar uma fidelidade total na adaptação. Consideramos, contudo, que há também adaptações de situações que só complicam a trama, tornando-a inverossímil, do ponto de vista da sua estrutura interna. A caracterização da personagem Toussaint, como homem, na série, é um bom exemplo disso. No romance,
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G. Brion, 1862
Toussaint é uma moça velha, salva por Jean Valjean do hospital e da miséria. Na série, Toussaint é um homem mudo, que esteve na prisão com o nosso conhecido personagem.

Pode parecer implicância criticar essa transformação de uma personagem feminina em uma masculina. Não é. Isto fere a estrutura da narrativa de Victor Hugo. Não esqueçamos nunca que todo texto é uma estrutura e, se alguma peça da estrutura é trocada, acaba comprometendo a verossimilhança interna. O narrador deixa bem claro o porquê da escolha de Toussaint como doméstica: “une fille [...] qui était vieille, provinciale et bègue, trois qualités qui avaient déterminé Jean Valjen à la prendre avec lui” (“uma mulher [...] que era velha, provinciana e gaga, três qualidades que determinaram Jean Valjean a tomá-la consigo.”, Parte IV, Livro 3, Capítulo 1, p. 696). Estas qualidades são fundamentais para quem está se escondendo e busca discrição.

Quando a adaptação transforma Toussaint em homem, o comprometimento da condição de fugitivo de Jean Valjean fica evidente. Mesmo que o personagem seja mudo, a sua condição de ex-presidiário, ex-colega de Jean Valjean fala por ele. Além disso, ele é forte e careca. O que chamaria mais atenção em Paris, ainda que no resguardo da casa da rua Plumet, uma moça velha, gaga e provinciana ou um homem mudo,
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forte e careca? Há, portanto, uma questão estrutural dentro do romance, que não deve ser esquecida: a necessidade de discrição e de anonimato. Jean Valjean se esfuma no ar, encurralado por Javert e por seus esbirros, numa rua sem saída, galgando um muro enorme, levando consigo Cosette, pulando para dentro do convento Picpus, onde permanece 5 anos sem sair (IV, 3, 1, p. 697):

“Cinco anos de permanência entre essas quatro paredes, e de desaparecimento tinham necessariamente destruído ou dispersado os elementos de medo.”

É essa fidelidade à estrutura que nos leva a outro episódio dentro da série. Durante uma festividade, uma alta autoridade da magistratura visita o convento e Jean Valjean tem uma altercação sobre o que é justiça, com esse senhor. A cena não ocorre no romance, pois o nosso personagem, como ajudante do jardineiro Fauchelevant, de quem se faz um falso irmão, evita que as pessoas o vejam. Tudo o que Jean Valjean deseja é a obscuridade, o anonimato, nos anos em que Cosette está como interna do convento. Não ser visto ou notado é fundamental para ele, que tem em seu encalço o inspetor Javert, a persegui-lo obsessivamente, o que é confirmado pela frase “habiter un lieu impossible,
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Victor Hugo e suas obras ▪ Ilustração do periódico Le .Journal illustré, 31.05.1885 ▪ Arte: Henri Meyer ▪ Casa de Victor Hugo (Hauteville), Guernsey, Ilhas do Canal.
c’était le salut” (“habitar um lugar impossível é a salvação”, Parte II, Livro 8, Capítulo 1, p. 415).

O que nos parece é que o adaptador e o diretor da série projetam no personagem o seu próprio ativismo social. Hugo era um homem reconhecidamente engajado na luta pela justiça, ainda que não fosse necessariamente de esquerda. Ele sabia que ter consciência da justiça social não é prioridade de partidos políticos. Ao longo do romance, o escritor vai disseminando suas ideias contra as injustiças sociais, a ponto de Os miseráveis ser um dos maiores romances de toda a literatura mundial sobre o assunto, mas não as coloca na boca de Jean Valjean. O personagem é de pouco falar e de muito agir; ele procura ser justo não por palavras, mas pela ação, como faz quando se entrega para salvar alguém de uma injustiça. É o caso do pobre miserável, conhecido como “le père Champmathieu” (I, 7, Capítulos 10-11), confundido com Jean Valjean e que está prestes a ser condenado à prisão em Toulon, o lugar horrível onde nosso herói passara 19 anos, pela tentativa frustrada do roubo de um pedaço de pão.

Jean Valjean, nessa ocasião, encontrava-se na cômoda posição de prefeito de Montreuil-sur-Mer, atendendo pelo nome de Monsieur Madeleine. Ele se desloca até Arras, a tempo de revelar sua identidade
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G. Brion, 1862
perante o júri de Champmathieu, por não ter como ficar em paz consigo próprio, caso um inocente fosse condenado em seu lugar. Se ele tivesse se omitido, estaria livre de Javert para sempre, mas não estaria livre de si mesmo, de sua consciência. Atento, talvez, às lições platônicas, Victor Hugo sabia que a Justiça começa quando a buscamos e a encontramos dentro de nós mesmos.

O pensamento em busca de justiça contido em Os miseráveis tem três fontes: o amor ao próximo, de Jean Valjean; a obsessão doentia de Javert pelo cumprimento estrito e compulsivo da lei; a ação violenta dos revolucionários da Turma do ABC, simbolizada nas barricadas de 1832, contra o rei Louis-Philippe. Os revolucionários são mortos pelas forças da monarquia; Javert se suicida, diante do conflito de não poder mais perseguir quem lhe salvou a vida. A única busca que resulta em algo é a de Jean Valjean, que aprendeu, desde cedo, a partir da transformação operada em si pelo Monseigneur Myriel, o bispo de Digne, que palavras não tornam uma pessoa justa, mas as suas ações (I, 7, 3, p. 181):

“Ele sentia que tocava o outro momento decisivo de sua consciência e de seu destino; que o bispo marcara a primeira fase de sua nova vida e que este Champmathieu marcava a segunda. Após a grande crise, a grande provação.”
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Gravura de Os miseráveis (Segunda Parte), de Victor Hugo ▪ edição original (Lacroix, Verboeckhoven & Cie) ilustrada por Gustave Brion, 1862 ▪ Fonte: Gallica
As suas ações, portanto, são coerentes com o que ele pensa e prega, ainda que em prejuízo de si próprio, afinal, é melhor sofrer uma injustiça do que praticá-la. Discursos belos, eloquentes, inflamados e idealistas caem bem em estudantes revolucionários, como Enjolras, o chefe ardente, cuja lógica só vislumbra a guerra. Jean Valjean fala pouco, como já dissemos, pouco discursa, mas age o suficiente para livrar uma cidade da miséria (Montreuil-sur-Mer), um inocente da cadeia (Champmathieu), uma órfã da exploração (Cosette), um policial de uma execução sumária (Javert) e um jovem da prisão e da morte (Marius).

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G. Brion, 1862
Lembremos que, na sua busca por discrição, ele relutara em ser prefeito de Montreuil-sur-Mer, para não chamar a atenção sobre si. Do mesmo modo, ele recusa a cruz de prata, outorgada pelo rei, que o faria cavaleiro da legião de honra, e evita frequentar os salões sociais da cidade, preservando a sua privacidade. Por insistência da população, que o tinha como um bom administrador, aceitou, com reservas, o cargo (I, 5, 2, p. 129-130). Ao aceitar, atraiu a atenção de Javert, prontamente desviada pelo caso do père Champmathieu. Jean Valjean deu a sua lição de coragem e justiça ao se revelar, mas também aprendeu que não deveria mais chamar a atenção sobre si, se quisesse ficar longe das garras inflexíveis de Javert. Jamais, portanto, ele iria altercar com um magistrado.

Só para ratificar a clareza da estrutura da narrativa, a exigir do personagem um comportamento discreto, beirando o anonimato, lembremos mais uma vez que, na Segunda parte do romance, Cosette, quando Jean Valjean resolve morar na mansarda Gorbeau, ele se veste pobremente, para não chamar a atenção, ao ponto de ser confundido com um mendigo, recebendo esmolas de algumas pessoas, que ele passava adiante (II, 4, 4, p. 348):

“Ele tinha sempre seu redingote amarelo, sua calça-culote preta e seu velho chapéu. Na rua tomavam-no por um pobre. Acontecia algumas vezes que algumas boas mulheres se voltavam e lhe davam um centavo.”
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G. Brion, 1862
Na Terceira parte, ele habita uma modesta casa na rua de l’Ouest, numa região reservada (III, 6, 9, p. 566). Quando seu endereço é descoberto por Marius, ele se muda para o endereço da rua Plumet, o que só saberemos na Quarta parte, O idílio rua Plumet e a epopeia rua Saint-Denis, para uma casa numa área maior, ainda mais reservada, envolta por um jardim e distante da rua, o que lhe dá mais privacidade (IV, 3, I, p. 695-698).

Mesmo tendo passado 5 anos como ajudante de jardineiro do convento do Petit-Picpus, passando-se por irmão de Fauchelevant, como já vimos, ao sair, o que acontece na Terceira parte do romance, Jean Valjean
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busca o máximo de discrição, para não ser novamente objeto da perseguição de Javert.

Na construção da estrutura da narrativa, vemos que a necessidade de discrição de Jean Valjean não é apenas a aristotélica, no sentido de algo que, apontado como índice, ao longo da narrativa, é retomado como elemento essencial. É também a necessidade, trágica, elemento incontornável na tragédia grega, que comanda Jean Valjean, assim como comanda o ser humano. Victor Hugo conhece bem essa necessidade, a ananke (ἀνάγκη). É com uma alusão ao termo que ele escreve a Introdução de sua primeira grande obra, Notre-Dame de Paris, afirmando que a palavra escrita por um desconhecido, em um dos cantos obscuros de uma das torres da vetusta catedral, é a matéria de que aquele livro era feito. Depois, ele a retoma, no Capítulo IV, do Livro VII, ratificando o anteriormente dito, como a força vital que impele o homem para o bem e para o mal. Tal similitude se pode aplicar a Os miseráveis, em que a necessidade é quem compele Fantine, Javert, Thénardier, Jean Valjean, cada um com seu objetivo: cuidar da filha, explorar os outros, fazer a justiça implacável, transformar-se pela caridade.

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Victor Hugo (1802—1885), romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista e estadista francês, autor de Os Miseráveis. Destacou-se também como ativista político e defensor dos direitos humanos. ▪ Fotografia de 5 de maio de 1861. Imagem: Pierre Petit e Gilbert Louis Radoux ▪ Casa de Victor Hugo, Paris.
A estrutura trágica de Os miseráveis é, portanto, indiscutível. Seu anúncio já havia sido feito na narrativa sobre Waterloo (Segunda parte, Cosette, Livro I, Waterloo, p. 241-284), creditando o resultado da batalha ao acaso, à Tyche grega, que se faz acompanhar da necessidade, podendo levar à ventura ou à desventura, quando a ação trágica se impõe, a partir da peripécia. Na construção de uma forma que cola na mente do leitor, Victor Hugo sintetiza toda uma situação. Assim como quem quer vencer uma batalha não espera a chuva passar, quem se evade não tosse e nem espirra...

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  1. Texto claro que revela a ótima pedagogia do mestre. Parabéns, Milton. Francisco Gil Messias.

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